Há um ano, a vida de Natalia foi abalada pela guerra. Com a sua família, ela fugiu dos combates na cidade de Mariupol, no sudeste da Ucrânia, e atravessou a fronteira para a Rússia.
De lá, ela e muitos outros ucranianos foram encorajados pelas autoridades russas a fazer uma viagem de comboio de 6.400 quilómetros para leste até ao limite da Sibéria, para uma cidade costeira chamada Nakhodka, no Mar do Japão, a um passo da Coreia do Norte. Está mais perto do Alasca do que das linhas da frente.
Na ausência de um corredor de evacuação confiável para o território controlado pela Ucrânia, ir para a Rússia era a única opção para muitas pessoas em Mariupol naquela altura. A Ucrânia descreve estes refugiados como deportados à força, embora Natalia diga que ninguém a forçou a partir. "A decisão foi nossa", disse à CNN por telefone desde o extremo leste da Rússia, onde se reinstalou desde a sua chegada na primavera passada.
Agora, com a guerra da Rússia na Ucrânia a chegar ao segundo ano, ela e outros levam uma existência incerta, sem saber se, ou quando, poderão voltar a casa ou ser bem-vindos quando lá chegarem.
Ao longo de muitos meses, a CNN conseguiu contactar alguns ucranianos através de um chat [um grupo de conversação em tempo real] dirigido por voluntários russos para os atuais e antigos residentes de um hotel utilizado como abrigo temporário, onde permaneceram enquanto procuravam trabalho e alojamento. A CNN não está a usar os seus nomes completos por motivos de privacidade e segurança.
Muitos dos recém-chegados a Nakhodka, na região russa de Primorskiy Krai, mostraram-se relutantes em dizer muito sobre as suas circunstâncias ou partilhar as suas opiniões, mas outros partilharam o suficiente para se ter uma visão mais clara da vida no extremo leste da Rússia e de como os ucranianos se estão a adaptar.
Alguns deram opiniões ligeiramente pró-russas, outros recusaram-se a responder a perguntas sobre a guerra, enquanto alguns até fizeram críticas contundentes à Ucrânia. Ninguém criticou diretamente Moscovo, mas não é claro se as pessoas sentiram que podiam falar livremente.
As Nações Unidas estimam que mais de 2,8 milhões de ucranianos se tenham refugiado na Rússia durante o último ano. Alguns - principalmente aqueles que podiam pagar - transitaram pela Rússia para outros países da Europa, e muitos conseguiram mesmo regressar à Ucrânia.
O direito internacional proíbe as transferências forçadas de pessoas e estipula que os evacuados devem ser transferidos para casa assim que as hostilidades tenham cessado. A CNN pediu um comentário ao Ministério do Interior da Rússia sobre a alegação da Ucrânia de que os seus cidadãos foram deportados à força para a Rússia, e sobre a situação dos ucranianos que vivem agora no extremo leste da Rússia, mas não obteve resposta.
A sua mera presença na Rússia é em última análise uma vitória para o Kremlin, de acordo com Nathaniel Raymond, diretor do Laboratório de Investigação Humanitária da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, que tem feito uma extensa pesquisa sobre a migração em massa de ucranianos para a Rússia desde o início da guerra. A Rússia, observou, precisa de mais pessoas.
"Em muitas partes do país, eles não têm cidadãos suficientes para fazer funcionar os municípios", afirmou. Há também "um benefício de propaganda, posicionando estas pessoas como, de alguma forma, procurando voluntariamente a cidadania na Rússia, o que se enquadra nesta narrativa mais ampla que Putin e o Kremlin [estão a forçar]... tentando rebatizar a guerra como salvando os ucranianos dos supostos nazis".
A Rússia tentou várias experiências para atrair pessoas para o seu extremo oriente rico em recursos, incluindo de ex-Estados soviéticos. Agora, os programas estatais estão a ser reaproveitados para acomodar os ucranianos em fuga. Aqueles que concordam em ir para o extremo leste recebem a promessa de um pagamento em dinheiro, assistência habitacional, cidadania russa e, potencialmente, até terras gratuitas.
O custo de vida em Primorskiy Krai, cuja cidade principal é Vladivostok, é a 11.ª mais alta da Rússia, mais cara até do que as regiões de Moscovo e São Petersburgo, de acordo com números oficiais. Isto deve-se, em parte, à taxa de construção de novas habitações, que se situa abaixo da média nacional.
Natalia, que era empregada de escritório em Mariupol, encontrou trabalho numa fábrica local de processamento de alimentos. Ela contou à CNN que está a debater-se com o custo da renda. Ela espera encontrar um emprego que corresponda melhor às suas competências, mas por agora é tudo o que ela consegue encontrar. Tem saudades de casa, mas pelo menos o clima marítimo lembra-lhe a costeira Mariupol. O marido e a filha estão consigo, e ela diz não ter mais família na Ucrânia.
"Nada mudou (no ano passado), exceto o local", disse. "Mas eu já não tenho um emprego que amo e uma casa que amo."
As autoridades russas pegaram no seu passaporte ucraniano e trocaram-no por um russo, indicou Natalia. A Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU diz que "ninguém será arbitrariamente privado da sua nacionalidade" e que todos têm o direito de deixar qualquer país, mesmo o seu próprio.
