Uma semana de "inferno" e uma "mistura explosiva" para incêndios. Temperaturas "extremas" podem aproximar-se dos 50 graus e bater recordes

11 jul 2022, 13:00

Temperaturas extremas vão manter-se em Portugal pelo menos até ao próximo fim de semana: na próxima quinta-feira, Coruche, no distrito de Santarém, pode chegar aos 48 graus, o que seria um recorde em Portugal. Mas estarão as casas, as escolas, os lares de idosos, preparados para este calor? Provavelmente, não

Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) prevê que a temperatura mais alta do país durante a vaga de calor desta semana se registe em Coruche, Santarém, na próxima quinta-feira, dia 14 de julho: serão 48 graus, o que seria um recorde de calor no território português, já que o máximo alguma vez registado, em 2003, foram 47,3 graus na Amareleja, distrito de Moura, no Alentejo.

Em Portugal, nunca se terá atingido uma temperatura acima dos 50º C. Dos registos do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), destaque ainda para o verificado na cidade de Lisboa, a 2 de agosto de 2008, com 44 graus centígrados à sombra. A nível de noites tropicais, Faro teve 32 graus de mínima registada de madrugada a 26 de julho de 2004.

Numa pesquisa pelas previsões meteorológicas do IPMA, constata-se que as temperaturas máximas estarão por todo o continente acima dos 30 graus até à terça-feira da próxima semana, 19 de julho, e as mínimas seguirão nos próximos dias acima dos 20 graus. Os distritos com as temperaturas máximas mais altas previstas serão Santarém, com 47 graus, na quinta-feira - que podem chegar aos 48 graus em Coruche - Évora com 45 graus, Portalegre com 43, tal como Bragança, Lisboa com 42 graus e Setúbal com 41. Só distritos como Porto, Viana do Castelo ou Faro escaparão ao calor extremo, ainda que, mesmo assim, os termómetros não devam oscilar muito abaixo dos 35 graus.

Na tarde desta segunda-feira, o IPMA vai decidir se declara alerta vermelho no território continental, disse à CNN Portugal Miguel Miranda, o presidente do Instituto. "Serão três ou quatro duas de temperaturas muitíssimo altas", avisa. "Apesar de os vários modelos meteorológicos terem alguma discrepância, todos apontam para temperaturas extremas numa parte importante do continente".

A brisa marítima, admite, poderá mitigar o calor nas regiões do litoral, mas Miguel Miranda refere que será um período de "enorme stress", nomeadamente para os bombeiros, e que a principal preocupação é "chegarmos ao fim intactos", pedindo atenção às populações mais vulneráveis, nomeadamente os idosos que vivem sozinhos, e frisando que "não podemos criar nenhum motivo que leve a que um incêndio comece.

"Os recursos são muitos, mas não são infinitos", declara o presidente do IPMA, que garante que todo o instituto tem trabalhado "noite e dia" para dar a melhor informação possível com o máximo de antecedência. 

Miguel Miranda diz ainda que, apesar de os modelos meteorológicos não serem unânimes, o calor extremo poderá só dar tréguas no fim de semana, mas avisa que "temos de nos preparar para um período longo" de temperaturas altas. 

Casas, escolas e lares sem preparação para o calor

O investigador da Universidade de Lisboa Pedro Garrett lembra o estudo sobre o anticiclone dos Açores, que saiu recentemente na revista Nature Geoscience, e que indica que este - que é o responsável pelo bom tempo no Mediterrâneo - se tem estado a expandir dentro do Atlântico Norte e prevalece agora durante mais tempo, o que determina menos precipitação no inverno e um verão ainda mais seco.

"O estudo fez uma simulação dos últimos 1200 anos que indica inequivocamente que este efeito recente do anticiclone não consegue ser reproduzido pelos modelos climatéricos quando não são introduzidos os gases e efeito de estufa provocados pela ação humana. As ações humanas têm, sim, impacto direto nas ondas de calor", refere. 

"E do ponto de vista das alterações climáticas, está muito bem documentado para Portugal: a intensidade e a frequência deste tipo de fenómenos será muito maior". Mas estaremos preparados para eles? "Toda a nossa construção, por exemplo, não está preparada para valores extremos de temperatura. Principalmente em ambiente urbano, durante o dia, os edifícios recebem muita energia que, durante a noite, é irradiada para dentro do próprio edifício e faz com que a temperatura dentro das casas raramente desça dos 20 graus. Isto pode causar um conjunto de problemas de saúde em pessoas mais idosas ou mais vulneráveis, com doenças respiratórias ou cardiorrespiratórias", esclarece Pedro Garrett, alertando para os efeitos das ondas de calor na mortalidade nas populações mais vulneráveis.

"É algo com o qual teremos de aprender a lidar. E muitas vezes lares e escolas não estão preparados", refere, dando o exemplo de como, dentro de uma sala de aula sem isolamento térmico e com mais de 20 alunos, a temperatura pode facilmente superar os 30 graus, tornando-se rapidamente insuportável para estudantes e professores. Por agora, e com o final do ano letivo, o problema não se colocará no ensino básico e secundário. Mas muitas crianças continuam a frequentar creches, jardins de infância e centros de atividades para ocupar os tempos livres.

"Mistura explosiva" provoca incêndios de grandes dimensões

Invernos secos, ondas de calor e vento forte, por outro lado, são as condições ideais para a deflagração de incêndios, daí o Governo ter decidido decretar a partir desta segunda-feira a situação de contingência, que irá prolongar-se pelo menos até à próxima sexta-feira e prevê a proibição de circulação no interior de florestas, a interdição de queimadas ou trabalhos em espaços rurais, além de impedir a utilização de fogo-de-artifício ou outros artefactos pirotécnicos.

