Defende o direito ao aborto e o casamento gay, é amante de carne e goza com o vegetarianismo da filha. Apoiou o fim dos castigos a militares que assumissem a sua homossexualidade e foi uma escolha inesperada de Kamala Harris para vice-presidente - Walz sentiu-se "como no primeiro dia de escola" quando soube que foi escolhido. Esta é a história dele
Ainda Kamala Harris não tinha escolhido o seu parceiro na corrida à Casa Branca e Tim Walz já fazia manchetes nos media norte-americanos com uma série de intervenções públicas em que, de sorriso bonacheirão, se referia aos rivais republicanos com uma simples expressão: “São um bando de tipos esquisitos”.
Até há poucos meses figura praticamente desconhecida fora do estado onde vive e trabalha desde 1996, os vídeos em que o atual governador do Minnesota criticava Donald Trump e o seu vice, J.D. Vance, tornaram-se virais dias antes de Harris o anunciar como parceiro na corrida à Casa Branca, catapultando-o para a ribalta, dentro e fora dos Estados Unidos.
“Esquisito não é uma palavra que a maioria das pessoas use para descrever Walz”, referia o New York Times por essa altura. “Tem uma personalidade terra-a-terra, é estável [e] os seus apoiantes dizem que pode trazer um historial de conquista de eleitores moderados com raízes profundas no Midwest rural” – para alguns o ingrediente certo na receita para destronar Trump e o jovem senador do Ohio que escolheu como seu parceiro, quando ainda era Joe Biden o candidato democrata à presidência.
Para o Washington Post, “esquisito é o insulto mais eficaz que os democratas já tentaram” na competição com os republicanos – e se isso contribuir para a vitória do partido em novembro, vão devê-lo a Tim Walz.
Ao escolher um homem branco de 60 anos com provas dadas na política mas com um passado igual ao de tantos outros da classe média norte-americana, Kamala Harris evitou opções mais populares ou mais controversas (pense-se no ex-astronauta e senador pelo Arizona Mark Kelly ou no governador da Pensilvânia, Josh Shapiro), sem deixar de apontar a mira ao punhado de estados indecisos que vão definir os resultados destas presidenciais.
Ex-militar e ex-professor da escola pública, Walz passou os verões da infância e da adolescência a caçar e a plantar vegetais no estado-natal do Nebraska, antes de se alistar na Guarda Nacional aos 17 anos, após a morte do pai. Agrega em si traços normalmente atribuídos aos republicanos rurais e o progressismo e a defesa do Estado social dos democratas – defendendo o direito ao aborto ou o casamento gay enquanto se confessa amante de carne e goza com o vegetarianismo da filha (chamada Hope, esperança, nascida por fertilização in vitro após Walz e a mulher terem tentado, e não conseguido, conceber filhos sem ajuda).
Em 2023, quando ainda ninguém sonhava que Walz podia vir a ser considerado para vice-presidente dos Estados Unidos, a sua pequena revolução no Minnesota já estava no radar de Barack Obama, que em maio escreveu na rede social X: “Se precisam de ser lembrados que as eleições têm consequências, vejam o que está a acontecer no Minnesota”.
O treinador Walz
Se Kamala Harris é uma democrata consumada do estado superliberal da Califórnia com uma longa carreira política, Tim Walz é o seu contraponto: um homem de meia-idade com raízes no Nebraska, professor de carreira, casado com outra professora, pai de dois filhos nascidos via fertilização in vitro, que serviu na Guarda Nacional durante 24 anos e que ficou muito marcado pela morte do pai pouco depois de concluir o liceu.
A última semana de vida do pai, partilhou o democrata durante a campanha para governador do Minnesota em 2018, “custou à minha mãe ter de voltar ao trabalho para pagar as contas” do hospital onde James F. Walz esteve internado em coma, acabando por sucumbir à doença. “Penso que isto acabou por moldar a minha vida. Seguramente moldou-me no que diz respeito aos cuidados de saúde.”
Nos anos seguintes, e depois de décadas a cuidar da casa e dos filhos, Darlene Walz arranjou trabalho num lar de idosos sem nunca perder o seu “otimismo incansável”, nas palavras do filho, que diz que demorou a perceber onde a mãe encontrava essa energia. “Lembro-me de pensar ‘o nosso pai acabou de morrer, não temos dinheiro nenhum, vais ter de arranjar um emprego quando nunca trabalhaste fora de casa…”, recordava Walz em 2019. “E a minha mãe disse-me simplesmente ‘vai dar-me uma oportunidade de aprender’.”
