Do príncipe que treinou no Sporting ao argentino que vive no estádio: os treinadores com mais anos de clube

31 mar 2023, 08:45
Pablo Vicó (Facebook Brown)

A propósito de Pablo Vicó, que é uma figuraça no futebol argentino e cumpriu recentemente 14 anos à frente do Brown, fomos à procura das histórias dos cinco treinadores em atividade com mais anos no mesmo clube. Há dois que já passaram pelo Estádio de Alvalade, há um que é alemão e se chama... Schmidt, enfim, o melhor é mesmo vir daí.

Chama-se Pablo Vicó e tem 67 anos, mais de vinte dos quais dedicados ao Club Atletico Brown, de Buenos Aires. Primeiro como jogador, depois tratador do campo, mais tarde treinador das camadas joves e desde 2009 como treinador principal.

Na passada semana, dia 21 de março, cumpriu o décimo quarto aniversário como técnico da equipa do segundo escalão argentino, o que chamou a atenção para a história dele.

E que história!

Pablo Vicó vive, literalmente, no estádio do Brown: tem um quarto na parte de trás do campo principal, onde dorme, numa pequena divisão com o mínimo indipensável. Come no refeitório do clube, que também tem o nome dele, varre as bancadas, ajuda a lavar a roupa, enfim.

Tem um ordenado, tem um carro e podia ter outra vida. Mas não quer. O Brown é tudo para ele e a dedicação já lhe valeu até o nome numa rua.

Ora a história de Pablo Vicó chamou a atenção para outras vidas: que feitos escondem os homens que, um pouco por todo o mundo, há mais tempo orientam a mesma equipa? Fizemos a lista do cinco técnicos mais antigos em atividade e fomos atrás das histórias.

Jomo Sono (África do Sul)

29 anos a treinar o Jomo Cosmos

Chama-se Ephraim Sono, mas toda a gente o conhece como Jomo Sono, e há uma boa razão para ser o treinador há mais anos à frente de uma equipa: ele é também o dono e presidente do clube. O que explica tudo. Curiosamente já esteve muito perto de representar o Sporting.

Aconteceu em 1971, quando o treinador Tony Sanderson o trouxe a Lisboa e o miúdo de 19 anos fez então uma semana de testes em Alvalade. Era uma altura em que só um estrangeiro podia jogar, o Sporting tinha Yazalde e a perspetiva de ter pouco tempo de utilização desaconselhou o investimento. Jomo Sono voltou então para os Orlando Pirates.

Conhecido como Príncipe Negro do futebol sul-africano, é aliás uma verdadeira instituição no país.

Filho de um antigo jogador dos Orlando Pirates, que morreu num acidente, cresceu a vender fruta nas bancadas, até que um dia faltava um jogador e ele ofereceu-se para entrar em campo. A partir daí tornou-se um dos melhores jogadores da história dos Orlando Pirates, tendo mais tarde jogado no New York Cosmos ao lado de Pelé.

Quando regressou a casa, em 1983, comprou o Highlands Park e renomeou o clube de Jomo Cosmos. Desde 1994 é também o treinador, cargo que por três vezes já acumulou com o de selecionador nacional (numa delas levou a África do Sul à final da CAN).

Na última época, a equipa caiu pela primeira vez na terceira divisão, ela que já foi uma vez campeã nacional, mas nem assim Jomo Sono saltou fora. Aos 67 anos continua a treinar o clube que já transferiu mais de vinte jogadores para o futebol europeu e tem um plano para o devolver à Premier League da África do Sul. Só não revela qual é.

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Stephen Baxter (Irlanda do Norte)

18 anos a treinar o Crusaders

É o treinador há mais anos num clube no futebol europeu, depois de uma carreira como jogador em que foi sempre o típico ponta de lança britânico: alto, fisicamente forte, bom no jogo aéreo. Por isso marcou mais de 150 golos durante a carreira, toda ela desenvolvida no futebol da Irlanda do Norte.

Quando pendurou as botas, teve uma curta experiência no banco das equipas jovens do Bangor, até que o Crusaders lhe lançou um telefonema desesperado: a equipa estava no último lugar e tinha nove jogos para fugir à despromoção. Stephen Baxter não o conseguiu, mas pelo menos ganhou tempo para construir uma ideia de equipa sem a mesma pressão na segunda divisão.

A partir daí foi sempre a trepar. O pequeno clube, do norte de Belfast, subiu de divisão, ganhou a Taça da Irlanda do Norte, foi às pré-eliminatórias da Liga Europa e juntou-se ao Linfeld e ao Glentoran no lote de crónicos candidatos aos títulos (já foi campeão três vezes).

Ao longo de dezoito anos construiu uma relação muito forte com os adeptos, que o apoiam mesmo nos piores momentos, e com os jogadores, que levaram a imprensa local a falar da «Família Crusaders». Seis jogadores do plantel, aliás, somam mais de sete anos seguidos no clube: entre eles há um com onze anos, outro com catorze e outro com dezasseis (!) épocas consecutivas na equipa.

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Frank Schmidt (Alemanha)

16 anos no FC Heidenheim

Apesar do nome, Frank Schmidt não tem nenhum parentesco com Roger Schmidt. Para os mais atentos ao futebol, de resto, a cara dele não deve ser estranha: Frank Schmidt foi um dos três treinadores acompanhados durante uma época inteira para realizar o premiado documentário alemão Trainer. A fotografia dele fez até, aliás, a imagem de capa do documentário.

