“Perder o salário ou ir trabalhar doente”. O drama dos norte-americanos enquanto a Ómicron se propaga

CNN , Nathaniel Meyersohn
27 jan 2022, 22:00
Inverno. Tom Williams/CQ Roll Call/AP

Pode pensar-se que os funcionários de lojas e restaurantes nos Estados Unidos que apanham covid-19 ficam em casa para recuperar e manter o público em segurança.

Contudo, milhões de funcionários que lidam com o público não podem fazê-lo sem perder o salário. Deste modo, muitos norte-americanos, que têm empregos precários e com baixos salários no setor de serviços, não podem ficar em casa – mesmo que tenham sido infetados pelo vírus ou expostos a alguém que tenha sido infetado.

Alguns trabalhadores estão a ter dificuldades em obter ou pagar testes para confirmar que foram infetados. Muitos não têm baixa médica paga e precisam de ter as suas contas em dia. E outros temem sofrer repercussões dos chefes, se ficarem doentes, ou sentem mais pressão para trabalhar por causa da grave escassez de pessoal.

Os Estados Unidos não têm leis nacionais de baixa remunerada por doença, ao contrário da maioria dos países industrializados, deixando grandes lacunas no acesso a baixas médicas pagas, especialmente em empregos no setor de serviços. Em março de 2021, 41% dos funcionários do setor de serviços não tinham dias de baixa por doença pagos, de acordo com os últimos números do gabinete de estatísticas laborais dos EUA, em comparação com os 23% de todos os trabalhadores do setor privado.

Os empregos no setor de serviços também costumam ser a tempo parcial e têm muito menos probabilidades de incluir baixa médica paga do que em cargos a tempo inteiro. A menor probabilidade de baixa médica paga para trabalhadores a tempo parcial tem um impacto desproporcional nas mulheres, que são mais propensas a ter empregos a tempo parcial do que os homens, segundo a Fundação Kaiser Family.

Quando uma assistente de gerente de uma joalharia Pandora em Orlando, Flórida, foi exposta a uma pessoa que testou positivo para covid-19 na última semana de 2021, ela teve de faltar ao trabalho sem remuneração, porque não tinha baixa paga.

"Foi uma semana difícil para mim. Foi muito, muito difícil para mim", afirmou a funcionária, que comentou em anonimato, porque não estava autorizada a falar publicamente. “Não posso faltar ao trabalho durante 5 dias ou uma semana sem receber.”

Sem dias de baixa pagos, ela fica preocupada sempre que começa a sentir-se doente. A assistente mandou funcionários para casa, quando apareciam doentes – e sentiu-se culpada por fazê-lo, porque sabia que eles não seriam remunerados.

"Quando me sinto doente, penso: 'Meu Deus, preciso mesmo de pagar as contas'", afirmou.

Um porta-voz da Pandora afirmou que a empresa oferece 40 horas por ano de baixa médica paga a funcionários em tempo inteiro. Se um funcionário testar positivo para covid-19 ou estiver em quarentena, ele pode usar a baixa por doença, dias de férias ou dias de folga pagos. As lojas de franchising, como aquela em que a assistente de gerente de loja trabalha em Orlando, definem as suas próprias políticas de baixa médica, baixa por covid-19 e outros benefícios.

Bill Thompson, cozinheiro de um Burger King em Independence, Missouri, também não tem baixa médica paga. Ele preocupa-se que seja exposto a colegas de trabalho que aparecem com covid-19, porque não podem dar-se ao luxo de ficar em casa. (Os proprietários de franchises do Burger King definem políticas de baixa por doença e covid-19, comentou um porta-voz.)

"Sinto que estou a jogar roleta russa com a minha vida ao vir trabalhar para fazer hambúrgueres e batatas fritas por 11,15 dólares por hora", afirmou Thompson, membro do “Fight for US $15”, que defende melhores salários e benefícios para os trabalhadores.

Ómicron e pessoal reduzido

Mesmo antes do aparecimento da pandemia de covid-19 ou da variante Ómicron, a falta de baixa médica remunerada e o modelo de escassez de pessoal do setor de serviços obrigava funcionários economicamente inseguros a trabalhar, apesar de estarem doentes, explicou Daniel Schneider, sociólogo da Universidade de Harvard.

"As lojas tinham poucos funcionários por uma questão de negócios", afirmou Schneider, que também é co-diretor de The Shift Project, que faz inquéritos a dezenas de milhares de funcionários de lojas a retalho e restaurantes de fast food das principais cadeias comerciais.

