"Proibir os telemóveis na escola pode fazer sentido, mas fingir que eles não existem não faz"

20 out 2024, 08:00
Tom van Daele

ENTREVISTA | Tom van Daele dedica-se a investigar o potencial das inovações tecnológicas na promoção da saúde mental e mesmo no tratamento de algumas patologias. O psicólogo belga esteve em Portugal e falou com a CNN

De uma fobia ou um trauma tratado com recurso à realidade virtual a um chatbot que pode ajudar o psicólogo no acompanhamento de um cliente, as potencialidades da tecnologia na promoção da saúde mental ou no tratamento de patologias são quase infinitas. Tom van Daele dedica-se precisamente a estudar as mais valias que a inovação tecnológica pode trazer para a psicologia. O psicólogo belga esteve recentemente em Portugal, para participar como orador convidado no 6.º Congresso da Ordem dos Psicólogos Portugueses, e falou com a CNN Portugal.

Na conversa, o especialista deixa claro que nada substitui os encontros “cara a cara” entre psicólogo e cliente e alerta para problemas como a segurança e a falta de garantias de privacidade. Para Van Daele, “toda a tecnologia e todas as aplicações, mesmo os chatbots, são meras ferramentas”. “Mesmo que esteja a ‘falar’ com um chatbot, ele não substitui um psicólogo real. Deve antes ser visto como uma versão do século XXI de um livro de autoajuda”, sublinha.

Sobre a relação entre os jovens e a tecnologia e a possível proibição de smartphones nas escolas, Tom van Daele diz que é fundamental que, em vez de proibir, a sociedade invista na literacia tecnológica das crianças e jovens e na preparação para as relações interpessoais: “Não podemos simplesmente proibir os smartphones e agir como se eles não existissem na sala de aula - em alguns países até aos 18 anos - e, ao mesmo tempo, deixar que as crianças resolvam tudo sozinhas no final de cada dia de escola”.

Tom van Daele dedica-se à investigação das potencialidades da tecnologia para a saúde mental. (Josefien Tondeleir/Arquivo pessoal Tom van Daele)

Como é que a tecnologia pode ser útil no tratamento e na promoção da saúde mental? Pode dar-nos exemplos concretos?

Pode ajudar a melhorar a qualidade dos tratamentos existentes. A realidade virtual, por exemplo, pode ser utilizada como um meio para tratar melhor as fobias (como o medo de voar ou o medo das alturas) ou mesmo os traumas, porque permite aos psicólogos criar situações e ambientes adaptados às situações e necessidades individuais dos pacientes e podem também controlar o ambiente à medida que a terapia progride. Fazer o mesmo na vida real é, por vezes, difícil (como encontrar vários locais altos) ou mesmo impossível (levar as pessoas de volta a locais onde já sofreram traumas).

Do mesmo modo, um terapeuta pode utilizar uma aplicação para smartphone para apoiar os pacientes, enquanto não estão em sessão. Na maior parte das vezes, uma sessão dura entre 50 minutos e uma hora, o que significa que os clientes ficam sem apoio durante 167 horas por semana. Uma aplicação para smartphone que os clientes possam utilizar para acompanhar o seu estado de espírito, anotar pensamentos, ou talvez até mesmo para se apoiarem em situações de crise - porque contém ferramentas de relaxamento ou o seu plano de emergência - pode ser uma ótima forma de os apoiar durante o resto da semana.

Mas nada substitui a consulta individual…

Certo, mas a tecnologia também pode ajudar a ir além da consulta individual. O ideal continua a ser falar com um psicólogo a sós. No entanto, há muito mais pessoas com necessidades do que haverá psicólogos para as apoiar. As intervenções de autoajuda online, por vezes em combinação com algum apoio ou orientação mínima por parte de um profissional, têm potencial para ajudar as pessoas, tanto em termos de prevenção como de tratamento dos problemas de saúde mental. Estas intervenções estão longe de ser perfeitas, mas podem ser uma parte do puzzle para oferecer serviços de saúde mental mais amplos e diversificados aos que deles necessitam.

A pandemia de covid-19 trouxe um aumento da utilização da tecnologia no tratamento da saúde mental. Muitas consultas presenciais passaram a ser efetuadas à distância. Que vantagens é que isso trouxe?