Hoje, é esse mesmo otimismo que é reconhecido ao candidato democrata a vice-presidente, a quem muitos apontam uma “energia saudável e popular”, o vizinho do lado que, antes de se lançar na política, passou décadas a dar aulas de geografia e a treinar miúdos da escola que sonhavam ser as próximas estrelas do futebol americano.
Enquanto governador do Minnesota aprovou programas sociais para garantir refeições escolares gratuitas para todos e licenças de parentalidade pagas pelo estado – numa tendência contrária à do Estado federal num dos países mais desenvolvidos do mundo que menos subsídios e apoios paga aos seus trabalhadores e população mais vulnerável. Mas o impacto que teve no dia-a-dia dos cidadãos remonta à época em que era professor e treinador assistente no Liceu de Mankato West, uma cidade de 45 mil residentes a cerca de 130 quilómetros a sul de Minneapolis.
Por várias vezes eleito “professor mais inspirador” do liceu, é lembrado como uma pessoa terra-a-terra que distribuía ‘hi-5s’ nos corredores da escola, que ajudou a equipa a vencer o campeonato estatal pela primeira vez em décadas e que fez a diferença nas vidas de centenas de alunos, entre eles Jacob Reitan. Há 25 anos, quando ser gay era garantia de assédio e bullying, quando Reitan começou a receber ameaças de morte em cartas no correio e em graffiti à porta de casa, o jovem procurou a ajuda da escola. E saindo em seu apoio, Walz aceitou encabeçar a aliança hetero-gay do distrito escolar para unir alunos de todas as orientações sexuais.
Foi o prelúdio de uma carreira política marcada pela defesa sem pudores da igualdade e liberdade sexual – apoiando medidas como o casamento gay e o fim dos castigos a militares que assumissem a sua homossexualidade – num círculo de maioria rural e conservadora, muito antes de os democratas se tornarem populares entre esse eleitorado. “Era importante ter uma pessoa de quem todos gostavam na escola, um treinador de futebol que tinha servido nas forças armadas”, diz Reitan, hoje com 42 anos. “Ter Tim Walz como conselheiro da aliança hetero-gay fez-me sentir seguro em ir para a escola.”
Reitan não é o único a recordar um professor marcante e inspirador. Desde que Kamala Harris escolheu Tim Walz, dezenas têm sido contactados por meios de comunicação social para partilharem as suas memórias do antigo professor – e nenhum tem uma história pouco abonatória para contar.
“Ele puxou mesmo por mim”, contava há alguns meses Dan Clement, hoje com 43 anos, que teve Walz como treinador quando se preparava para abandonar o liceu sem concluir os estudos. Foi ele que o fez mudar de ideias durante uma conversa com um grupo de defesas da equipa de Mankato West, no verão de 1998. “Ele mostrou que se preocupava realmente, ao ponto de eu pensar ‘ok, vou continuar na escola e vou trabalhar arduamente’. Joguei futebol por ele, não joguei futebol por mais nada. Para nós é o treinador Walz, não é o governador Walz.”
O governador Walz
Os planos de seguir uma carreira política não estiveram sempre lá. Walz atribui a sua decisão de deixar de ser professor a um dia particular em 2004, quando decidiu levar um grupo de alunos a assistir ao vivo a um discurso que o então presidente norte-americano George W. Bush ia proferir em Mankato. Queria proporcionar-lhes uma experiência única no seu percurso educativo, mas porque Walz já tinha sido voluntário numa campanha do Partido Democrata, a equipa de Bush não os deixou entrar.
“Os meus alunos, independentemente do partido político, mereciam testemunhar o momento histórico de um presidente em funções vir à nossa cidade”, partilhou Walz no Twitter em agosto de 2020. “Foi nesse momento que decidi candidatar-me [à Câmara dos Representantes]. Embora tivesse uma paixão pela política, nunca me tinha envolvido demasiado em campanhas políticas e muitas pessoas pensavam que um professor de liceu e treinador de futebol não tinha qualquer hipótese.” No ano seguinte, provou que estavam erradas, derrotando o republicano Gil Gutknecht, que se candidatava pela sétima vez a um dos oito assentos do Minnesota na câmara baixa do Congresso federal.
