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Diretor executivo CNN Portugal

“A violência garante o sucesso”. Como a Uber vence os fracos usando o seu desespero

10 jul 2022, 21:36
Manifestasção Uber Paris

Nem George Orwell escreveu uma frase tão descaradamente certeira: “A violência garante o sucesso”. Escreveu-a o presidente executivo da Uber numa mensagem de 2016 agora tornada pública, como um Nero sobre Paris a arder em confrontos entre motoristas de táxis e da Uber. E sim, a violência garantiu-lhe o sucesso.  

Garantiu o sucesso da Uber em Paris, como noutras cidades, incluindo Lisboa. O sucesso foi a destruição de grande parte do mercado dos motoristas de táxi, praticando deliberadamente preços com prejuízo para rebentar com a concorrência; o sucesso foi a legalização de uma atividade sem regras laborais nem rastreio de autoridades; o sucesso foi arregimentar a opinião pública a favor de mudanças. E antes de responder que isto é concorrência, leia os Uber Files para perceber que isto foi exatamente o contrário, terão sido sim usadas práticas anticoncorrenciais. Com o alto patrocínio dos legisladores.

A uberização da economia

A revolução da Uber na economia foi tão estridente que cunhou o termo “uberização”, pelos efeitos nefastos sobre funcionários que não são trabalhadores e capitalistas que não detêm o capital de produção – detêm o da tecnologia de distribuição – mas apropriam-se das margens, com baixo risco e sem pagar impostos que outros pagariam.

Isto já sabíamos. Que a Uber é uma formidável plataforma tecnológica, simples, eficaz e confiável. Que é um modelo de negócio de baixo risco para os acionistas. Que os seus motoristas são os proprietários dos veículos (logo, é seu este capital), suportam os custos de manutenção e todos os riscos, ganham à jorna e sem contratos de trabalho, sem remunerações mínimas, sem cobertura social para situações de doença, sem nada. Isto não “é a economia, estúpido”, isto é uma “economia de estúpidos” e estúpidos são os legisladores sistematicamente surpreendidos e ultrapassados pelas grandes empresas tecnológicas que entram nos mercados sem pedir licença, impõe-se às leis nacionais e pagam poucos impostos.

Sim, isto já sabíamos. Como sabíamos que estas empresas prevalecem porque os seus serviços são bons e os clientes gostam. A Uber apequenou o sector dos táxis não só pelo preço mas também pela qualidade de serviço. Se a opinião pública gosta, o poder político consente. Porque a opinião pública – ou os clientes – querem preços baixos e qualidade alta, não se preocupando com as condições ou as regras daqueles que prestam o serviço. É para isso que existe a lei, para proteger os invisíveis e os mais fracos. É por isso que existe por exemplo o salário mínimo, pois haverá sempre desesperados dispostos a trabalhar por uma côdea.

O que não sabíamos é que a Uber alegadamente usou práticas anticoncorrenciais para entrar nos mercados, fez lóbi para mudar leis, criou sistemas para fugir ao controlo de autoridades e aproveitou o desespero dos motoristas de táxi para pôr a opinião pública do seu lado.

“A violência garante o sucesso”

Voltamos à frase do título, à mensagem de Travis Kalanick a colegas de administração. A violência a que se referia não era uma abstração, era um facto. Como recorda o Washington Post, no ano anterior, em 2015, “mais de 80 motoristas da Uber tinham sido atacados fisicamente na Europa e dúzias dos seus automóveis tinham sido destruídos, em confrontos com motoristas de táxi com medo de perder o seu sustento, à medida que as baixas tarifas da Uber acabavam com a sua indústria”.

Já em 2016, o CEO da Uber pressionou os seus executivos a montar um contraprotesto pacífico em Paris, o que levou um administrador a recear pela segurança dos seus motoristas e pela imagem da Uber, por provocar desacatos. Foi aí que Travis Kalanick escreveu: “Penso que vale a pena. A violência garante o sucesso.”

A Uber transformou conscientemente a violência numa arma de negócio. Quando os seus motoristas eram atacados, a empresa passava detalhes das agressões aos jornais e ativava lobistas para pressionar políticos a alterar a lei.

Não se trata aqui de defender os motoristas que usaram a violência como se ela fosse legítima, mas de reconhecer não apenas o oportunismo da Uber como a instigação de manifestações, para que a violência vexasse os motoristas de táxi e virasse a opinião pública e o poder político a seu favor.

