"Vi algumas coisas escandalosas, íntimas": investigação da Reuters revela que funcionários da Tesla acederam a vídeos dos clientes gravados pelas câmaras dos veículos

8 abr 2023, 14:39
Tesla e carros elétricos (imagem Getty)

Nove ex-funcionários denunciam várias situações de alegada violação da privacidade dos proprietários dos veículos, nomeadamente "alguns objetos de cariz sexual" e até o acesso à morada dos clientes

"Os seus dados permanecem consigo." Esta é a política de privacidade da Tesla, que está, aliás, destacada no site da empresa de carros elétricos. Mas, de acordo com uma investigação da agência Reuters, não será bem assim.

Segundo a investigação, nove ex-funcionários da Tesla admitiram ter acesso às imagens gravadas pela câmara incorporada nos veículos, que seriam depois partilhadas entre colegas através de um software de mensagens internas, o Mattermost. De acordo com os ex-funcionários, os vídeos privados tanto poderiam mostrar "situações embaraçosas" da vida dos proprietários do veículo como "situações mundanas", como imagens de cães ou sinais de trânsito que depois eram transformados em 'memes'.

"Vi algumas coisas escandalosas, como cenas de intimidade, mas não de nudez. Havia muita coisa que nunca na vida gostaria que alguém me visse a fazer", revelou um antigo funcionário à Reuters, concretizando que algumas dessas cenas incluíam "objetos embaraçosos", como "algumas peças de roupa, alguns objetos de cariz sexual".

Os ex-funcionários da Tesla também partilharam vídeos de acidentes e situações de violência no trânsito. De acordo com os relatos, um dos vídeos partilhados mostrava um Tesla a conduzir a alta velocidade numa zona residencial até atingir uma criança que estava a andar de bicicleta. O vídeo difundiu-se pelo escritório da Tesla em San Mateo, Califórnia, através de mensagens de grupo privadas entre os colegas, tal como "um incêndio", descreveu um ex-funcionários.

De acordo com as entrevistas, a Reuters conseguiu perceber que esta prática de partilha de vídeos e imagens dos proprietários da Tesla ocorreu pelo menos entre 2019 e 2022, não sendo certo se ainda se mantém. Um ex-funcionário explicou à Reuters que alguns dos vídeos pareciam ter sido gravados mesmo quando os veículos estavam estacionados ou desligados.

"Nós conseguíamos ver as garagens das pessoas e as suas propriedades privadas. Se um cliente da Tesla tivesse algo que se destacasse na sua garagem... esse era o tipo de coisas que as pessoas partilhavam", conta um antigo trabalhador da tecnológica fundada por Elon Musk.

"Nós conseguimos ver coisas mesmo íntimas"

Dois dos nove ex-funcionários da Tesla entrevistados pela Reuters admitem que esta partilha de imagens pessoais não é algo que os incomode, até porque, argumentam, foram os próprios clientes que deram autorização para a partilha desses dados. 

Mas há quem manifeste algum desconforto com esta prática. "Era uma violação da privacidade, para ser honesto. Eu cheguei a dizer, em jeito de brincadeira, que nunca iria comprar um Tesla por saber a forma como eles tratam as pessoas", contou um ex-funcionário.

Outro ex-funcionário admitiu ter ficado "incomodado" com esta situação: "As pessoas que compram o carro não sabem que a sua privacidade não está a ser respeitada. Nós conseguimos vê-los a pôr a roupa a lavar e outras coisas mesmo íntimas. Nós conseguimos ver os filhos deles."

Já um outro ex-funcionário confessa não ver nada de errado com a partilha de imagens, mas sim com uma função que permite ter acesso aos dados de localização das gravações no Google Maps. Ou seja, através destes vídeos, os funcionários da Tesla podem saber a morada dos proprietários dos carros. Para o antigo trabalhador da empresa, citado pela Reuters, isto sim é "uma invasão maciça da privacidade" das pessoas.

Citado pela Reuters, David Choffnes, diretor executivo do Instituto de Cibersegurança e Privacidade da Northeastern University, em Boston, classificou esta prática como algo "moralmente repreensível".

"Qualquer ser humano normal ficaria chocado com isto”, observou, sublinhando que a circulação de dados privado pode mesmo constituir uma violação da política de privacidade da Tesla, podendo vir a ser alvo de uma intervenção da Federal Trace Comission (Comissão Federeal de Rastreamento, em tradução livre), uma agência do governo norte-americano encarregue da privacidade dos consumidores nos EUA.

Partilha tinha como objetivo "quebrar a monotonia" do trabalho

A política de privacidade da Tesla está resumida no seu site oficial: "Nós não vendemos nem alugamos os seus dados pessoais a ninguém, seja qualquer for o propósito. A não ser que o autorize caso seja necessário para realizar serviços em seu nome - os seus dados ficam consigo."

A empresa garante ainda que "não mantém um histórico das localizações" do Tesla, nem faz qualquer associação entre as localizações dos vídeos e a conta do proprietário - mas há uma exceção. "A não ser que haja uma séria preocupação de segurança, como no caso de um acidente, a Tesla não associa a sua localização à sua conta, nem mantém um histórico dos locais onde esteve."

A Reuters tentou perceber o porquê de os funcionários partilharem este tipo de conteúdos entre si. Respondendo a esta questão, um ex-funcionário confessou que o faziam para "quebrar a monotonia" do trabalho ou até para conquistar a admiração dos colegas.

"Se víssemos algo divertido que pudesse provocar uma reação, publicávamos. Mais tarde, as pessoas vinham ter connosco e diziam 'vi o que publicaste, era engraçado'", descreveu o antigo trabalhador, acrescentando que "os funcionários que eram promovidos para cargos de liderança costumavam partilhar muitos desses conteúdos e ganharam notoriedade por serem engraçados".

A Reuters não conseguiu ter acesso a qualquer imagem ou vídeos partilhados entre os funcionários da Tesla. Os antigos trabalhadores entrevistados garantem que não guardam os vídeos.

A agência de notícias também não conseguiu determinar se esta prática de partilha de imagens ainda se mantém entre nos escritórios da Tesla e diz ter tentado contactar a empresa de Elon Musk, sem sucesso.

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