Após servir três mandatos consecutivos, e no regresso à política estatal enquanto governador, foi várias vezes alvo de críticas dos republicanos do Minnesota por investir em programas como o das refeições grátis para todas as crianças da pré-primária até ao 12.º ano, financiado com mais de 400 milhões de dólares arrecadados em impostos que os opositores defendem que deveriam ser usados para outros fins.
“O governador Walz é conhecido como o ‘governador da educação’, porque tem sido um defensor inabalável dos estudantes e professores das escolas públicas e um aliado das famílias trabalhadoras e dos sindicatos”, referiu Becky Pringle, presidente da Associação Nacional de Educação dos EUA, quando Kamala Harris anunciou a sua escolha.
Representando cerca de três milhões de educadores, professores e outros funcionários escolares, o sindicato diz que toda a comunidade educativa está “entusiasmada e unida” em torno da parelha Harris-Walz. “Sabemos que podemos contar com uma parceria contínua e real para alargar o acesso dos alunos a refeições escolares grátis, para investir na saúde mental dos alunos, para garantir que nenhum educador tem de suportar o peso de uma dívida estudantil esmagadora e para fazer tudo o que for possível para manter as nossas comunidades e escolas seguras”, disse Pringle em comunicado.
O vice-presidente Walz?
A dias da convenção nacional democrata no final de agosto, numa publicação de Instagram, Kamala Harris justificou a escolha de Walz pelas suas “profundas convicções na luta pelas famílias de classe média”. Na resposta ao que classificou como “a honra de uma vida”, o governador escreveu na X: “A vice-presidente Harris está a mostrar-nos a política do que é possível. Lembra-nos um bocado do primeiro dia de escola.”
Se Harris é a primeira mulher negra e de ascendência sul-asiática a candidatar-se a presidente dos Estados Unidos, Walz traz para a candidatura um equilíbrio demográfico que promete apelar a uma faixa do eleitorado mais rural que se sente desiludida e abandonada pelos políticos. Foi isso que motivou não apenas a sua escolha para o bilhete democrata, como também a escolha de J.D. Vance pela candidatura Trump.
Autor de “Hillbilly Elegy”, J.D. Vance, senador de 39 anos, vem do Ohio, um estado do Midwest rural que apela à base MAGA que já apoia Trump - isto apesar de o passado de Vance ter sido marcado por duras críticas ao ex-presidente e novamente candidato republicano. E é por isso que muitos analistas veem na escolha de Walz uma jogada de mestre, apesar do relativo impacto dos vice-presidentes em corridas presidenciais.
Tendencialmente, as escolhas para a vice-presidência ajudam sobretudo a fazer a diferença junto do eleitorado dos estados de onde vêm – o que não se aplica à realidade destas presidenciais, dado que nem o Ohio nem o Minnesota são estados indecisos. Foi por isso que muitos analistas chegaram a apostar as fichas em Josh Shapiro, o governador da Pensilvânia, aquele que pode vir a ser o estado mais decisivo da votação em novembro.
Walz, contudo, poderá fazer pender a balança de outra forma, a começar pelo facto de estar sustentadamente (muito) à frente de JD Vance em todas as sondagens desde agosto – bem diferente do que acontece com Harris e Trump, que continuam taco-a-taco nos sete grandes estados de batalha destas eleições. E aí entram em cena as raízes do democrata no Nebraska, um minúsculo estado rural cujo voto único no Colégio Eleitoral pode servir para o desempate final, se a corrida entre Kamala e Donald se provar tão renhida quanto antecipam os inquéritos de opinião.
Numa brincadeira com o título do livro-sensação de Vance (numa tradução livre “Elegia aos Pacóvios”), um familiar de Walz que vive até hoje na pequena cidade de Valentine dizia ao NYT há um mês: “Eu sou um dos primos pacóvios!”. E será muito graças ao pacóvio Walz, cujas pequenas poupanças de vida contrastam com o património de mais de 10 milhões de dólares do pacóvio J.D., que apesar de empatada com Trump a nível nacional, e quando falta apenas um mês para a ida às urnas, Harris está à frente do republicano no Nebraska com uma margem de 9 pontos.