Nos últimos meses, as tempestades Kirk e Leslie percorreram o território português. Isto foi antes de chegar o inverno, que deve trazer um agravamento das condições meteorológicas
O mar dos Açores está a aquecer cada vez mais e este dado pode ser um problema maior do que parece. Este ano, a temperatura da água ultrapassou os 27,5 graus Celsius, um valor que está acima da média normal que, em anos anteriores, se encontrava entre os 22 graus e os 24 graus - 25 graus no verão. Este aquecimento tem deixado muitos especialistas em alerta sobre quais poderão ser as reais consequências, numa altura em que nos aproximamos do inverno, época em que surgem os primeiros temporais.
O professor de Meteorologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Pedro Miranda, confirma que "sim, o aquecimento das águas pode agravar as tempestades em Portugal". Para o especialista ouvido pela CNN Portugal existe uma relação clara entre o aquecimento da água do mar e uma maior intensidade de tempestades no continente.
De acordo com o professor, os temporais no nosso país acontecem, por norma, “do contraste térmico entre o ar quente e o ar frio que resulta do encontro do anticiclone do Canadá com o Oceano Atlântico”. Além disso, “existem outros componentes que podem agravar estes fenómenos, sendo que a temperatura da água poderá ser um desses fatores”.
Segundo os dados do Climate Pulse, um dos serviços fornecidos pelo programa Copernicus, da União Europeia, os anos de 2023 e 2024 estão a trazer níveis recorde de temperatura da superfície da água do mar. O estudo mostra que a temperatura tem apresentado níveis elevados em todo o mundo, e não apenas no Atlântico Norte, onde está localizada a Região Autónoma dos Açores. Desde 1880, ano que se iniciaram os registos, que não se registavam temperaturas tão elevadas como nos últimos 30 anos.
Aumento da temperatura do Oceano pode trazer graves consequências
O aumento da temperatura do Atlântico Norte, como mostra um relatório divulgado pelo IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), é um sinal claro de que algo está a mudar, e não para melhor. Segundo o site Copernicus a superfície da água do mar aqueceu mais 0.4 graus Celsius, sobretudo desde o ano de 1993, uma tendência que se deverá manter nos próximos anos a nível global.
Este aquecimento das águas, tem sido associado a fenómenos meteorológicos extremos, como furacões e tempestades, embora o ex-presidente do Instituto Português do Mar e da Atmosfera, Miguel Miranda, defenda que “nunca existiu até agora uma conclusão capaz de afirmar que há mais furacões na atualidade, mas sim que estes estão a intensificar-se cada vez mais, sobretudo a norte, apanhando a Península Ibérica, sendo possível, para já, concluir que a temperatura da água origina sim consequências indiretas”.
Para além de contribuir para estes fenómenos meteorológicos, este aquecimento pode também originar outros impactos, sobretudo na vida marinha, como aconteceu com o “estranho fenómeno” em setembro deste ano, quando vários peixes mortos (na sua maioria meros) vieram à tona nos Açores. Num comunicado feito pelo instituto Okeanos da Universidade dos Açores no início do mês de outubro, lê-se que "tem-se verificado uma substancial e persistente anomalia térmica do mar nos últimos verões", tendo o IPMA já reportado que 2024 teve "o verão mais quente dos últimos 80 anos na região", com a temperatura da água a chegar a "uns históricos 27,3 graus e anomalias térmicas superiores a 2 graus".
O instituto acrescentou ainda que "já foram reportadas no passado situações comparáveis, envolvendo esta mesma espécie de peixe no Mediterrâneo, tipicamente associadas a surtos virais ou bacterianos, desencadeados durante períodos de aquecimento anormal do mar".
A subida do nível do mar e o derretimento de gelo marinho, são outras consequências causadas pelo aquecimento da água do mar.
O impacto da água na origem dos furacões
Os furacões são formados quando a temperatura da superfície da água dos Oceanos atinge uma temperatura superior a 27 graus Celsius. Segundo o site da NASA, esse aquecimento provoca a evaporação do ar que sobre e encontra camadas mais frias, criando uma região de baixa pressão, onde a pressão atmosférica é menor, dando início à formação de nuvens que originam posteriormente furacões.
