Unidade de Nikita Chibrin, que desertou em setembro e fugiu da Ucrânia via Bielorrússia e Cazaquistão, é acusada de crimes de guerra
Nikita Chibrin diz que ainda se lembra dos seus camaradas a fugir depois de supostamente violarem duas mulheres ucranianas durante sua missão a noroeste de Kiev em março.
“Vi-os correr e depois soube que eram violadores. Eles violaram uma mãe e a filha”, conta à CNN. Os seus comandantes, recorda Chibrin, encolheram os ombros ao descobrir. Foram espancados, diz, mas nunca foram totalmente punidos pelos seus crimes.
“Eles não foram presos. Foram apenas despedidos. 'Vai!' Eles foram simplesmente despedidos da guerra."
Chibrin é um ex-soldado da cidade russa de Yakutsk que diz ter servido na 64.ª Brigada de Fuzileiros Motorizados, a notória unidade militar russa acusada de cometer crimes de guerra durante a sua ofensiva em Bucha, Borodianka e outras cidades e vilas ao norte de Kiev.
Ele desertou do exército russo em setembro e fugiu para outro país da Europa via Bielorrússia e Cazaquistão.
As tropas da brigada de Chibrin foram rotuladas como criminosas de guerra pelo Ministério da Defesa ucraniano em abril, depois de valas comuns com civis assassinados e cadáveres nas ruas terem sido descobertas após a retirada das forças russas da região de Kiev.
Os documentos militares de Chibrin, vistos pela CNN, mostram que o seu comandante era Azatbek Omurbekov, o oficial encarregado da 64.ª Brigada de Fuzileiros Motorizados. Omurbekov, conhecido como o “Carniceiro de Bucha”.
O Kremlin negou qualquer envolvimento nos assassinatos em massa, reiterando as alegações de que as imagens dos corpos de civis eram falsas.
Numa ação que gerou indignação em todo o mundo, o presidente russo, Vladimir Putin, concedeu à unidade um título militar honorário e a elogiou por seu “heroísmo” e “ações ousadas”.
Chibrin disse que não viu nada do suposto heroísmo, mas muitos dos crimes.
Falando à CNN num país europeu a que pediu asilo, detalhou alguns dos crimes que diz ter testemunhado e ouvido, e disse que estaria preparado para testemunhar contra a sua unidade num tribunal criminal internacional. Quanto a si próprio, afirma que não cometeu nenhum crime.
“Não vi assassinatos, mas vi violadores a fugir e ser perseguidos”, sublinha.
Ele também disse que a unidade tinha um “comando direto para assassinar” qualquer pessoa que partilhasse informações sobre as posições da unidade, fossem militares ou civis.
“Se alguém tivesse um telefone tínhamos autorização para disparar sobre ele”, diz.
Chibrin afirma que há poucas dúvidas de que alguns dos homens da 64.ª Brigada mataram civis desarmados.
“Há loucos que gostam de matar. E esses loucos estavam lá ”, garante.
Chibrin também descreveu saques generalizados, com soldados russos a levar computadores, joias e qualquer coisa de que gostassem.
“Eles não esconderam nada disso. Muitos da minha unidade, quando deixámos Lipovka e Andreevka no final de março, levaram carros e outros veículos civis e venderam-os na Bielorrússia”, detalha. “A mentalidade era: se roubares alguma coisa és bom; se não fores apanhado, excelente; se vires algo caro, roubares e não fores apanhado, és bom.”
Quanto aos comandantes da unidade, diz que eles estavam bem cientes das violações, assassinatos e saques, mas tinham pouco interesse em fazer justiça.
“Eles reagiam do género: 'Tanto faz. Aconteceu. E daí?' Na verdade, não houve reação”, lamenta. “A disciplina vai [pelo ralo], não há disciplina.”
A CNN pediu ao Ministério da Defesa da Rússia para comentar as alegações, mas não recebeu resposta.
Chibrin não tem dúvidas de que a Rússia acabará por perder a guerra contra a Ucrânia, mas não sem muitas mais vidas serem perdidas.
“Porque a Rússia não vai parar até que muito sangue seja derramado, até que todos morram. Soldados são carne para canhão para eles. Eles não os respeitam”, garante.
Tendo visto a luta em primeira mão, diz que o equipamento dos soldados russos não é comparável às armas a que a Ucrânia tem acesso. Conta que enquanto a Ucrânia está a receber alguns dos armamentos mais avançados dos seus aliados ocidentais, o exército russo conta com equipamentos da era soviética usados durante a guerra no Afeganistão na década de 1980.