Muitas vezes, este modelo deixa os funcionários ansiosos por mais horas e pela necessidade de estar nas boas graças dos seus gerentes para obtê-las – outra razão pela qual os trabalhadores podem hesitar em dizer que estão doentes. O número de horas trabalhadas também determina muitas vezes se os trabalhadores se qualificam para receber assistência médica e outros benefícios dos seus empregadores.

A pandemia e o fenómeno das Grandes Demissões agravaram os problemas criados pela falta de baixa médica remunerada para os funcionários e a pressão para trabalhar devido aos níveis de pessoal reduzidos.

Atualmente, os “funcionários não sentem que têm mais acesso a baixa por doença paga do que antes,” afirmou Schneider. Além disso, "o problema de falta de pessoal atingiu um ponto de viragem louco".

Cerca de 65% dos 6 600 funcionários que relataram estar doentes por qualquer motivo, não apenas por covid-19, nos inquéritos do Shift Project realizados de setembro a novembro, foram trabalhar mesmo assim.

Ao serem questionados sobre os motivos, 55% afirmaram que precisavam do salário e 30% disseram que não tinham baixa médica remunerada.

Porém, a falta de pessoal também influenciou as suas decisões de irem trabalhar doentes. Quarenta e cinco por cento não queria dececionar os seus colegas de trabalho e 40% não conseguiu encontrar ninguém para cobrir o seu turno.

Outros trabalhadores estavam preocupados que faltar por motivo de doença pudesse afetar a sua situação laboral: 44% dos trabalhadores disseram que temiam ter problemas por faltar.

Isaac Pierce, gerente de um supermercado Vons em San Diego, Califórnia, afirmou que alguns dos seus colegas de trabalho aparecem com tosse e sintomas de gripe. Eles "dão pouca importância" e dizem que não é covid-19, mas ele não tem como saber.

Há algumas semanas, um dos colegas de trabalho de Pierce na Vons foi trabalhar dias depois de testar positivo para o vírus. Um dos funcionários protestou por ele estar de volta ao trabalho tão cedo, por isso, foi mandado de volta para casa.

A empresa Albertsons, proprietária da Vons, não respondeu atempadamente ao pedido de comentário.

“Perder o salário ou ir trabalhar doente”

No início da pandemia, em março de 2020, o Congresso aprovou legislação que exigia temporariamente que empregadores com menos de 500 funcionários e todos os empregadores públicos oferecessem até duas semanas de baixa médica remunerada a trabalhadores que contraíram covid-19 ou aguardavam resultados de testes e estavam de quarentena. A legislação oferecia deduções fiscais para ajudar a compensar os empregadores pelas despesas.

Estes benefícios expiraram no final de 2020, mas o governo continuou a conceder deduções fiscais aos empregadores que optaram por oferecê-los voluntariamente até outubro. A Câmara dos Representantes aprovou o conjunto de medidas sociais do presidente Joe Biden, "Build Back Better" ("Reconstruir Melhor"), que inclui quatro semanas de licença parental e baixa médica, mas a lei não passou no Senado.

Algumas grandes cadeias como Walmart (WMT), Amazon (AMZN) e outras também ofereceram baixa médica paga por covid-19 durante a pandemia. No entanto, essas empresas reduziram recentemente o número de dias de baixa pagos que garantem aos funcionários que testam positivo para a covid-19. As mudanças deram-se no seguimento das recomendações atualizadas do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças, que reduzem o tempo de isolamento e quarentena para o público em geral.

Mesmo para funcionários de grandes empregadores que têm acesso a baixa remunerada para a covid-19, funcionários e defensores trabalhistas afirmam que é difícil gozar do benefício após testar positivo ou enquanto se espera pelos resultados dos testes.

Jim Araby, diretor de campanhas estratégicas do sindicato United Food and Commercial Workers no norte da Califórnia, explicou que os funcionários de supermercados precisam de passar por gerentes externos para obterem a baixa remunerada por covid-19 aprovada pelos seus empregadores. Porém, os sistemas administrativos estão "totalmente sobrecarregados", afirmou, e "são demorados".

"Os funcionários acabam por perder o salário ou vão trabalhar doentes", comentou Araby. "Claramente, não temos uma rede de segurança social que consiga lidar com estas questões."

E.U.A.

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