Durante a pandemia, os psicólogos passaram em massa para as consultas online. A principal vantagem durante a pandemia foi o facto de podermos encontrar-nos com os pacientes em segurança. Para sermos justos, essa é provavelmente a única vantagem real: a terapia continuava a ser, na maioria das vezes, o convencional um para um. É por isso que, entre as diferentes vagas da pandemia (e definitivamente no final da pandemia), muitos psicólogos voltaram aos seus antigos hábitos e começaram a ver os seus pacientes de novo cara a cara. Atualmente, sempre que o fazem, é sobretudo de um ponto de vista pragmático: para reduzir o tempo de deslocação dos doentes que vivem longe ou que se deslocam, e muitas vezes também com moderação.

Porque também há desvantagens…

Exatamente. A primeira é a questão da segurança: nem todas as plataformas comerciais são suficientemente seguras para salvaguardar a privacidade. Existem plataformas específicas, mas muitas vezes têm um custo ou não são necessariamente fáceis de utilizar pelos clientes. A segunda é o facto de, por vezes, ser muito melhor encontrarmo-nos cara a cara: mesmo que se criem circunstâncias ideais (como uma boa ligação à Internet, uma webcam, uma sala privada), um psicólogo pode perder pormenores ou nuances subtis. Além disso, em caso de crise, é muito mais difícil intervir se estivermos a centenas de quilómetros de distância em vez de estarmos na mesma sala.

Para Tom van Daele, nenhum chatbot pode substituir uma consulta presencial com um psicólogo. (Josefien Tondeleir/Arquivo pessoal Tom van Daele)

Já vimos, pelos exemplos que nos deu, que a utilização da tecnologia no tratamento e promoção da saúde mental vai muito para além das consultas à distância. Também está a investigar o potencial de aspetos como a inteligência artificial nesta matéria. Como é que esta inovação tecnológica pode ser útil?

Olhando especificamente para a inteligência artificial, as pessoas parecem ter expectativas muito elevadas em relação ao que a IA de conversação – os chatbots - lhes pode reservar. No entanto, isto não é uma coisa nova: o primeiro chatbot foi criado em 1966 por um cientista informático alemão chamado Joseph Weizenbaum. O seu chatbot, o ELIZA, funcionava de facto como um terapeuta. Ele criou-o como uma brincadeira e, apesar de não ter as capacidades das versões atuais do ChatGPT, as pessoas ficaram muito entusiasmadas e adoraram conversar com ele.

Atualmente, muitas pessoas já recorrem a “aspirantes a chatbots”, que muitas vezes foram desenvolvidos com as melhores intenções possíveis, mas cuja qualidade não pode ser garantida. Um exemplo é um chatbot chamado “The Psychologist” que pode ser encontrado no sítio Web character.ai. Não tem qualquer objetivo ou certificação médica, mas, entretanto, já teve quase 175 milhões de conversas.

Estas ferramentas não trazem riscos associados?

Escusado será dizer que parece que muitas pessoas não se importam de falar com um chatbot em vez de falarem com um psicólogo real. No entanto, é muito difícil garantir a qualidade. E o facto de não haver um “humano no circuito” a supervisionar as conversas, coloca as pessoas em risco de receberem conselhos errados e mesmo de se magoarem. No entanto, há cada vez mais investigação e desenvolvimento neste domínio e são grandes as probabilidades de, num futuro próximo, o seu psicólogo poder ser - em parte - um chatbot.

Idealmente, no entanto, a não ser que prefira o contrário, tecnologia como a IA não deve substituir os psicólogos, mas simplesmente ser utilizada para apoiar mais pessoas necessitadas e apenas aquelas que são capazes e estão dispostas a utilizá-la. Também no futuro, deverá continuar a poder contar com as boas conversas “à moda antiga” com um psicólogo, se for essa a sua preferência.

E a introdução de métodos digitais no tratamento e promoção da saúde mental não poderá conduzir a uma "despersonalização" dessa mesma saúde mental? Não pode, por exemplo, dar a impressão de que uma aplicação ou um wearable pode ser a salvação para todos os problemas e para toda a gente? E a saúde mental não envolve também precisamente o oposto, ou seja, a promoção da individualidade?