Frank Schmidt tem aliás uma história curiosa. Formado no Nuremberga, foi um promissor defesa central na juventude, chegando a integrar a seleção alemã que disputou o Mundial sub-20 em 1993. Pelo meio estreou-se com 19 anos na equipa principal do Nuremberga, num jogo da Taça. Parecia lançado, mas foi ilusão de ótica: o alemão nunca jogou na Bundesliga.

Andou sempre nas divisões secundárias e construiu uma carreira modesta sem nunca dar o salto, até que se retirou no FC Heidenheim: curiosamente o clube da cidade natal. A direção convidou-o a ficar como adjunto da equipa principal, mas a aventura durou apenas 17 jogos: Dieter Markle foi demitido e Frank Schmidt tornou-se o treinador interino em sua substituição.

Até hoje, já lá vão portanto dezasseis anos de treinador interino.

Desde então subiu o Heidenheim das divisões regionais à II Liga Alemã e em 2020 esteve quase a cometer a proeza de levar o clube à Bundesliga: perdeu o play-off de promoção frente ao Werder Bremen. Já eliminou o Bayer Leverkusen da Taça e esteve quase a fazer o mesmo com o Bayern. Nesta altura tem contrato até 2027, mas já há quem fale que justo, justo era um contrato vitalício.

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Gurban Gurbanov (Azerbaijão)

15 anos à frente do Qarabag

Quando se junta um herói do Azerbaijão a um clube que é o orgulho de um povo, dificilmente o resultado pode não ser o sucesso. O Qarabag é o que sobra de Aghdam, transformada em cidade-fantasma pela Guerra de Nagorno-Karabakh: os habitantes tiveram de fugir durante os bombardeamentos e desde então ninguém habita na localidade.

A maior parte das pessoas fugiu para a capital Baku, que se tornou também a casa do Qarabag: a 440 quilómetros de onde tudo começara. Apesar de deslocalizados, os azeris de Nagorno-Karabakh sonham em regressar muito brevemente a Aghdam, uma das regiões que são oficialmente parte do Azerbaijão, mas estão controladas por arménios étnicos.

Ora nesta longa guerra, o Qarabag tornou-se uma bandeira para os azeris. Sobretudo desde que Gurban Gurbanov assumiu o comando técnico da equipa, no verão de 2008, após uma época pouco conseguida no rival Neftchi Baku. Ainda um jovem treinador, aquele que é o melhor marcador da história da seleção do Azerbaijão fez um estágio no Barcelona, teve uma conversa com Guardiola e levou para o clube um futebol curto do gigante catalão.

O Qarabg tornou-se conhecido como o «Barcelona do Cáucaso» e ganhou grande notoriedade no país. Sob a orientação de Gurban Gurbanov foi sete vezes campeão e tornou-se o primeiro clube azeri a jogar a fase de grupos da Liga dos Campeões. Já depois de ter feito o mesmo na Liga Europa e de ter até jogado em Alvalade. «Este clube significa tudo para o povo do Azerbaijão. As nossas terras foram ocupadas e é através do sucesso do Qarabag que chamamos a atenção do mundo.»

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Pablo Vicó (Argentina)

14 anos à frente do Brown de Adrogué

Um caso único: Pablo Vicó treina, respira e vive Brown de Adrogué. Literalmente. O técnico tem um quarto na parte detrás do campo, onde habita desde que orientava as camadas jovens. Há mais de década e meia, portanto. Uma divisão muito simples, onde cabem um beliche que utiliza para arrumar as suas coisas, uma cama de solteiro, uma mesa de centro, alguns eletrodomésticos, uma televisão para observar os adversários e alguns quadros com fotografias.

Depois sai do quarto, atravessa um corredor, percorre um túnel e está no relvado principal. Tem uma carrinha antiga, faz as refeições na cantina que, curiosamente, tem o nome dele, às vezes varre o campo, ajuda a lavar os equipamentos, enfim. Ele que já fez de tudo no Brown. Começou por ser jogador, quando acabou a carreira trabalhou na manutenção dos campos ténis, depois treinou os benjamins, foi subindo e em 2008 chegou à equipa principal.

Subiu três vezes a equipa, que atualmente disputa a II Divisão. Com alguns maus momentos pelo meio. Em 2014, após uma descida de divisão, entrou no escritório do presidente para apresentar a demissão. Os dois começaram a chorar e o dirigente respondeu-lhe que só sairia do clube quando morresse. Curiosamente foi o mesmo homem que uns anos antes, quando Pablo Vicó treinava miúdos e vivia numa pensão, lhe disse para se mudar para o estádio.

Aceitou de imediato, até porque fora dali a prendê-lo tinha apenas um filho, que um acidente de automóvel levou em 2015: um perigoso grupo de assaltantes fugia da polícia quando embateu no carro do jovem. Pablo Vicó teve um ataque cardíaco, passou dez dias internado e desde então toma 12 comprimidos para superar a depressão. O Brown é a vida dele. Por isso diz que nunca sairá de lá: se for preciso vai treinar as crianças outra vez.

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