“Claro que a Rússia vai perder. Porque o mundo inteiro está a apoiar a Ucrânia. Pensar que os russos vão vencer é estúpido”, afirma. “Pensavam que iam ocupar Kiev em três dias. Que dia é agora [da guerra]? 260.º? Eles pensavam que vinham para a Ucrânia e seriam recebidos com flores. Mas mandaram-nos f......-se e lançaram cocktails molotov sobre eles.”
"Eles mentiram-nos"
Os homens da sua unidade também estavam extremamente mal preparados para o combate, de acordo com Chibrin. Diz que o treino da sua unidade consistiu numa arma, num alvo e 5.000 balas.
“Continue a disparar e fica apto para ir. Ninguém estava a fazer nada. Não houve treino real. Eu trabalhava num escritório e cortava relva...", recorda.
A falta de treino ficou óbvia uma vez chegados à Ucrânia. Os mesmos homens que se gabavam de serem “Rambos” antes de serem enviados voltaram praticamente em silêncio, diz. “Aqueles que disseram que disparariam sobre ucranianos com facilidade, quando voltavam da linha de frente nem falavam. Eles viram a guerra, viram a derrota, viram os seus companheiros a ser mortos, viram cadáveres. Perceberam o que lhes tinha acontecido, mas não podiam fugir.”
Chibrin conta que muitos dos homens foram mal treinados e a maioria não tinha sequer ideia para onde estava a ir.
“Foi uma grande mentira. Foi um treino militar com o exército bielorrusso. E eles mentiram-nos. Em 24 de fevereiro, apenas disseram que todos iriam para a guerra”, lembra Chibrin, acrescentando que inicialmente se recusou a ir.
“A primeira coisa que disse foi: 'Comandante, não quero ir para a guerra'. E ele disse: 'Terá grandes problemas se não fores, podes ir preso e a tua família perseguida'. De seguida atacou-me e colocou-me num veículo especial e fechou a porta. E não consegui abri-lo por dentro. Então, foi assim que fui para a Ucrânia.”
Chibrin passou meses na Ucrânia, entrando e saindo do país. Quando a 64.ª Brigada de Fuzileiros Motorizados se retirou no final de março da área a noroeste de Kiev, após a ofensiva fracassada, ele e a sua unidade regressaram à Bielorrússia.
Disse então que estava lesionado nas costas, foi enviado para um hospital militar na Rússia, mas acabou por ser forçado a voltar para a Ucrânia em maio. Desta vez, foi enviado para a região de Kharkiv, no leste, e depois passou algum tempo nas florestas ao redor de Izyum.
Foi então que viu, finalmente, uma oportunidade para escapar. Viu que os comandantes de outras unidades estavam a deixar a área em direção à Rússia e entrou num desses camiões.
“Eu salto para o camião e vejo outros militares. Eles contam-me que não querem mais combater e que pagaram ao comandante para os levar. Quando chegamos perto da fronteira com a Rússia, eles começam a saltar da viatura, e eu salto também. Chego à fronteira e digo que preciso de ajuda médica”, descreve.
De volta à Rússia, Chibrin diz que passou quase um mês no hospital, a maior parte do tempo acamado com dores terríveis nas costas. Mas não recebeu o tratamento adequado. “Eles disseram-me que se eu quisesse ir para um hospital especial que tinha de assinar um papel a dizer que voltaria para a guerra.”
Recusando-se a assinar, Chibrin diz que estava a preparar-se para cancelar o seu contrato militar quando o governo russo anunciou a mobilização parcial em setembro.
“Os meus amigos disseram-me que eu tinha de me esconder, porque o meu contrato já não seria cancelado por causa da mobilização", diz. Sabendo que precisava de chegar o mais longe possível da cidade de Khabarovsk, no extremo leste, onde estava estacionado, Chibrin primeiro fugiu pela Rússia para São Petersburgo e depois apanhou um comboio para a Bielorrússia. Uma vez lá, conseguiu encontrar um intermediário que o ajudou a chegar ao Cazaquistão, de onde ele finalmente viajou para a sua localização atual.
Agora está determinado a falar sobre os eventos que testemunhou na Ucrânia, até mesmo escrevendo uma canção antiguerra. “Centenas de almas, centenas de corpos de pessoas perdidas. Centenas de mães sem filhos”, diz o refrão.
*Eugene Shapovalov e Katharina Krebs contribuíram para esta reportagem