Para mim, toda a tecnologia e todas as aplicações, mesmo os chatbots, são meras ferramentas. Talvez acrescentem algo único, que não podia ser feito antes. Pense, por exemplo, na realidade virtual e nos exemplos que lhe dei anteriormente. Mas mesmo que esteja a “falar” com um chatbot, esse chatbot não substitui um psicólogo real. Deve antes ser visto como uma versão do século XXI de um livro de autoajuda. Nada mais, mas também nada menos.

Por vezes, os psicólogos, mas também os clientes, pensam que a tecnologia deve ser tratada como algo especial e diferente nos cuidados de saúde mental. Atualmente, damos-lhe muitos nomes diferentes, sendo um deles, por exemplo, “saúde mental digital”. E, sim, tem um conjunto único de caraterísticas, bem como de desafios, mas, no fim de contas, são apenas ferramentas que os psicólogos e os clientes podem utilizar.

A minha esperança é que, com o tempo, sejamos capazes de abordar esta questão de um ponto de vista verdadeiramente pragmático: utilizando-a sempre que acharmos que pode ter valor acrescentado e optando por algo mais tecnológico sempre que acharmos que seria mais adequado.

Para dar um exemplo: podemos monitorizar o estado de espírito utilizando aplicações para smartphones e os lembretes podem ser muito úteis para as pessoas não se esquecerem. Muitas vezes, podem até adicionar fotografias, se quiserem.

No entanto, se alguém sentir que um caderno e uma caneta são mais confortáveis para si, não há razão para insistir na tecnologia em si: deve ser sempre um meio e não um objetivo em si.

Tom van Daele alerta que não basta proibir o uso de telemóveis nas escolas. É preciso preparar os jovens para uma utilização correta dos aparelhos. (Josefien Tondeleir/Arquivo pessoal Tom van Daele)

Que implicações negativas concretas pode a tecnologia ter na saúde mental das pessoas, especialmente dos jovens? Sabemos, por exemplo, que há um número crescente de dependências da tecnologia e também de isolamento social alimentado por ela...

Isto pode parecer um pouco limitado, mas a maior parte da minha investigação e do meu trabalho centra-se principalmente no valor acrescentado da tecnologia e, consequentemente, é sobre isso que posso facilmente falar mais, com base na minha própria investigação e conhecimento da literatura científica. No entanto, não é que esteja a fechar os olhos aos problemas óbvios que também surgem devido à tecnologia. Os jogos online e as redes sociais podem, por exemplo, ser ótimos - e são-no para muitos jovens: para se divertirem, para se tornarem hábeis, para encontrarem pessoas que partilham as mesmas ideias em todo o mundo.

No entanto, para alguns deles, as consequências são muito menos positivas.  A dependência de jogos foi, por exemplo, um problema de saúde mental contestado no passado, mas está a aparecer cada vez mais no radar internacional como uma nova forma de dependência de não substâncias, semelhante à dependência do jogo físico, por exemplo.

Do mesmo modo, as redes sociais têm tido um impacto profundo na autoestima e na autoimagem de muitos adolescentes, especialmente das raparigas, de uma forma que vai muito além dos efeitos dos meios de comunicação tradicionais no passado. Algumas das formas mais excessivas incluem, por exemplo, grupos em plataformas como o Instagram, muitas vezes ocultos, onde as jovens acabam por entrar em ambientes tóxicos que partilham dicas sobre como se mutilar, ou onde os distúrbios alimentares são glorificados. O cyberbullying é mais um exemplo de como a tecnologia pode pegar num problema já existente, o bullying, e até intensificar o seu impacto nas vítimas.

Parece-me bastante claro que estes desafios são reais e não devem ser subestimados. Uma grande responsabilidade recai sobre a grande tecnologia, que facilitou involuntariamente estas questões, mas que também não atuou atempadamente e de forma suficiente tendo em conta os melhores interesses dos jovens. Simultaneamente, a sociedade no seu todo tem de considerar cuidadosamente o papel que também tem de desempenhar, para oferecer apoio adequado – incluindo offline - para lidar com a saúde mental dos jovens.

