Artistas russos estão a ser 'cancelados' (os que não condenam Putin mas não só)

2 mar 2022, 00:40
Vladimir Putin no Teatro Bolshoi em 2017 (Alexei Druzhinin/Sputnik/AP Photos)

É outra das sanções para condenar a invasão da Ucrânia e deixar Moscovo culturalmente isolada. Instituições e artistas dos mais diversos campos estão a cortar a relação com criadores russos que não condenem o regime de Putin (e também com outros criadores - a Grécia suspendeu tudo). Mas há quem questione este movimento de cancelamento: é aceitável exigir aos artistas russos uma condenação pública de Putin quando há famílias que podem sofrer represálias?

As portas fecharam-se para Valery Gergiev, um dos nomes proeminentes da música erudita russa. O Carnegie Hall em Nova Iorque e o Scala de Milão decidiram cancelar-lhe concertos, o Festival de Edimburgo e a Filarmónica de Munique cortaram a ligação ao criador.

E porquê? Porque é um dos nomes próximos de Vladimir Putin. Ao longo dos anos tem feito polémicas declarações sobre a anexação da Crimeia. E tem as Pussy Riot, artistas críticas do regime russo, como um dos principais alvos.

Valery Gergiev é o exemplo mais marcante de uma política de cancelamento que o sector cultural tem levado a cabo perante os criadores russos pró-Putin ou que rejeitem condenar publicamente a invasão da Ucrânia. E, perante o cenário, nem o agente do maestro conseguiu continuar a representar o também diretor do Teatro Mariinsky.

Vladimir Putin com Valery Gergiev (Ivan Sekretarev/AP Photo)

Instituições de referência no universo da música clássica, como a The Metropolitan Opera ou a Orquestra Filarmónica de Roterdão, recusam-se agora a trabalhar com artistas que apoiem Putin ou dele recebam apoio. Na sala nova-iorquina, um dos nomes que podem ficar em risco é o da soprano Anna Netrebko, que tem agendada uma ópera de Puccini em abril e maio.

Mais extrema foi a Grécia, que suspendeu todas as atividades culturais com a Rússia. É uma espécie de sanção, para deixar a Rússia isolada culturalmente. O fecho do espaço aéreo a aviões russos deixa muitos sem acesso a propostas culturais em diferentes cidades europeias.

Mas o fluxo do bloqueio faz-se em todas as direções: cancelando artistas russos a atuar no estrangeiro, cancelando idas de artistas estrangeiros à Rússia e com artistas russos a recusarem trabalhar dentro das próprias fronteiras.

Green Day, Eric Clapton ou Imagine Dragon já cancelaram os espetáculos que tinham agendados para Moscovo e São Petersburgo.

O cisne russo já não voa

Da Rússia vem um dos mais icónicos bailados do mundo, “O Lago dos Cisnes”, de Tchaikovsky. O teatro The Helix, em Dublin, cancelou precisamente este espetáculo, que ia ser apresentado pela Companhia Real de Ballet de Moscovo. Mesmo que o seu diretor tenha sido nomeado por Putin, a companhia veio negar ser subsidiada pelo estado russo.

Já em Londres, a Royal Opera House cancelou a temporada de verão da Ballet Bolshoi, uma das mais conhecidas companhias russas. E, por todo o Reino Unido, a companhia estatal de ballet da Sibéria também assistiu a uma onda de cancelamentos.

Companhias russas estão a sentir o efeito do bloqueio cultural (AP Photo/Boris Grdanoski)

Bloqueio em Veneza (e em Moscovo)

Dentro de portas, a contestação cultural também existe. Alexandra Sukhareva e Kirill Savchenkov, os dois artistas escolhidos para representar a Rússia na Bienal de Veneza, já não o vão fazer. O curador que os acompanhava, Raimundas Malašauskas, juntou-se também ao seu manifesto. Agora, temem represálias.

