Tina Turner tornou-se um símbolo de sex appeal, resiliência, empoderamento
As pernas longas e esguias eram a sua imagem de marca. Mas, nada de equívocos, Tina Turner sempre foi muito mais do que um belo par de pernas: a voz potente, as canções que sabemos cor, o seu jeito eletrizante de dançar, a energia que trazia para o palco, ela era a “Rainha do Rock’n Roll” e uma das artistas mais populares do século XX.
Tina Turner estava longe dos holofotes há mais de uma década. Reformou-se em 2009, terminada a digressão que celebrava os seus 50 anos de carreira: “Entrei naquele avião, respirei fundo e disse: Acabou. Realmente senti que tinha acabado e estava feliz por ter acabado. E fui para casa”, contou na altura.
Quis sair enquanto ainda estava em forma. Ou, como se costuma dizer, sair antes da festa terminar. E queria fazer aquelas coisas simples da vida que nunca tinha tido tempo para fazer, como tratar do jardim ou ficar na cama a ver filmes. “Não canto, não danço, não me visto para sair”, confessou numa entrevista em setembro de 2019 ao The New York Times. E, ao contrário do que se poderia pensar, não tinha saudades do palco. “Estava cansada de cantar e de fazer toda a gente feliz”, explicou. “Foi isso que fiz a minha vida inteira.”
A reforma foi apenas interrompida para colaborar com a equipa do espetáculo "Tina: The Tina Turner Musical", baseado na vida da cantora, que se estreou em Londres em 2018. Foi depois um sucesso na Broadway, teve 12 nomeações para os prémios Tony e apenas viu a sua carreira interrompida pela pandemia. Tina deu algumas dicas à atriz Adrien Warren e ficou bastante satisfeita quando "se viu" em palco. Três anos mais tarde, outra interrupção, para dar o seu testemunho no documentário “Tina”, lançado em 2021 e disponível na HBO.
Com Ike, para o melhor e para o pior
Tina ainda não era Tina quando conheceu Ike Turner. Tinha 17 anos, chamava-se Anna Mae Bullock e tinha-se mudado há pouco tempo para St. Louis.
Nascida a 26 de novembro de 1939 em Brownsville, Tennessee, Estados Unidos da América, Anna não teve uma infância fácil. Durante a guerra, os pais deixaram-na com a avó e foram trabalhar para Knoxville. Pouco depois de a família estar reunida, quando Anna tinha 11 anos, a mãe saiu de casa, fugindo dos maus tratos do marido. Quando o pai voltou a casar, Anna foi novamente morar com a avó. Só depois da morte da avó, Anna foi viver com a mãe e a irmã em St. Louis.
Foi então que, em 1957, ela conheceu o músico Ike Turner, que na altura liderava os Kings of Rhythm, e ficou fascinada com o músico. Foi ter com ele e pediu que a deixasse cantar na banda. Estava lá atrás no coro e usava o nome artístico Little Ann até que Ike decidiu dar-lhe uma oportunidade como solista. A sua primeira gravação, Fool in Love, foi lançada em 1960. E foi um sucesso. Ike convenceu-a a mudar de nome para passarem a ser Ike & Tina Turner.
Entre outros temas, a dupla lançou It's Gonna Work Out Fine, I Idolize You, River Deep, Mountain High (produzido por Phil Spector) e fez as suas versões de sucessos como Come Together, Honky Tonk Woman e Proud Mary - que em 1971 chegou ao número 4 da tabela de vendas da Billboard. Ike cantava mas era sobretudo compositor, guitarrista e produtor. Tina cantava, dançava e, aos poucos, com a sua energia e a sua voz, tornou-se uma estrela do R&B. Em novembro de 1967, apareceu sozinha na capa do segundo número da revista Rolling Stone (no primeiro número, esteve John Lennon).
