Teatro da Comuna faz 50 anos e estreia "Fausto". "Vivemos uma época em que as pessoas estão muito pouco acordadas", lamenta João Mota

30 abr 2022, 11:00

O aniversário é no domingo, mas a festa começa já esta noite. O presidente da Câmara de Lisboa, o primeiro-ministro e até o Presidente da República vão associar-se ao cinquentenário desta companhia que continua a querer ser um espaço de pesquisa

Há 50 anos, um grupo de jovens atores juntou-se para criar uma companhia de teatro em Lisboa. Driblaram a censura e nasceram no dia 1 de Maio, Dia do Trabalhador. Chamaram-lhe "Comuna - Teatro de Pesquisa" e o nome diz quase tudo. Queriam trabalhar como um verdadeiro coletivo, em que todos fossem criadores. Queriam fazer um teatro que partisse do ator e não só do texto, num constante trabalho de experimentação. 50 anos depois, João Mota e Carlos Paulo continuam a fazer a Comuna todos os dias e esta noite vão lá estar, na Praça de Espanha, depois da estreia de "Fausto", para apagar as velas e fazer a festa com todos os que se queiram juntar.

"A mim parece-me que foi ontem", diz João Mota, o diretor da Comuna, de 79 anos, em entrevista à CNN Portugal. "Fizemos tudo com tanto prazer. Houve preocupações, houve sacrifícios, houve falta de dinheiro, sim, mas quem corre por gosto não cansa."

"Programar as coisas para amanhã é essencial. E o estar, porque se nós não estamos o que é que andamos aqui a fazer?" E quando diz "estar" ou "viver", quer dizer exatamente isso: estar aqui é apreender tudo à sua volta, é tentar aprofundar ao máximo o conhecimento que se tem do mundo e de si próprio, é nunca estar satisfeito. "É isso que continuamos a fazer."

Este ano, por ser o cinquentenário, a festa conta com convidados especiais. Este sábado, a Comuna recebe o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, o vereador da Cultura, Diogo Moura, e o diretor municipal da Cultura, Carlos Moura-Carvalho. A Câmara aprovou a entrega à Comuna da Medalha de Mérito Cultural, que em 1988 já tinha recebido o Estatuto de Utilidade Pública Sem Fins Lucrativos. “Com relevo acrescido para a cidade de Lisboa e para a diversidade da oferta cultural disponível, as salas da Comuna são um espaço público aberto a apresentações de dezenas de companhias de teatro portuguesas e estrangeiras, para além de concertos, exposições, colóquios, lançamento de livros, convívios, etc.”, lê-se na proposta aprovada. 

No domingo, dia de aniversário, o teatro estará de portas abertas a todo o público, com entrada gratuita, estando a bilheteira aberta a partir das 15:00 para entrega de bilhetes. Neste dia, marcará presença o primeiro-ministro, António Costa. E vai ser um encontro especial: "O primeiro-ministro vem recordar os bons tempos, pois ele foi meu aluno na Francisco Arruda, no 5º e 6º ano", conta o encenador.

Depois da festa este sábado, na segunda-feira Jota Mota irá ao Palácio de Belém para ser condecorado pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

Finalmente, no dia 31 de maio, será apresentado no Teatro Nacional D. Maria II um documentário sobre os 50 anos da companhia, realizado por António Cunha.

Apesar de contente - "mais vale ter este reconhecimento em vivo do que depois de morto" -, o diretor da Comuna não fica deslumbrado com as condecorações. "A gente vai vangloriar-se de quê? E quem não tem um trabalho de tanta exposição mediática e trabalha verdadeiramente para educar os filhos, para ter dinheiro, para pagar a renda? Esses é que são uns heróis", diz. "A Comuna está aqui, temos a mesa onde comem todos juntos, eu como na cozinha, como sempre. Somos menos mas não se perdeu a noção de grupo. Fizemos muitas coisas mas há muitas coisas que nos falta fazer."

O que queria agora? "Continuarmos, só, deixarem-nos em paz e com o suficiente para não termos que concorrer aos subsídios", responde João Mota. E gostava muito - mas sabe que dificilmente acontecerá - voltar a encenar um espetáculo com a atriz Manuela de Freitas. 

Carlos Paulo e Manuela de Freitas no espetáculo "A Ceia", 1974 (Direitos reservados - Comuna)

Ir lá fora para fazer melhor cá dentro

Não é possível contar a história da Comuna sem contar, primeiro, a história de João Mota, nascido em Tomar, em 1942, educado entre mulheres, muito marcado pela mãe costureira e pela consciência, desde sempre, de que lhe faltava a liberdade. "O ensino era fascista, a própria escola era fascista na maneira como nos tratava. Eu jogava à bola na Elias Garcia, em frente de casa, era uma placa com árvores, nós fazíamos a baliza com as pastas e fugíamos da polícia porque era proibido jogar à bola na rua. E também era proibido pisar a relva do Parque Eduardo VII", recorda.