Pedro Garrett lembra que a Proteção Civil tem promovido a limpeza das matas mas que, muitas vezes, essa mesma limpeza é feita com recurso a queimadas, pelo que será urgente, nesta altura, introduzir formas alternativas da limpeza florestal, nomeadamente através de processos de compostagem dos resíduos ou trituração. "Se fizermos a compostagem e voltarmos a pôr no solo, sempre que chove, mesmo que seja uma chuva menos pronunciada, estes resíduos têm capacidade de absorver e reter a humidade no solo. Como forma de prevenção de incêndios, é fundamental", aponta o investigador. 

Não ajuda, porém, que em Portugal os espaços de floresta rural sejam maioritariamente ocupados e tratados pelos mais idosos. "Em algumas circunstâncias, a população está habituada a desenvolver um conjunto de tarefas rurais utilizando técnicas que são desaconselhadas neste momento", admite António Nunes, presidente da Liga dos Bombeiros de Portugal, em declarações à CNN Portugal. "É por isso que mais de metade dos nossos incêndios são, muitas vezes, realizados através de ignições por negligência", admite, pedindo maior intervenção junto "das gentes que trabalham os espaços rurais" para que haja uma efetiva alteração de comportamentos. 

António Nunes diz ainda que é necessário, para melhor prevenir a deflagração de grandes incêndios, "alterar o nosso mosaico florestal": "A nossa floresta não está preparada para receber este tipo de clima", afirma. "Seja por razões humanas ou naturais, quando existe deflagração de incêndio, temos sempre pouca capacidade de atuação porque ele é muito violento, os bombeiros estão a ser chamados  cada vez mais para incêndios florestais com elevada capacidade térmica e elevada propagação, dadas as condições meteorológicas, muitas das vezes com incapacidade de penetrar nos espaços florestais. Isto é uma mistura explosiva", refere o presidente da Liga dos Bombeiros, que garante que os bombeiros se deparam com "circunstâncias verdadeiramente excecionais" quando são agora chamados para combater as chamas. "Os nossos bombeiros têm de ser heróis em permanência para combater incêndios com esta intensidade", reforça.

Apesar de tudo, António Nunes diz que o país está agora mais preparado para enfrentar a época de incêndios, mesmo em contexto de meteorologia adversa, devido às lições aprendidas em 2017, ano dos grandes incêndios de Pedrógão Grande. "Estamos melhores na previsão", indica. "Hoje, não fomos apanhados sem saber o que ia acontecer", repetindo que falta sobretudo preparação da floresta mas que as casas em zonas rurais já têm os terrenos circundantes limpos e que os residentes já aceitam deslocar-se com maior facilidade para prevenir situações de risco humano. "Não compreenderíamos se ocorresse alguma tragédia. Todos estamos a tentar evitá-lá", conclui António Nunes. 

"Estamos a viver em alterações climáticas"

A afirmação, sem margem para dúvidas, é de Pedro Garrett, investigador da Universidade de Lisboa, quando questionado sobre a onda de calor que o país atravessa, e que poderá fazer os termómetros subirem até perto dos 50 graus centígrados no continente. "Os últimos modelos indicam algo bastante alarmante: a meta do Acordo de Paris era não deixarmos o planeta aquecer mais 1,5 graus. Hoje, sabemos que estes 1,5 graus vão ser atingidos em 2026, independente das emissões de gases de estufa, e isto é grave porque 2026 é amanhã", refere Pedro Garrett à CNN Portugal. "Mas os modelos também indicam outra coisa: em 2039, na trajetória atual de emissões, vamos atingir os dois graus de aquecimento médio global e, partir dos dois graus, todo o sistema se torna tão imprevisível que os cientistas não sabem o que pode acontecer", acrescenta o investigador na área das alterações climáticas.

Pedro Garrett recorda que, no início do ano 2000, houve em Portugal dois grandes projetos na área da modelação e adaptação às alterações climáticas e que o país até foi "pioneiro" na análise aos impactos do aquecimento global: um dos projetos chegou à conclusão clara de que "anualmente, vamos passar a ter ondas de calor superiores a 20, 30 ou mesmo 40 dias por ano, o que nos exige uma forma de pensar diferente em sectores chave como a agricultura ou os recursos hídricos", frisa o investigador, que alerta que os extremos não serão só nas temperaturas e podem verificar-se igualmente em fenómenos de "precipitação intensa". 

"E ainda nem sequer estamos no patamar de estagnar emissões [poluentes]. De ano para ano, aumentamos emissões em cerca de dois por centro, com exceção do período da pandemia e da crise de 2010", refere Pedro Garrett, que admite que os maiores desafios para o futuro serão os da necessária transição energética dos combustíveis fósseis para as energias renováveis. "Precisamos de forma muito forte e efetiva de melhorar significativamente a rede de transporte de energia, as fontes de produção vão ser diferentes, provavelmente mais descentralizadas, e de uma rede elétrica que esteja preparada para este tipo de fenómenos". Se ainda vamos a tempo? "Estamos cerca de 10 a 15 anos atrasados para minimizar este problema. A parte positiva  é que vamos conseguir fazê-lo. Mas se vamos a tempo de estarmos preparados para os efeitos das alterações climáticas? Não", defende o investigador.

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