No início, Tina e Ike eram apenas amigos. Ela chegou a namorar com o saxofonista da banda, Raymond Hill, mas a relação terminou quando ela estava grávida do seu primeiro filho, Craig (1958-2018). Pouco depois, Tina e Ike acabaram por se envolver e em 1960 tiveram um filho, Ronald Renelle Turner (1960-2022), que se juntou a Craig e aos dois filhos que Ike já tinha, Ike Jr. e Michael.
Casaram em Tijuana em 1962. No entanto, Tina Turner diria mais tarde que nunca esteve realmente apaixonada por Ike. Durante os 16 anos em que estiveram juntos, Ike roubou-a, atirou-lhe café quente para cima, partiu-lhe o queixo, pôs-lhe várias vezes os olhos negros. Mas, apesar de consumo abusivo de drogas por parte dele e de toda a violência física e psicológica, Tina foi ficando. Tinha muito medo e pouco dinheiro. E tinham uma carreira juntos. Em 1976, após mais uma discussão violenta, Tina deixou Ike. Tinha apenas 36 cêntimos na carteira e a cabeça inchada das pancadas que tinha levado. Teve que pedir ajuda aos amigos para se esconder do marido furioso. Seguiram-se tempos complicados. Todos os espetáculos de Ike & Tina Turner foram cancelados e ninguém parecia interessado em patrocinar a carreira a solo de uma mulher negra de 37 anos. Mas ela não voltou. O divórcio ficou concluído em 1978. A única coisa com que Tina quis ficar foi com o seu nome artístico.
A primeira vez que a cantora falou publicamente dos abusos de que foi alvo foi no livro I, Tina, publicado em 1986. A partir de então, passou a falar abertamente do passado e deixou de ser só a cantora que toda a gente conhecia para ser também vista como uma sobrevivente. Numa entrevista a Oprah em 2005, Tina exortou todas as mulheres que estão presas num relacionamento abusivo a “irem embora”, já que nada poderia ser pior do que ficar com um parceiro que as maltrata.
Ike Turner morreu em 2007 com uma overdose de cocaína.
O sucesso mundial
Após o divórcio, Tina Turner chegou a limpar casas para pagar as contas. Lançou o seu terceiro álbum a solo, Rough, com um som mais próximo do rock, a que se seguiu Love Explosion, mas os resultados ficaram muito longe do que ela esperava. Parecia que a sua carreira tinha chegado ao fim. Atuava em bares e hotéis, fazia o circuito dos “cantores da nostalgia”.
Aproveitando o relativo sucesso europeu da sua versão de Let’s Stay Together, de Al Green, Tina mudou-se, então, para o Reino Unido e recomeçou praticamente do zero. Gravou Private Dancer, o seu álbum de comeback, em apenas duas semanas de 1984. E foi, de facto, um regresso em grande.
O segundo single, What’s Love Got to Do With It, pôs Tina Turner nos tops e levou-a - pela primeira e única vez - até ao número 1 nos EUA. O disco iria ainda valer-lhe quatro prémios Grammy, dois American Music Awards e um MTV Video Music Award.
Em 1985 a cantora parecia estar em todo o lado. Foi protagonista, ao lado de Mel Gibson, de Mad Max 3: Além da Cúpula do Trovão, realizado por George Miller e de cuja banda sonora se tornou popular o tema We Don't Need Another Hero. Lançou com Brian Adams a canção It’s Only Love, cantou com Migg Jagger no Live Aid e participou no tema We Are the World.
Agora a solo, Tina Turner voltou à estrada. As décadas de 80 e 90 foram a época dos grandes concertos de estádio e Tina Turner foi uma das artistas que mais aproveitou o momento. Com o patrocínio da Pepsi Cola, embarcou na Break Every Rule World Tour que, entre 1987 e 1988, passou por 13 países e teve mais de 4 milhões de espectadores, permanecendo até hoje como a digressão com mais público de uma artista feminina.
Em janeiro de 1988, Tina Turner atuou para aproximadamente 180 mil pessoas no Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, Brasil, estabelecendo um novo Recorde do Guinness para a maior audiência que pagou para ver um concerto de um artista a solo (apesar de o recorde ter sido entretanto batido, este concerto continua no top-10).
