A questão que se coloca na Ucrânia: o que fazer se a Rússia atacar?

CNN , Olesia Markovic
4 fev 2022, 09:13
Ucrânia-Rússia

Nota do Editor: Olesia Markovic (Oleshko) é uma investigadora doutorada na Academia da Univesidade Nacional de Kyiv-Mohyla, na Ucrânia. Markovic é uma antiga consultora de comunicações para a Sociedade Financeira Internacional e repórter de assuntos externos. Os pontos de vista expostos neste comentário são da mesma.

As pessoas que vivem na Ucrânia têm lido ansiosamente os cabeçalhos que, nos últimos meses, proclamam a ameaça de guerra que paira sobre o nosso país. Com cerca de 100.000 tropas russas reunidas na fronteira ucraniana, não é de admirar.

Mas a Ucrânia já esteve em guerra durante quase oito anos. Em 2014, a Rússia anexou a Crimeia e os separatistas pró-Rússia assumiram o controlo das cidades do Leste da Ucrânia, Donetsk e Luhansk. Este é um conflito em curso que já reclamou cerca de 13.000 vidas, de acordo com as estimativas feitas pelas Nações Unidas, em 2019. O que enfrentamos agora tem estado a formar-se lentamente e os ucranianos estão a aperceber-se do quão rapidamente isto pode evoluir para uma guerra em todo o país.

Lembro-me muito bem da minha última viagem a Donetsk, em maio de 2014, como membro da Missão Especial de Observação na Ucrânia, da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (SMM/ OSCE). Havia tiroteios ocasionais na cidade e os nossos protocolos de segurança proibiam-nos de sair do hotel. Quando nos viemos embora, a nossa nova carrinha à prova de balas levou-nos ao que costumava ser o sofisticado aeroporto de Donetsk e que se transformou num lugar vazio e sombrio. Havia apenas alguns passageiros entre os homens em uniformes não identificados e um tanque parado num canteiro de flores, a apontar para os aviões de partida.

Chegámos sãos e salvos a Kiev, a capital ucraniana, mas, uns dias depois, o aeroporto de Donetsk tornou-se o cenário de uma batalha sangrenta entre os separatistas pró-Rússia e o exército ucraniano.

Em 2014, era perfeitamente claro que o que se passava na região de Donbas, na fronteira ucraniana, não passaria dali. O exército ucraniano conteve a guerra, por isso, a maior parte dos cidadãos (exceto os que vivem perto do campo de batalha) não sentiram os seus efeitos. As praias em Odessa, os restaurantes em Kiev e as estâncias de ski de Cárpatos funcionavam normalmente. Ainda assim, para muitos, incluindo para mim, era óbvio que a situação em Donbas era uma ferida profunda tapada por um penso. Podemos não a conseguir ver, mas se não a tratarmos devidamente, pode custar-nos a vida.

Agora, em 2022, as pessoas na Ucrânia aperceberam-se subitamente de que a guerra pode ir além da região de Donbas e destabilizar a vida no resto do país. Segundo o dramaturgo russo, Anton Chekhov, se houver uma espingarda na parede no primeiro capítulo, esta vai ser disparada no segundo ou terceiro. E, neste caso, não estamos a lidar com apenas uma espingarda, mas sim com cerca de 100.000 soldados russos, próximos da fronteira Leste da Ucrânia.

A pressão militar que foi interpretada como meras conversas, há uns meses, tornou-se um sinal de alerta esmagador para a sociedade ucraniana. Ironicamente, o alerta foi dado pela imprensa, diplomatas e políticos estrangeiros, enquanto o poder político ucraniano demorou a reconhecer a ameaça. Dentro do meu círculo de jornalistas, ativistas civis, académicos e alguns políticos da oposição começou uma procura desesperada por respostas a uma questão crucial: o que deveríamos fazer, enquanto cidadãos, se a Rússia atacar?

A recente resposta que o presidente ucraniano finalmente nos deu não ajudou nada.