Recentemente, o Ministério da Educação português emitiu uma recomendação às escolas para limitarem a utilização de smartphones pelos jovens. Recomenda mesmo a proibição da utilização de telemóveis dentro do recinto escolar por crianças até aos 12 anos de idade. O que pensa sobre este assunto?

Este é realmente um tema quente neste momento, não só em Portugal, mas em toda a Europa e até no mundo. Mais uma vez, tenho de ser muito ligeiro, uma vez que não é a minha principal área de especialização. Mas penso que uma proibição nas escolas pode, até certo ponto, fazer sentido, especialmente para as crianças mais pequenas. Não porque os smartphones, as redes sociais ou os jogos que se podem jogar neles sejam inerentemente e exclusivamente maus. No passado, algumas pessoas compararam esta questão ao tabagismo, mas penso que isso é um pouco exagerado. Os smartphones também podem fazer muitas coisas maravilhosas para os jovens.

Mas também precisamos de educar e moldar as mentes dos jovens e as suas interações com os colegas no mundo real e as escolas são excelentes locais para o fazer. Mesmo que lhes tiremos o smartphone, continuam a existir muitas oportunidades para os usarem fora da escola. É por isso que, ao mesmo tempo, a utilização de smartphones - para o bem e para o mal - também deve ser discutida nas nossas escolas. Não podemos simplesmente proibir os smartphones e agir como se eles não existissem na sala de aula - em alguns países até aos 18 anos - e, ao mesmo tempo, deixar que as crianças resolvam tudo sozinhas no final de cada dia de escola.

Resumindo: proibir os telemóveis na escola pode fazer sentido, mas fingir que eles não existem não faz.

Em Portugal, temos uma enorme falta de profissionais de saúde mental e a saúde mental não é financeiramente acessível a toda a gente. Dentro do sistema público de saúde, é uma espécie de parente pobre dos cuidados de saúde. É muito diferente na Bélgica, por exemplo?

Existem semelhanças entre Portugal e a Bélgica no que diz respeito a esta questão, mas na verdade, mesmo em toda a UE, os cuidados de saúde mental sempre foram uma parte subfinanciada dos cuidados de saúde. “Não há saúde sem saúde mental” é um conceito muito bonito, mas até há pouco tempo raramente foi posto em prática. Na Bélgica, registou-se, no entanto, uma evolução positiva, que começa, em parte, com a desestigmatização da procura de ajuda para os problemas de saúde mental. Especialmente as gerações mais jovens reconhecem cada vez mais o facto de que “não há problema em não estar bem”. Isto conduziu a uma maior aceitação social da necessidade de cuidados de saúde mental e até resultou em mais meios para apoiar o setor.

Consequentemente, temos assistido a um aumento gradual do número de profissionais de saúde mental que podem apoiar os clientes através de cuidados (parcialmente) reembolsados. Não estou a dizer que já chegámos lá. Longe disso. Mas a evolução é sem dúvida positiva. Resta-me esperar que, num futuro próximo, se registem progressos semelhantes também em Portugal.

Todos nós temos a sensação de que a saúde mental se deteriorou. É apenas uma sensação ou é mesmo verdade?

A realidade não é, provavelmente, assim branca ou preta. Por um lado, vivemos numa época de grande velocidade, em que corremos o risco de estar sempre online, sempre disponíveis, sempre ligados. E isso pode ser muito cansativo. Não é de surpreender que inquéritos de longa duração, como o “Stress in America”, que tem vindo a analisar o grau de stress dos americanos há quase duas décadas, tenham registado um aumento constante do stress.

Por outro lado, as pessoas estão realmente mais dispostas a falar quando não se sentem bem, defendendo-se quando sentem que as coisas estão a piorar. Se antes sofriam em silêncio, agora já não sofrem. Consequentemente, as coisas estão agora mais visíveis e expostas, o que pode fazer com que a situação pareça pior do que é na realidade. A longo prazo, espero que esta atenção acrescida à saúde mental leve a que se tomem mais medidas para apoiar as pessoas quando estas precisam e melhore o nosso bem-estar geral. Com ou sem a ajuda da tecnologia.

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