500 anos depois, quem é a Maria Parda que vagueia pelas ruas de Lisboa?

22 nov 2021, 00:43
"Pranto de Maria Parda"

A atriz Cirila Bossuet interpreta este monólogo que mostra como o texto de Gil Vicente ainda é tão atual e põe a nu questões relacionadas com as várias formas de discriminação

Em 1521 Gil Vicente escreveu o "Pranto de Maria Parda" no rescaldo de um ano de seca, fome e miséria. Maria Parda, mulher, pobre e alcoólica, vagueia pelas ruas de Lisboa em busca de vinho, incapaz de reconhecer a cidade, desfigurada pela desgraça.

Quinhentos anos depois, no rescaldo de um ano de pandemia, de isolamento, de ruas desertas e falências, Maria Parda volta a percorrer as ruas de Lisboa. E, tal como nós, tem dificuldade em reconhecer a cidade.

Na verdade, o espetáculo, encenado por Miguel Fragata e protagonizado por Cirila Bossuet, nasceu muito antes de o vírus ter entrado na nossa vida. O Teatro Nacional D. Maria II queria assinalar os 500 anos do texto e o desafio era descobrir "como é que ele poderia ressoar e fazer sentido nos nossos dias, onde as questões do turismo e da gentrificação estavam muito presentes, numa cidade que se estava a alterar e a vender a novos ocupantes temporários", explica Miguel Fragata.

"A pandemia modificou muito o projeto", admite, trouxe novos sentidos ao texto e, por incrível que pareça, foi como se todas as peças do puzzle encaixassem ainda melhor.

O texto foi escrito num ano em que se estava na ressaca de uma seca tremenda em Lisboa, havia gente a morrer na rua, ainda a peste negra e um novo imposto régio sobre o vinho. A Maria Parda veio dar voz a todos os descontentes com essa situação. E aconteceu esta coincidência de 500 anos depois estarmos novamente num ano de peste e de descontentamento", sublinha o encenador.

Miguel Fragata confessa que nunca foi um grande fã de Gil Vicente mas, precisamente por isso, decidiu aceitar o desafio: "Como criar pontes com um texto que foi escrito há 500 anos e com um autor que trabalha com personagens-tipo, que eram sempre representativas de qualquer coisa e tinham pouca humanidade?" E ainda: "Como ultrapassar esta ironia que é o autor mais icónico português ser hoje praticamente incompreensível e soar-nos a estrangeiro?"

Mas trazer a Maria Parda para o século XXI acabou por ser fácil. À medida que a investigação avançava, Miguel Fragata acabou por descobrir que havia muito mais questões a abordar: como todo o processo de censura de que este texto foi alvo nos séculos seguintes, como se houvesse uma tentativa de apagamento desta personagem "velha, decadente, alcoólica, muito crítica das práticas católicas"; e ainda o facto de entendermos hoje em dia que a protagonista é uma mulher negra ou mestiça quando não há nada no texto de Gil Vicente que o indicie. A discriminação, o racismo e o machismo também fazem parte desta história.

Se repararmos bem na palavra, "parda" é a aquela que mal se distingue, que não tem visibilidade, diz-se em palco.

E também é por isso que a voz de Capicua - a primeira que se ouve assim que o espetáculo começa - debita uma carta a Maria Parda, evocando estes 500 anos de patriarcado em que a história foi "his story" e as mulheres que resistiam "eram histéricas, não históricas": "Se estes anos todos fossem teus, a história seria her story e nesse caso haveria farra para todos, fartura para todos, músicas nas praças até de madrugada (...), se todos este anos fossem teus teria havido povo na rua e rua para o povo, teria sido tudo novo, em vez dos mesmos fatos e gravatas comidos pelas traças e seus restos pelas moscas com suas palavras ocas, durante 500 anos de pouco pão e mau circo. Maria Parda, esta é para ti."

Além de Capicua, o "Pranto de Maria Parda" conta com um rap original de Chullage. Os momentos musicais (gravados) permitem fazer a ponte com a atualidade, "a voz da rua, a voz do engajamento, da revolta e não do poder instituído", explica o encenador.

O espetáculo estreou-se no no final de outubro no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, e, integrado no projeto "Próxima Cena", que pretende levar o teatro a zonas de baixa densidade populacional, já foi apresentado em Tondela, Viana do Castelo e Ponte de Lima.

Próximas datas:

25 e 26 de novembro: Centro Cultural Solar dos Condes de Vinhais

10 e 11 de dezembro: Teatro Municipal de Ourém

21 e 22 de janeiro de 2022: Teatro Micaelense, Ponta Delgada

22 julho. Teatro Baltazar Dias, Funchal

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