Quando Natalia falou com a CNN parecia resignada em fazer a mudança funcionar para a sua família a longo prazo. Sob os termos da sua reinstalação, ela deve viver lá durante pelo menos três anos, ou será forçada a reembolsar quaisquer benefícios estatais que a sua família tenha recebido.
Os ucranianos que assinaram o programa estão, "basicamente, num grau de servidão contratada", alertou Raymond. "Estar num contrato, por assim dizer, durante três anos coloca-os numa posição muito vulnerável. É fundamental recordar que os seus direitos fundamentais ao abrigo do direito internacional significam que ‘têm o direito de regressar, e têm o direito de regressar em segurança’, independentemente de qualquer acordo”, explicou.
Natalia pode viajar livremente, mas diz que não voltará à Ucrânia. "Aqueles que partiram para a Rússia são imediatamente considerados criminosos pelas autoridades ucranianas, por isso estou proibida de lá ir", justificou à CNN por telefone. "Não quero correr o risco", acrescentou, mesmo que ainda tivesse passaporte ucraniano.
Outros que falaram com a CNN também manifestaram relutância em regressar. "Vamos ficar na Rússia. Não quero sequer pensar na Ucrânia", assumiu Valeriya à CNN, outra ucraniana que acabou em Nakhodka.
"Neste momento, a falta de clareza é o maior problema" quando se trata de ucranianos na Rússia e se são livres de regressar a casa, disse Raymond.
"Existe, compreensivelmente, dentro da Ucrânia uma indignação absoluta contra aqueles que são vistos como colaboradores. Mas o facto é que estamos a lidar aqui com uma população civil que procurava refúgio em tempo de guerra", sublinhou. Segundo Raymond, tem havido exemplos locais na Ucrânia de represálias contra supostos colaboradores - mesmo contra aqueles que apenas fugiram para leste porque era a sua única saída para fora da zona de guerra.
Para o investigador de Yale, Kiev deve deixar bem claro que os cidadãos ucranianos que acabaram na Rússia podem voltar para casa, caso contrário muitos provavelmente não o farão. E isso serve apenas os interesses da Rússia.
O Ministério da Reintegração da Ucrânia encaminhou as questões da CNN para o gabinete do procurador-geral ucraniano. Em comunicado, disse à CNN que reconhecia que para muitas pessoas "a única passagem segura era através da Rússia". “É claro que não são considerados colaboradores [...] Eles têm de chegar a qualquer país terceiro e dirigir-se a um consulado ucraniano local, onde serão emitidos documentos para regressarem à Ucrânia." É menos claro se os ucranianos que permanecem na Rússia por um longo prazo serão bem-vindos sem problemas.
Por lei, a Ucrânia considera aqueles que negam publicamente a ocupação, ajudam os militares russos na Ucrânia, ou pedem apoio às ações russas, como colaboradores e passíveis de sanções penais.
Oksana, outra das ucranianas em Nakhodka que diz ter agora passaportes ucraniano e russo, contou que gostaria de regressar a Mariupol para a visitar, mas apenas se fizer parte da Rússia.
"De alguma forma as coisas são melhores na Rússia - mais calmas, enquanto na Ucrânia é uma confusão total. Não é claro o que é que o nosso governo está a fazer", disse à CNN por telefone, garantindo: "Eu sou pela paz em todo o mundo."
A sua amiga ucraniana Marina escreveu numa mensagem de texto que, após três anos, "veremos". "Depende do trabalho e do bem-estar material. Até agora, não é muito fácil."
Raymond suspeita que muitos dos que acabaram no extremo oriente da Rússia são menos abastados e, portanto, menos propensos a fazer a longa e cara viagem de regresso à Ucrânia, caso queiram voltar. Guerra após guerra, o mesmo padrão pode ser visto - aqueles com menos dinheiro têm menos opções, observou.
"São aqueles que não têm meios para fugir pela Europa, pelo Báltico, que muitas vezes ficam presos em situações em que podem ser explorados", apontou.
O Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos recusou-se a dizer se a Ucrânia deveria fazer mais para assegurar aos cidadãos que fugiram para a Rússia que podem voltar sem problemas. Mas disse que os EUA estão a prestar assistência para identificar e localizar refugiados ucranianos que tenham sido detidos e interrogados na Rússia, e estão a impor sanções e restrições de vistos a autoridades e empresas russas, a fim de responsabilizar a Rússia pelo que os EUA descrevem como deportações forçadas.
Oksana garantiu que a Rússia nunca fez parte do seu plano, mesmo quando se abrigou numa cave miserável em Mariupol enquanto a cidade estava sitiada pelas forças russas.
"Eu ia ficar e morrer lá, se a minha filha não tivesse dito: 'Mãe, não quero comer assim e morrer na cave'." Com o irmão de Oksana já no extremo oriente russo, elas decidiram partir.
Oksana disse que os voluntários têm sido úteis e que embora alguns habitantes locais tenham sugerido que ela "voltasse", outros encorajaram-na a ficar - o que, por enquanto, é o que ela pretende fazer.
*Irina Morgan contribuiu para este artigo