Esses fenómenos metereológicos apresentam maior intensidade quando estão sob o mar, diminuindo a sua intensidade quando se aproximam da terra, pois a energia proveniente do calor da superfície do mar é o principal fator que alimenta o olho do furacão, o furacão Milton foi um desses casos, quando desceu da categoria 4 para 3 ao entrar na Flórida. Miguel Miranda explica que “a formação desta energia é um processo bastante complexo, mas que pode ser explicado de forma simples, como sendo apenas o calor que está disponível na superfície do Oceano”.
O site Copernicus explica também que “a energia térmica nas camadas superficiais do oceano pode atuar como um combustível para as tempestades e furacões, em que a energia é extraída das águas quentes do oceano”. Entre o ano de 2005 e 2019, 2,5 milhões de terawatts-hora foram absorvidos pelos 2000 metros superiores do Oceano, como comprova um estudo divulgado pelo mesmo site.
Este cenário não é apenas uma questão local, mas parte de uma tendência global ligada às alterações climáticas, confirmada por estudos da NOAA (Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos EUA), que mostram que os oceanos mais quentes fornecem energia extra para a formação de ciclones tropicais.
Portugal deve estar preocupado
Nos últimos meses, tempestades como Kirk e Leslie já causaram alguns estragos em Portugal e com o inverno à porta, espera-se que o clima fique ainda mais imprevisível. Para o geofísico Miguel Miranda, “estas tempestades não tiveram uma relação direta com o aumento da temperatura da água, embora possam ter contribuído para que se tivessem propagado mais a norte, até à Península Ibérica, já que, por norma, os furacões acontecem mais a sul”.
O especialista acrescenta que, ainda assim, “os portugueses devem estar preocupados com estes dados sobre o mar”. Para o ex-presidente do IPMA, quanto mais quente estiver a água, mais energia há disponível para alimentar as tempestades. “Quando uma onda de calor se junta a este aumento de temperatura, os furacões e tempestades tropicais podem intensificar-se”, explica.
Na última semana as atenções viraram-se para os EUA, onde o furacão Milton atingiu na noite do dia 9 de outubro a costa oeste da Flórida, tendo sido considerado o quinto furacão mais intenso do Atlântico desde que há registos, deixando um rasto de 16 mortos e milhões de dólares em prejuízos no estado. Em 5 categorias possíveis de intensidade, foi atribuída a categoria 3 ao Milton, com ventos que podem ir dos 178 aos 208 km/h.
A região do Golfo do México onde este furacão se formou, tem merecido a atenção de vários climatologistas que têm mostrado preocupação pelo aquecimento incomum das águas nesta região, que têm estado a 31 graus Celsius. “Embora o número total de ciclones possa não aumentar com o aquecimento do oceano, é provável que a frequência de furacões de categorias maiores cresça significativamente”, afirmou Gary Barnes à BBC News.
Com o inverno à porta, o investigador em Proteção civil, Duarte Caldeira, deixa um aviso: “É importante que os portugueses estejam sempre atentos às informações difundidas pela comunicação social, em parceria com os avisos de instituições como o IPMA, que são cada vez mais eficazes, permitindo uma maior confiança das previsões".
O investigador lembra que cada tempestade tem as suas características e as medidas a adotar devem ter em consideração diferentes fatores como "a natureza das próprias tempestades e a natureza do território - se os solos forem mais impermeáveis, por exemplo, piores poderão ser os efeitos". Duarte Caldeira define três fases fundamentais que devem ser tidas em conta pelos cidadãos, " em primeiro é necessário conhecer o verdadeiro risco da situação, tendo em conta que não haverá capacidade de retificação, em segundo devemos mitigar o risco; e por último evitar minimizar o efeito do risco". Duarte Caldeira acrescenta que as autarquias têm um papel fundamental em todo este processo, pois "têm a obrigação de conhecer o seu território e a sua população e a partir disso investir na sinalética atempada, em coordenação com as instituições próprias".
"No que diz respeito às infraestruturas, não deverá haver a construção autorizada por parte das autarquias em leitos de cheia, como por vezes acontece, pois existe uma maior probabilidade de serem afetadas por cheias. Caso exista inundações deve haver uma intervenção rápida por parte de profissionais, para evitar o agravar da situação", afirma o investigador.