Ainda há, em Portugal, quem queira, acha que pode e garante que sabe fazer a “conversão” de homossexuais em heterossexuais – e de pessoas que não se identificam com o género que consta do bilhete de identidade. Ordem dos Psicólogos alerta para potenciais “consequências terríveis” nas vítimas. O Parlamento discute esta quarta-feira quatro projetos para criminalizar e penalizar essas práticas.
A Associação ILGA Portugal congratula-se com a discussão no Parlamento de quatro projetos de lei para criminalizar e penalizar práticas de conversão sexual e de identidade de género. A reivindicação, lembra Ana Aresta, presidente da ILGA Portugal, já tem aliás “vários anos”.
“É muito importante que esta discussão veja finalmente a luz do dia. É uma reivindicação que temos vindo a fazer há anos. Este respaldo na lei é muito importante para a prevenção. O facto de não haver uma punição na lei fazia com que as pessoas que levavam a cabo estas práticas se sentissem impunes”, considera Ana Aresta, em declarações à CNN Portugal.
Os diplomas em discussão esta quarta-feira no Parlamento são apresentados pelo Partido Socialista (PS), Bloco de Esquerda (BE), Partido Pessoas, Animais e Natureza (PAN) e Livre. Atualmente, a lei é omissa quanto a práticas de conversão.
“Achamos que há aqui várias propostas que vão no sentido certo. No sentido em que temos visto robustecer-se um consenso, quer a nível nacional, quer a nível internacional, de que estas práticas são equivalentes a uma tortura. O próprio relator da ONU sugeriu que seria equivalente a isso”, lembra Rui Tavares, deputado único do Livre, a poucos minutos de entrar para a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, onde os diferentes diplomas iam a discussão.
A Associação ILGA Portugal denuncia que continua a atender, no seu serviço de apoio psicológico, “várias pessoas que apontam para o facto de lhes terem sido sugeridas estas abordagens” a dado momento da sua vida, por exemplo por profissionais de saúde ou estruturas religiosas. A associação debate-se com a dificuldade de rastrear estes casos, muitas vezes silenciados por medo ou por falta de reconhecimento das vítimas de que foram sujeitas a práticas desta natureza.
“Estamos a falar de pessoas com poder. De profissionais de saúde, mas também de estruturas religiosas que têm algum ascendente sobre as vítimas. Isso torna difícil a denúncia e o próprio reconhecimento de que foram sujeitas a algum tipo de tentativas de conversão, que são muitas vezes subtis e que podem passar por psicoterapia, mas também pela receita de antidepressivos, por exemplo”, denuncia a presidente da ILGA Portugal.
Só dois países proíbem práticas de conversão sexual
Números concretos são, por isso, difíceis de apurar. Mas um estudo realizado em 2014, precisamente pela ILGA Portugal, apontava para que “em 11% dos atendimentos de saúde mental ou psicoterapia foi sugerido ao/à utente, pelo/a profissional que o/a acompanhou, que a homossexualidade é uma doença e que pode ser ‘curada’”. “Extrapolando para a realidade nacional podemos estar a falar de números que podem ser muito preocupantes”, lembra Ana Aresta.
Portugal pode assim tornar-se no quarto país europeu a proibir estas práticas. Só França, Malta e algumas regiões de Espanha o fazem até agora. “Não somos os únicos onde esta prática ainda não é criminalizada e penalizada, mas é bom que sejamos dos primeiros. É sinal que não descuramos os direitos das pessoas no nosso país. Portugal estava estagnado e estes projetos vêm alavancar estes direitos e trazer o assunto a discussão pública”, considera Ana Aresta.
Rui Tavares, do Livre, considera que a criminalização e penalização destas práticas são “uma decorrência natural de termos deixado de achar que a homossexualidade é um crime ou uma doença”. “Há poucos anos, até nos países mais avançados e cultivados do mundo, a homossexualidade era considerada um crime”, lembra o deputado do Livre.
“Consequências terríveis”
Em 2019, uma reportagem da TVI denunciava a prática, por parte de uma psicóloga portuguesa, daquilo a que chamava “terapias de conversão sexual”. Uma designação, só por si, errada, já que termo “terapia” implica precisamente que estamos perante o tratamento de uma doença. E a homossexualidade não é uma doença. “O termo ‘terapia’, derivado do grego, significa ‘cura’. No entanto, práticas de ‘terapia de conversão’ são exatamente o oposto: são intervenções profundamente prejudiciais, que disseminam a ideia medicamente falsa de que pessoas LGBT e género-diversas estão doentes, sujeitando-as a dor e sofrimento intensos, resultando assim, em duradouros danos físicos e psicológicos”, pode ler-se no relatório das Nações Unidas, de julho de 2020.
Quando falamos de orientação sexual, falamos das preferências afetivas e sexuais das pessoas, que são múltiplas e variadas, como tudo no ser humano. (…) Não faz sentido a condenação do prazer associado às atividades humanas, nomeadamente à sexualidade”, considera Miguel Ricou, presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses.
O psicólogo lembra que as práticas de conversão sexual podem ter “consequências terríveis”.
Há relatos de depressões, de disfunções sexuais e relacionais e até de suicídios de vítimas sujeitas a práticas de conversão sexual. “Estamos a dizer às pessoas que aquilo que é natural nelas é errado e é mau. O que vamos conseguir é que as pessoas se sintam mal na sua pele”, considera Miguel Ricou.
A Ordem dos Psicólogos lembra que “intervenções como as ‘terapias de conversão’ ou ‘reparação’ (terapias que procurem reduzir ou eliminar a homossexualidade) não têm qualquer fundamento, quer do ponto de vista da sua validade”.