Uma análise do jornalista Bruno Amaral de Carvalho, que acompanha, há meses, o conflito em Donetsk, do lado separatista
Foi Vladimir Lénine quem tomou a decisão de integrar os então territórios russos do Donbass na Ucrânia e é Vladimir Putin quem decide agora desfazer a história e reintegrá-los na Federação Russa. Passa pouco mais de um século desta decisão, e os últimos dias parecem recordar as palavras do primeiro chefe de Estado soviético: há décadas em que nada acontece e há semanas em que décadas acontecem.
Os referendos surpreenderam o mundo, não tanto pela sua realização, visto que era um objetivo já anunciado, mas pela sua convocatória, três dias antes, quando se esperava que fossem concretizados apenas depois de um eventual controlo militar total destes territórios. Não foi assim. Mais que um referendo organizado com todas as garantias, impossível de todas as formas dentro do contexto excecional de uma guerra, o objetivo parece ser antes dar um sinal à população civil e fazer uma manobra política em Moscovo para legitimar formalmente a mobilização de 300 mil tropas para o teatro de operações.
O avanço surpreendente das forças ucranianas apoiadas pelos seus aliados, sobretudo na região de Kharkov, fez soar os alarmes no Kremlin. De tal forma, que Ramzan Kadirov, fez críticas abertas à forma como estava a ser conduzida a guerra. A Rússia anunciou que era apenas uma retirada estratégica para concentrar tropas no Donbass, mas o líder checheno ameaçou com ir a Moscovo tirar satisfações. A partir daí, os acontecimentos precipitaram-se.
Durante cinco dias, realizou-se uma consulta popular sem que alguém parecesse muito preocupado com o reconhecimento dos resultados pela comunidade internacional. Nem a Rússia, nem as autoridades separatistas, nem a população do Donbass deste lado da linha da frente. Não foram poucos os eleitores que expressaram a sua indiferença sobre a opinião do Ocidente.
Foi o que afirmou Ekaterina Vladmirovna, em Makeevka, quando esperava para votar. “Vejam quantas pessoas chegam para votar para que vivamos num país unido e pacífico”, afirmou. Evidentemente não se referia à Ucrânia. “Aqui ninguém nos assusta, ninguém nos intimida. São eles [Kiev] que nos bombardeiam”, acusou. Por sua vez, Valentina Grigoryevna respondeu que votou de “livre vontade” no referendo. “Aqui, ninguém é forçado a votar”, garantiu. De facto, em momento algum assistimos a algo desse género. Na cidade de Donetsk, de um modo geral, os soldados ficavam à porta dos prédios onde decorriam as votações mas não deixa de ser óbvio que uma consulta popular que se vê obrigada a recolher votos porta a porta ou na imediação dos edifícios foge daquilo que é a normalidade. As autoridades justificaram a decisão de realizar assim os referendos durante quatro dias devido aos bombardeamentos ucranianos. Só o último cuja votação decorreu dentro daquilo que é normal em escolas e com soldados a revistar os eleitores no exterior para impedir qualquer tipo de atentado.
Em entrevista, a esmagadora maioria afirmou que se sente abandonada desde 2014 quando uma revolta em Kiev derrubou o presidente eleito Viktor Yanukovich, nascido na região de Donetsk, e quando parte da população do Donbass decidiu revoltar-se também e tomar as instituições. Desde então, decorre uma guerra civil com milhares de mortos. Como afirmou o general prussiano Carl von Clausewitz, "a guerra é a continuação da política por outros meios" e, de facto, tanto os Estados Unidos como vários países da União Europeia nunca esconderam o apoio material e logístico às forças ucranianas, tampouco Moscovo com o apoio aos rebeldes pró-russos.
O perigo de um conflito a uma escala mundial era já evidente em Fevereiro mas parece ainda mais próximo agora. Nestas semanas que parecem décadas, depois do referendo, o atentado contra o gasoduto Nordstream-2 inflama ainda mais esse perigo. Hoje, Vladimir Putin reconheceu a anexação dos quatro territórios e ofereceu uma negociação de paz que não será abraçada por Kiev por deixar de parte estas regiões. A perda de Krasny Liman mostra que a Rússia subestimou a força da Ucrânia na sua aliança com a NATO. Centenas de milhares de soldados russos vão avançar sobre as forças ucranianas e os seus aliados e armas russas de novo tipo vão ser utilizadas pela primeira vez. A ameaça nuclear, para já, é apenas isso. Mas a escalada do conflito já não é uma hipótese, é uma certeza. Pouco se tem ouvido falar do Relógio do Apocalipse. Em janeiro, antes da guerra começar, estava a 100 segundos da meia noite. Esperemos que não toque as doze badaladas.