A 19 de janeiro, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, um ator que fez de presidente na televisão antes de entrar política, divulgou um vídeo a pedir aos ucranianos para não entrarem em pânico. Ele deu um prognóstico detalhado para 2022: celebrar a Páscoa em abril, fazer um churrasco no 1.º de maio, planear as férias de verão, por aí fora. No entanto, uns dias mais tarde, numa entrevista ao The Washington Post, o desejo de um churrasco parecia ter-se evaporado completamente, quando Zelensky reconheceu que as tropas russas podiam ocupar Kharkiv, uma cidade no Leste da Ucrânia. Escusado será dizer que esta afirmação espalhou o pânico entre os habitantes de Kharkiv e o prefeito teve de emitir uma declaração onde se comprometia a proteger a cidade de uma possível invasão russa.

Kharkiv não é o único alvo de potenciais ataques. Notícias recentes sobre exercícios militares entre a Rússia e a Bielorrússia aumentaram a ansiedade no Norte da Ucrânia, especialmente em Kiev e Chernigov. No Sul, na costa ucraniana do Mar Negro, também não conseguem dormir descansados, pois estes territórios tornaram-se um potencial alvo de ataques da Transnístria, que é controlada pela Rússia. Se lhe juntarem uma ofensiva de Donbas, a sudeste, o exército russo pode conseguir ocupar a linha costeira e a zona litoral da Ucrânia.

Como não há comunicações oficiais satisfatórias, muitos cidadãos decidiram seguir regras básicas de sobrevivência: armazenaram comida e determinaram pontos de encontro com os familiares, para o caso de não conseguirem comunicar.

As autoridades locais estão a fiscalizar a capacidade de resposta a emergências e a testar os sistemas de alarme. No mês passado, as autoridades da cidade de Kiev e o Serviço de Emergência verificaram as condições dos locais designados para abrigos nucleares da cidade e atualizaram o mapa da cidade no site oficial.

As instalações principais designadas para abrigo público, em caso de ataques aéreos, são as infraestruturas do metro subterrâneo de Kiev. Ainda assim, a sua capacidade é limitada a cerca de 200.000 pessoas, o que não é suficiente para a população de Kiev, que ronda os três milhões.

Os que não tivessem a sorte de entrar no metro, teriam de se abrigar em parques de estacionamento subterrâneos, em caves de condomínios e noutras propriedades públicas e comerciais. Algumas caves designadas como abrigos nucleares em 2014/15 foram, mais tarde, adaptadas para uso civil, para funcionarem como abrigos em caso de emergência. Contudo, um amigo disse-me que uma cave no seu edifício, que já tinha sido designada como abrigo, foi arrendada e, agora, funciona como café. Outros abrigos designados no meu bairro foram completamente destruídos durante a construção do projeto.

As pessoas admitem que a incerteza e a falta de clareza nas instruções de emergência estão a esgotar os seus recursos intelectuais e emocionais, fazendo com que seja difícil concentrarem-se nas suas tarefas atuais e quando tentam fazer planos a longo prazo. Porém, a negação seria ainda mais prejudicial.

Toda esta situação faz-me lembrar um episódio do livro O Ruído do Tempo, de Julian Barnes, uma biografia ficcional do famoso compositor soviético, Dmitri Shostakovich. Numa caça do KGB por informações, Barnes escreveu que Shostakovich tinha quase a certeza de que seria preso. Por isso, todas as noites (normalmente o KGB fazia detenções a meio da noite, para apanhar as pessoas desprevenidas), ele preparava uma pequena mala de viagem e ficava em frente ao elevador durante horas, à espera que o KGB o viesse buscar. Ele até pensou arranjar uma cadeira para a espera ser mais confortável. Sempre que ouvia o barulho do elevador, o seu coração dava um salto. Mas, quando o elevador parava noutro andar, ele voltava a si e regressava a casa, com a mala. Até à noite seguinte.

Neste momento, os cidadãos da Ucrânia estão a agir como Shostakovich. Não conseguem não estar alerta, mesmo que estejam exaustos, enquanto Vladimir Putin agir como o KGB.

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