Já Pavlo Makov, o artista que deverá representar a Ucrânia neste certame, é um dos signatários de uma carta a apelar à comunidade internacional da arte que aplique fortes “sanções culturais” à Rússia, incluindo a sua exclusão dos grandes eventos - como a Art Basel ou a Documenta.

No campo da arte contemporânea, outros espaços russos estão a mostrar que não querem uma guerra na Ucrânia. Enquanto ela existir, argumentam, não há condições para mostrar arte.

É o caso do museu Garage, em Moscovo, que suspendeu as exposições até que “termine a tragédia humana e política que está a decorrer na Ucrânia”. E o GES-2 seguiu no mesmo sentido, dizendo que “não há lugar para a arte enquanto civis estiverem a morrer debaixo de mísseis”.

Artistas como Anton Vidokle, nascido em Moscovo mas a trabalhar em Nova Iorque, ou o holandês Constant Dullaart têm exigido que as suas obras sejam removidas de galerias e museus russos, onde estão em exposição.

Rússia terá de encontrar alternativa para o seu pavilhão em Veneza (Bienal de Veneza)

“Não é possível trabalhar para um assassino”

Mal soube da notícia da invasão russa, Elena Kovalskaya renunciou ao cargo de diretora do Meyerhold Center, um teatro estatal em Moscovo. “Não é possível trabalhar para um assassino e receber um salário dele”, justificou. Mas não foi a única: o antigo bailarino francês Laurent Hilaire, até agora diretor da companhia de teatro Stanislavksi, também apresentou a demissão, porque o atual contexto não lhe permite continuar “a trabalhar com tranquilidade”.

Outros responsáveis culturais do país, onde se inclui o diretor-geral do Teatro Bolshoi, Vladimir Urin, têm protagonizado cartas abertas a apelar ao fim da guerra. Mas, como se esperava, o Kremlin não tem recebido bem estas posições, encarando-as como traição e lembrando a importância dos apoios estatais para que as instituições continuem a produzir.

Vindos do teatro ou de outras áreas artísticas, também em Portugal o sector cultural tem condenado a invasão russa. E uma das principais instituições do país, o Teatro Nacional D. Maria II, assumiu publicamente uma posição. “Este Teatro reconhece também a coragem de profissionais da cultura que, na Rússia, estão a tomar posições de condenação do seu próprio governo, apesar do risco que tal comporta”, escreveu. Terminando com a garantia de que vai procurar acolher artistas ucranianos.

Ecrãs ‘desligados’

Seja na cultura erudita ou mais ‘pop’, a posição mantém-se: o objetivo é deixar a Rússia simbolicamente isolada. E um dos melhores exemplos disso é o Festival Eurovisão da Canção, visto como um momento em que os países europeus (e não só) celebram a sua diversidade. A organização já baniu qualquer participação russa.

E, também neste espetáculo televisivo, a solidariedade com a Ucrânia está a fazer-se sentir: o país lidera nas apostas, com a canção dos Kalush Orchestra.

Se os russos não vão poder ver um representante na Eurovisão, também vão ter as escolhas mais limitadas na hora de ir ao cinema. Grandes estúdios mundiais como a Warner Bros, a Disney ou a Sony Pictures estão a adiar as datas de estreia neste país. Por agora, a curiosidade com o novo “Batman”, protagonizado por Robert Pattinson, ficará por saciar.

Quanto vale um bloqueio?

Mas, apesar desta tendência de cancelamento, há artistas a defender que as sanções culturais não têm efeito, não sendo aceitável exigir a colegas russos que condenem publicamente o regime de Putin quando as suas famílias podem vir a sentir as consequências dessa tomada de posição.

É o caso das artistas ucranianas Ilya e Emilia Kabakov, que trabalham em Nova Iorque. “As conexões culturais podem unir as pessoas quando os políticos falham. O diálogo é importante, desde que sejamos capazes de criá-lo, especialmente através do intercâmbio cultural”, argumentaram à Artnet.

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