A cantora esteve duas vezes em Portugal: em 1990 no Estádio de Alvalade e em 1996 no Estádio do Restelo.
Pelo meio, acumulou êxitos, como Typical Male (1986) e The Best (1989), lançou coletâneas e álbuns ao vivo e viu a sua vida ficcionada no filme What’s Love Got to Do With It (1993), protagonizado por Angela Bassett e Laurence Fishburne, e para o qual fez o tema I Don't Wanna Fight. Em 1995 deu voz ao tema de mais um filme de James Bond, Golden Eye, de autoria de Bono e The Edge, dos U2. O último álbum de estúdio da artista, Twenty For Seven, data de 1999.
Ao longo da sua carreira, Tina Turner vendeu mais de 100 milhões de discos e recebeu 12 prémios Grammy, incluindo um Grammy de Carreira (em 2018). Em 2004, a revista Rolling Stone colocou-a no 61º lugar dos 100 Maiores Artistas de Sempre. Em 2020, Private Dancer foi adicionado ao National Recording Registry, o registo de gravações da Biblioteca do Congresso.
O renascimento pessoal
Em 1985, na altura em que lançava a sua carreira a solo, Tina Turner conheceu o alemão Erwin Bach, que trabalhava como promotor na Emi. Ela tinha 46 anos e ele 30. Foi amor à primeira vista. O casal mudou-se para a Suíça em 1995 e oficializou a relação numa cerimónia civil em julho de 2013. Ele chamava-lhe “Bärli” (diminutivo alemão para “pequeno urso”) e “Schatzi”(“querida”).
“Como budista (e como alguém que viveu por muito tempo), aprendi que existe o nascimento, o dia em que se nasce, e o renascimento, quando algo muda ou nos é dada uma segunda hipótese”, escreveu Tina Turner na introdução da biografia lançada em 2019, "Tina Turner: That's My Life". A cantora considerava que o seu segundo casamento, com Erwin Bach, foi um dos eventos que “transformou profundamente” a sua vida. E o outro foi a decisão de Bach, em 2017, lhe oferecer um rim quando o dela falhou: “Gosto de dizer que o meu novo aniversário é 7 de abril, o dia do transplante, o dia em que o meu marido abnegadamente me deu o presente da vida e o meu corpo renasceu”.
Tina Turner foi educada como baptista mas converteu-se ao budismo, seguindo a corrente de Soka Gakkai. Foi durante aqueles anos terríveis ao lado de Ike Turner que descobriu o budismo. Para conseguir aguentar a situação, ela estava "disposta a tentar qualquer coisa". Começou por cantar alguns dos mantras - uma prática tradicional que serve para preparar a mente para a meditação - e por meditar.
A cantora admitia que a mudança foi importante porque a fez ver o mundo de uma outra perspetiva: aceitando melhor o que a rodeia e focando-se naquilo que é essencial e que está ao seu alcance mudar. No entanto, ela acreditava que todas as religiões acabam por ser semelhantes, apenas usam meios e palavras diferentes para chegar ao mesmo destino. E cada pessoa terá de escolher o melhor para si. Essa é uma das lições que transmite no livro Happiness Becomes You: A Guide to Changing Your Life for Good, publicado em dezembro de 2020.
Tina Turner tornou-se um símbolo de sex appeal, resiliência, empoderamento. Uma inspiração para muitas mulheres. Mas afirmava que nunca teve intenção de ser um símbolo para ninguém, limitou-se a viver a sua vida. “Nunca quis ser uma pessoa forte”, dizia. “Tive uma vida terrível. E segui em frente. Uma pessoa apenas continua a viver e espera que algo aconteça.”
Em 2013, aos 73 anos, depois de ter sido a pessoa mais velha a aparecer na capa da revista Vogue, Tina Turner confessava, numa entrevista a Oprah, que era feliz como nunca imaginara que poderia ser e que já não tinha medo de morrer: “Tenho alguma curiosidade de saber o que vem a seguir”.