Mais: os Uber Files mostram que a empresa estava pronta para “desligar” o sistema quando as autoridades investigavam, o que terá feito pelo menos uma vez, em Amesterdão.

Mais ainda: tudo isto acontecia enquanto a Uber entrava em várias cidades aparentemente usando práticas próximas do “dumping”, com preços muito baixos e dando até 90% das tarifas aos motoristas: estavam a comprar mercado, gastando milhões de dólares para estoirar com a concorrência. Foi aqui que se enganaram milhares de pessoas que, protestando contra a violência de motoristas de táxis, contra a falta de concorrência no setor ou contra os preços e qualidade, apoiaram a Uber.

E ainda mais: a expansão aconteceu em França com o apoio de Emmanuel Macron, então minstro da Economia, agora apanhado nas trocas de mensagens que mostram que se reuniu secretamente com a Uber e apoiou a flexibilização de regras depois de acordá-las com a empresa. Era tratado na Uber como “aliado”.

E Portugal? "Sexy para os média"

Portugal, como mercado pequeno, vai sempre atrás. Mas também por cá houve utilização dos protestos com os mesmos fins.

Em julho de 2015, o gestor da Uber em Portugal, Rui Bento, terá proposto à casa-mãe “criar uma ligação direta entre as declarações públicas de violência do presidente da ANTRAL (Florêncio Almeida) e estas ações [protestos], para degradar a sua imagem pública”. Em resposta, o assessor de comunicação da Uber pediu que se investigasse o passado de Florêncio Almeida “para ver se temos alguma coisa ‘sexy’ para os média”.

Em 2018, o sector foi legalizado, tendo as autoridades entretanto denunciado suspeitas de violação da lei e o governo já prometido (mas ainda não cumprido) alterações para evitar que os motoristas sejam os seus próprios patrões, assim fintando o espírito da lei, e para eventualmente impor o reconhecimento de contratos de trabalho de motoristas – que são hoje mais de 30 mil no país nestes serviços, a que somam mais dezenas de milhares em serviços semelhantes de outras plataformas.

Não é só a Uber

O grande argumento a favor da Uber, pensávamos, foi a qualidade do seu serviço, os preços mais baixos e o protesto da opinião pública contra a falta de concorrência no setor dos táxis. Mas houve mais do que isso, houve lobbying, aproveitamento e até provocação dos protestos.

A violência das manifestações serviu consciente e deliberadamente os interesses da empresa para rebentar com uma indústria e tomar o mercado como seu.

O caso mostra como as grandes tecnológicas estão muitas jardas à frente de uma Europa incapaz de liderar na inovação tecnológica e de regulamentar laboral e fiscalmente estes negócios sem fronteiras. Lembra-se de, há dois anos, a Comissão Europeia anunciar impostos europeus sobre estas multinacionais? Continuamos sentados à espera.

O caso mostra também como a qualidade dos serviços de empresas como a Uber – ou como a Google e a sua baixa tributação, o Facebook e as suas práticas anticoncorrenciais, a Apple e a utilização de empresas de mão-de-obra barata, ou o Spotify e a baixa remuneração de artistas – ganharam um poder acima dos Estados em prejuízo dos mesmos Estados e dos produtores.

O caso mostra ainda como a opinião pública é manipulada e talvez aceite o abuso de regras e de leis se adorar estes serviços.

E mostra como aqueles que devem proteger os mais fracos, os legisladores, alinham na desregulamentação do mercado de trabalho e são toureados por empresários muito mais espertos do que eles.

O caso mostra finalmente não só que os mais fortes ganham aos mais fracos, mas que os mais fortes semeiam a discórdia pública entre os mais fracos e a concórdia privada entre legisladores para destruírem regras e mercados abusando do seu poder. Como escreve Michel Houellebecq em “Aniquilação”, “a Paul [personagem, um assessor do governo francês] parecia evidente que o conjunto do sistema iria desmoronar-se num gigantesco colapso, sem que pudesse prever neste momento em que data, nem por que modos – mas a data poderia ser antecipada, e os modos revelarem-se violentos”.

O que é “sucesso”? Para quem escreveu a frase, sucesso é lucro, se necessário sem escrúpulo. Para quem a lê, é o quê? Entrar para o lugar de trás de um carro que pára à porta?

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