Qual é o interesse da Turquia nas negociações de paz entre Ucrânia e Rússia? O Ocidente não é de certeza

3 mai 2022, 08:00
Bandeira da Turquia

Ancara tornou-se o principal mediador diplomático da guerra, mesmo sendo o invasor um inimigo histórico. Para os países envolvidos faz todo o sentido, explicam dois analistas à CNN Portugal

Não é defensora das ideias europeias e tem na Rússia um dos seus inimigos históricos, porém, a Turquia posicionou-se como o principal mediador de um possível processo de paz entre Kiev e Moscovo. Apoiado militarmente pela NATO, o regime de Erdogan mantém alguma proximidade a Putin, particularmente desde a tentativa de golpe de Estado em 2016, mas o que move Ancara neste equilíbrio tão complexo entre o Ocidente e o Oriente?

Para o major-general Arnaut Moreira, a Turquia é, neste momento, um país que possui muita desconfiança para com a Europa e sente-se “desgastada pelo tratamento que teve na recusa da adesão à União Europeia” e vê-se muito mais focada em ser uma potência na região do Mar Negro e do Médio Oriente.

“A Turquia tem aspirações de ser uma potência de natureza regional e para o poder ser tem, por um lado, de ter capacidade de ser respeitada e, por outro lado, tem de ter capacidade de natureza militar. Além disso, tem de ter a capacidade de condicionar os outros atores da zona”, explica o especialista em geopolítica e geoestratégia, que acrescenta que a Turquia dispõe também de um vasto conhecimento da zona da guerra, tem uma articulação funcional com ambos os países envolvidos no conflito e tem um conjunto de características que servem à Ucrânia e à Rússia.

Nesse sentido, o especialista acredita que Erdogan vê a guerra da Ucrânia como uma oportunidade para poder “influenciar as soluções que venham a ser encontradas para a região”. O presidente turco acredita que com o acesso à mesa de negociação pode ficar a saber quais são os objetivos finais de Moscovo e de Kiev, além de poder encontrar soluções que possam ser úteis aos dois países e que “não sejam prejudiciais aos interesses de Ancara”.

A salvação política de Erdogan

“Além de existir a vontade de não depender tanto da Europa, há na Turquia a ideia de que o Ocidente está em declínio. É uma ideia que é ajudada pelo foco na Ásia, com a ascensão da China e da Índia”, frisa a professora universitária Isabel David, que sublinha também a importância política que um sucesso na mediação de paz traria para o governo de Erdogan, numa altura em que todas as sondagens dão a derrota do líder turco como garantida, devido à grave crise económica que o país atravessa.

A Turquia lida com uma crise económica profunda há vários anos. Publicamente, o governo de Erdogan admite que a inflação no país tenha atingido já os 60% em 2022, porém vários analistas internacionais acreditam que o valor real da inflação pode ser bem ainda mais elevado. Este fator reduz, em muito, a capacidade diplomática de Ancara para com Moscovo, além de que a Rússia é um dos maiores fornecedores de energia ao Estado turco e Vladimir Putin já demonstrou, como aconteceu recentemente com a Bulgária e a Polónia, que não tem problemas em utilizar as exportações de gás natural e petróleo como arma.

“A Rússia e a Turquia têm aumentado bastante o fluxo comercial entre si, incluindo a construção de uma central nuclear na Turquia pela Rússia. Há também a passagem de gasodutos pela Turquia, nomeadamente o Turkstream, que leva o gás natural russo à Turquia e para o sul da Europa, nos Balcãs. E a própria venda à Turquia do sistema de defesa antiaéreo russo o S-400”, explica a professora Isabel David.

Além disso, setores estratégicos como o imobiliário estão cada vez mais dependentes das fortunas russas. De acordo com o jornal espanhol El País, entre janeiro e março de 2022, um em cada 200 imóveis vendidos na Turquia foram comprados por cidadãos russos. Um aumento de 60% quando comparado com o mesmo período do ano anterior.

Porém, a relação com a Rússia é complexa e Ancara vendeu e tem continuado a vender drones militares à Ucrânia, com particular foco nos Bayraktar TB2, que têm sido utilizados com grande eficácia contra o exército russo.

Sensibilidade e bom senso

Historicamente, a relação entre a Rússia e a Turquia é marcada por vários séculos de guerras. Durante o auge do Império Otomano, o Império Russo foi o seu principal inimigo e a nação que mais territórios “amputou” aos otomanos, entre os quais a disputada península da Crimeia.

A situação altera-se ligeiramente com a formação do Estado turco e, em particular, a partir do momento em que o país entra na NATO, na década de 50, passando a cumprir a função de “tampão” à União Soviética na região. Nos últimos dez anos aproximaram-se, particularmente desde que o regime de Erdogan parece ter seguido um rumo mais autocrático, depois da tentativa de golpe de Estado em 2016, mas os especialistas recusam-se a classificar a relação entre os dois como uma aliança.

“É uma parceria. Os dois países têm interesses em comum, desenvolveram relações económicas bastante aprofundadas, particularmente desde que começaram a dar mais importância à política eurasiática”, considera Isabel David.

Esta ideia é partilhada por Arnaut Moreira, para quem a Rússia olha para a Turquia como alguém que não tem qualquer interesse no Ocidente e, por isso, o seu papel como mediador de paz não beneficiará esse mesmo Ocidente, até porque a Turquia de Erdogan “não é uma defensora das ideias europeias”.

“A Rússia é muito sensível a esta questão de não ter como mediador alguém que esteja próximo do Ocidente e que venha para mesa de negociação fazer propostas que, de alguma forma, beneficiam o Ocidente”, refere o especialista.

Já a Ucrânia poderá estar a tomar partido do facto de o futuro da Crimeia e de toda a costa ucraniana no Mar Negro não é indiferente para a Turquia, uma vez que o país tem ambições de influência na zona. O controlo de toda a costa ucraniana por parte da Rússia é algo que o major-general Arnaut Moreira acredita não ser do interesse de Ancara, que arrisca ver a Rússia tornar-se a potência hegemónica no Mar Negro.

“A Ucrânia reconhece que a Turquia pode ser um bom mediador ao tentar encontrar soluções que não tornem a Rússia uma potência hegemónica no Mar Negro", destaca Moreira.

Circunstâncias que fazem com que alguns dos mais importantes intérpretes da política internacional vejam a Turquia como um possível “desbloqueador” diplomático da guerra. Foi esse o caso de António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, que antes de se encontrar em Moscovo com Vladimir Putin viajou até Ancara.

“Guterres foi tentar construir em cima dos esforços turcos. O presidente austríaco reconheceu isso. A Itália, o Reino Unido e os Estados Unidos já reconheceram isso. Toda a gente já percebeu que a única porta de acesso diplomático a Putin é a Turquia”, frisa Isabel David.

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