"Não foi pisada a fronteira que transporta para o plano criminal." Mas... (lições jurídicas sobre o ex-secretário de Estado que preferia criar um pesadelo a 200 pessoas do que um pesadelo a Marcelo)

6 abr 2023, 14:09
Marcelo Rebelo de Sousa (Lusa/Manuel de Almeida)

Hugo Mendes fazia parte da equipa de Pedro Nuno Santos. Hugo Mendes pediu à CEO da TAP para adiar um voo comercial. Um voo com 200 pessoas. Havia uma outra pessoa naquele voo: Marcelo Rebelo de Sousa. E Hugo Mendes não queria estragar o humor do Presidente - "humor" é termo usado pelo próprio Hugo Mendes. Escreveu um mail com isso tudo, um mail que versava assim: "Falando seriamente, percebo que isto possa ser incómodo para ti mas não devemos permitir-nos perder o apoio político do PR". E por isso queria adiar aquele voo. Isso não é crime, sublinham juristas ouvidos pela CNN, mas é "pungente"

 
"Altamente reprovável no plano político, altamente reprovável no plano ético, altamente confrangedora no plano da cidadania." É desta forma que o advogado e comentador da CNN Portugal Rogério Alves olha para a intervenção do ex-secretário de Estado das Infraestruturas, Hugo Mendes, que pediu à CEO da TAP para adiar um voo comercial de Moçambique que tinha como passageiro o Presidente da República - Marcelo Rebelo de Sousa precisava de ficar mais dois dias em Maputo.
 
Rogério Alves considera, ainda assim, que não foi pisada "a fronteira que transporta para o plano criminal". "Seria diferente se, por exemplo, o secretário de Estado tivesse obrigado a CEO da TAP a alterar o voo. Aí já haveria eventualmente indícios de tráfico de influências porque ele já estaria a abusar da sua autoridade para impor uma conduta. No fundo, isto foi o secretário de Estado a secundar o pedido da agência de viagens, mas ele apenas secundou esse pedido, não é crime", explica o especialista.
 
De qualquer forma, o comentador da CNN Portugal defende que "temos de perder o hábito de achar que só o que é crime é que é mau e que só o que é crime é que é errado" porque "a questão do crime não esgota a apreciação cívica das condutas". "Essa intervenção do secretário de Estado é perfeitamente pungente e é triste que alguém, por razões políticas e para ter o Presidente da República bem-disposto, esteja a pressionar a CEO da TAP a alterar o voo", sublinha.
 
Ouvida numa comissão parlamentar de inquérito sobre a TAP, Christine Ourmières-Widener admitiu ter chegado à empresa um e-mail do ex-secretário de Estado das Infraestruturas Hugo Mendes a pedir para que esse voo, com 200 passageiros, fosse adiado. "Caro Hugo, a minha preocupação se se tornar público, e podemos estar confiantes de que será, não será bom para ninguém. Não concorda?", questionou a CEO da TAP, em resposta ao e-mail do antigo secretário de Estado que está a circular nas redes sociais. "Bom dia, Christine. A minha reação espontânea é dizer que sim :) Falando seriamente, percebo que isto possa ser incómodo para ti mas não devemos permitir-nos perder o apoio político do PR [Presidente da República]. Ele tem sido um apoio para nós em relação à TAP, mas, se o humor dele se alterar, tudo fica perdido. Uma palavra dele contra a TAP/o governo e ele empurra o país todo contra nós. Não estou a exagerar: ele é o nosso principal aliado político, mas pode transformar-se no nosso pior pesadelo", respondeu Hugo Mendes.
 
Rogério Alves refere, com ironia, que "é realmente extraordinário como alguém pede para facilitar a vida ao Presidente da República negligenciado o interesse de todas as outras pessoas que têm de voar por razões pessoais e profissionais, com horários que têm de ser cumpridos, com escalas que estão feitas". "É uma coisa totalmente absurda", completa.
 
Caso esse voo da TAP tivesse mesmo sido alterado, o advogado não tem dúvidas de que essa decisão seria "eticamente reprovável" e que, nesse cenário, Christine Ourmières-Widener mostraria "não ter capacidade de resistir a determinado tipo de pressões". Mas, também nesse caso, a CEO da TAP não poderia ser acusada de qualquer crime "porque ela nem pediu nada nem aceitou nada".
 
"O crime de que poderíamos estar a falar seria o chamado crime de tráfico de influências." Todavia, só se poderia falar em crime se tivesse estado em causa "alguma compensação, alguma recompensa" e "essa questão nunca foi colocada". "Nem a CEO da TAP pediu nada - porque a iniciativa não foi dela -, nem aceitou nada - porque nada lhe foi oferecido."
 
Também o jurista Paulo Veiga Moura, especialista em Direito Administrativo, não vê matéria para o plano criminal. Considera que, caso o voo tivesse sido alterado, "a CEO TAP poderia estar a lesar a companhia, se isso implicasse prejuízos", mas para que houvesse um "crime de gestão danosa" teria de ter existido "uma intenção maligna" para "prejudicar ou beneficiar alguém". "Aqui, não me parece absolutamente nada."
 
Além disso, o jurista vinca que este é um caso que envolve o Presidente da República e "é preciso que o Presidente da República venha para Portugal, poderia ser importante que o Presidente da República viesse nesse dia e poderia ter de ser necessário furtar um avião para o Presidente da República".
 
Esta é mais uma polémica a juntar aos vários casos que têm envolvido a transportadora aérea portuguesa. Marcelo Rebelo de Sousa já negou ter feito qualquer pedido para mudar o voo da TAP por conveniência da sua agenda. "A Presidência da República nunca contactou a TAP nem nenhum membro do Governo sobre tal assunto. A Presidência da República nunca solicitou a alteração do voo da TAP, se tal aconteceu terá sido por iniciativa da agência de viagens", lê-se numa nota da Presidência. Marcelo Rebelo de Sousa disse, em declarações citadas pela SIC, que "nunca lhe passaria pela cabeça mudar um voo com 200 pessoas, sendo certo que havia e foi encontrada alternativa".

O Palácio de Belém esclareceu que o chefe de Estado "deslocou-se a Moçambique em março de 2022" numa visita "tratada pela agência de viagens habitual, que terá feito várias diligências e acabou por encontrar uma alternativa com a TAAG, via Luanda, no dia 23". "Mas o regresso de Moçambique acabou por se verificar a 21 de março de 2022, num voo regular da TAP (TP182)", acrescenta-se. A Presidência diz ter tomado conhecimento desta questão no dia 11 de fevereiro de 2022, antes da realização do voo em causa, "quando a CEO da TAP perguntou ao Chefe da Casa Civil, num jantar no Eliseu, a convite do presidente Macron, a propósito da Saison Croisée França Portugal, se o Presidente da República tinha solicitado a mudança do voo da TAP de 24 de março", algo que, garante Marcelo, "foi imediatamente desmentido".

Luís Montenegro acusou o Governo de abuso de poder e de instrumentalizar Marcelo no escândalo TAP. O social-democrata considerou que existem “escandalosos abusos da maioria absoluta” do PS, acusando os socialistas de instrumentalizarem o Presidente da República, que é visto pelo Governo como um “peão do PS ao serviço da sua agenda”.

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