Começou a representar ainda criança, primeiro na rádio, na Emissora Nacional, depois na televisão e, por fim, nos palcos. Começou logo pelo Teatro Nacional, com a companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, tinha apenas 15 anos. "Era preciso alguém para fazer o cego no "Processo de Jesus" e eles viram vários atores mas acabaram por me escolher", lembra. Ficou. Aprendeu nas tábuas ao lado de Palmira Bastos, Laura Alves, José de Castro, Canto e Castro e outros.

Aos 17 anos, ganhou uma bolsa para ir ao Festival de Avignon, em França, durante um mês, com tudo pago: "Vi tudo o que consegui ver". Foi como se lhe tivessem aberto uma janela na cabeça. Não descansou enquanto não voltou, para trabalhar e aprender com Peter Brook, o seu grande mestre. Ao regressar, estava decidido a aplicar em Portugal tudo o que aprendera com Peter Brook, com Adolfo Gutkin, com o teatro Noh e o Kabuki, com muitos outros com quem se tinha cruzado, absorvendo tudo.

Os Bonecreiros surgiram em 1971 mas, "devido a questões políticas", a companhia separou-se pouco depois. João Mota, Carlos Paulo, Manuela de Freitas, Melim Teixeira e Francisco Pestana criaram a Comuna a 1 de maio 1972 mas o primeiro espetáculo só se estreou a 21 de outubro: "Para onde is?", a partir de Gil Vicente, numa garagem perto do Liceu Camões em Lisboa.

O ator-criador num verdadeiro coletivo

Vivia-se um período de algum rejuvenescimento do teatro português. O Grupo de Campolide, de Joaquim Benite, tinha nascido em 1971. Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo estavam prestes a criar a Cornucópia. Mas João Mota queria fazer algo diferente. "O teatro profissional em Portugal não via o ator como um criador, mas sim como alguém que é bom a debitar textos", conta. "Havia uma insatisfação, com o fascismo e com aquilo tudo. O teatro não faz a revolução, mas o teatro ajuda a fazer a revolução e nós queríamos fazer um teatro que rompesse com o que se fazia. A ideia era fazer um grupo em que o trabalho do ator fosse a pedra principal, em que, como diz Peter Brook, o ator é o criador onde habita o texto. É preciso saber respirar, é precisar saber como o corpo funciona, é preciso usar a nossa inteligência e fazer exercícios de análise, de conhecimento humano, de improvisação, que era uma coisa que nessa altura ninguém fazia."

"O  Peter Brook tem um livro que se chama "O Espaço Vazio" - o espaço vazio significa que cada ator tem que estar vazio para entregar-se à personagem por dentro", explica o encenador. "Como o Fernando Pessoa diz do poeta, eu digo do ator: o ator é um fingidor que finge que é dor a dor que deveras sente. O ator tem que estar com uma disponibilidade total para entregar-se a esse mundo subterrâneo, oculto, e dentro de si próprio."

O nome foi votado pelos ouvintes da Rádio Renascença: além de Comuna, as outras hipóteses eram Os Cómicos e Os Comediantes, sempre com a expressão "teatro de pesquisa", porque havia essa vontade de experimentar, de usar o teatro como laboratório. Comuna é uma homenagem à Comuna de Paris e às comunas de hippies. "Porque era esse o espírito do coletivo", conta João Mota. Queria "um grupo que trabalhasse realmente como coletivo e que olhasse para a sociedade à sua volta".

“Ficámos muito contentes, porque quando fundámos a Comuna tínhamos todos o mesmo estatuto, ganhávamos todos o mesmo ordenado - técnicos e atores… -, quereríamos criar uma comunidade para podermos estar sem essas coisas que nos separam”, que são os cargos, as funções, os títulos, explicou Carlos Paulo aos jornalistas, depois de um ensaio, na semana passada. Essa igualdade económica foi muito importante para perceber que todos são “fundamentais no espetáculos” e o “público percebeu isso muito bem”, sublinhou, acrescentando que foi também um “prelúdio de uma revolução que aconteceu dois anos depois”.

João Mota em "Bão", 1975 (Direitos reservados - Comuna)

Nesse primeiro período, ainda tiveram alguns problemas com a censura. “Fazíamos ensaios de censura falsos. Tínhamos um texto forte e quando a censura vinha assistir, antes de estrear, fazíamos ballet e umas coisas assim, só que eles perceberam que nós os enganámos e passaram a vir aos espetáculos”, recordou Carlos Paulo. "Portanto era um bocado um jogo, para vermos até onde é que chegávamos e até onde é que eles cediam."

Mas o nome haveria de dar azo a muitas más interpretações, sobretudo depois do 25 de Abril quando, não raras vezes, lhes chamavam comunistas. João Mota sempre recusou alinhar com qualquer partido: "Sou livre, não pertenço a nenhum grupo nem a nenhum partido. Quando me falam de partidos, eu falo de pessoas, há pessoas de que gosto muito que são de direita e outras são de esquerda", declara.

50 anos de Comuna: e para onde ir agora?

Em 50 anos de existência, a companhia realizou cerca de 150 produções, participou em mais de 55 festivais internacionais, de 19 países diferentes e, em Portugal, atuou em 86 localidades e participou em mais de 100 festivais de teatro. Pelos seus palcos passaram mais de uma centena de atores, dramaturgos e encenadores.

Muita coisa mudou neste percurso. Em 1975, a Comuna instalou-se no casarão cor-de-rosa da Praça de Espanha, onde ainda hoje está. Mas o espaço, que já foi cheio de muita vida e de muitas atividades, tem vindo a sofrer com o tempo e com a falta de financiamento. O elenco resume-se a quatro atores: João Mota, Miguel Sermão, Carlos Paulo e Hugo Franco. A Comuna já não está no centro da vida cultural de Lisboa mas ocupa ainda um lugar - de aprendizagem e de experimentação, de encontro e de partilha.

Em comunicado, a Comuna afirma que, ao fim de 50 anos, “orgulha-se de continuar a ser um espaço permanente de Pesquisa de um Teatro Vivo, dramaturgia de rutura, de nascimento e crescimento de novos atores e autores, de ser um laboratório permanente em consonância com o Público, com forte impacto social e de intervenção constante na Cultura”.

Maria do Céu Guerra e Carlos Paulo em "Todos os que caem", 2006 (Direitos reservados - Comuna)

João Mota, que foi professor na Escola Superior de Teatro e Cinema durante 35 anos e noutras escolas e noutros projetos durante muito tempo, não tem dúvidas de que gosta mais de ensinar do que encenar. E gosta de abrir a porta aos mais novos. São eles o futuro. "O grupo mantém-se com a individualidade e a liberdade de cada um. Foi a primeira aprendizagem que o Peter Brook nos deu: não percam a vossa individualidade, porque é da individualidade de cada um que vem o coletivo e só com isso é que podemos trabalhar. Esse é o vosso material de trabalho, do criador", diz João Mota. "Vamos descobrindo coisas novas dentro de nós próprios e vamos descobrindo-nos uns aos outros. Estamos acordados." E lamenta: "Vivemos uma época em que as pessoas estão muito pouco acordadas".

"Vivemos um mundo em que não vemos as pessoas, não olhamos nos olhos, o lado obscuro, subterrâneo, que todos nós temos, não o conhecemos. Se não conheço o meu, não posso conhecer o dos outros. Porque nós fugimos de nós próprios, é um marasmo enorme. Há apenas uma minoria que ainda se interessa pelo mundo sensível."

Foi também por isso que escolheu "Fausto", peça inspirada na versão mais famosa da lenda de Fausto de Johann Wolfgang von Goethe, para celebrar estes 50 anos. "Trata-se de um relato da atual conduta humana, que simboliza o dilema do Homem na modernidade, busca dar significado à sua vida, de transcender a sua humanidade, com uma sede incessante de mais conhecimento e de tentar compreender todos os mistérios que ainda não foram desvendados", explica a companhia. Aqui, a peça é feita sem cenários, sem palco, sem plateia, sem nada. No espaço realmente vazio, os 50 espectadores ficarão de pé e terão de movimentar-se para apreender tudo.

"Fausto" no Teatro da Comuna (Direitos reservados - Bruno Simão)

Neste percurso, às vezes, também houve momentos em que João Mota se perguntou "para quê?" e teve vontade de desistir. "O que me fez continuar foi o prazer de estar vivo, só isso, por isso é que eu digo: viva o teatro mas viva a vida! O teatro sem vida não existe. Temos de ter essa alegria diária de, antes de adormecer, ter 10 minutos para pensar naquilo que foi essencial, os lados positivos e negativos, adormecer de consciência tranquila porque nunca sabemos se acordamos no dia seguinte. E. no dia seguinte. acordar sempre com uma grande alegria: obrigado por ter mais uma oportunidade. Eu continuo a viver assim. Se não, já tinha morrido."

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