"Há uma ilegalidade formal". Demissão da CEO da TAP sem audição prévia coloca Governo em (mais) maus lençóis

1 mai 2023, 10:20
A presidente executiva da TAP, Christine Ourmières-Widener, na Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP (Lusa/António Cotrim)

Governo garante que fez tudo de forma correta, mas a alegação de justa causa pode dar um trunfo a Christine Ourmières-Widener

A atuação do Governo no despedimento da CEO da TAP é uma “inversão natural da ordem das coisas”. Quem o diz é o advogado especialista em Direito Laboral João Santos, que à CNN Portugal explica que o executivo pode ter contornado a lei ao anunciar a saída de Christine Ourmières-Widener pela televisão.

Este é, de resto, o primeiro ponto da defesa da agora ex-administradora, que pediu a “nulidade do procedimento por fraude à lei”.

Entende a gestora francesa que “o Governo degradou a audiência prévia a uma mera formalidade não essencial, desprovida de qualquer sentido útil”, conforme se pode ler na resposta enviada após receber a notificação de que ia ser demitida, enviada já depois de o ministro das Finanças, Fernando Medina, ter anunciado a sua saída.

Uma demissão que, como se soube esta quinta-feira, foi decidida antes de serem consultados os serviços jurídicos do Estado, o que dificulta a tarefa do Governo em defender que tudo foi feito segundo a lei. É que, segundo a lei em causa, o Estatuto do Gestor Público, “a demissão compete ao órgão de eleição ou nomeação, requer audiência prévia do gestor e é devidamente fundamentada”.

Só que essa demissão aconteceu precisamente no mesmo dia do relatório da Inspeção-Geral de Finanças (IGF). Tendo em conta todas as informações que têm vindo a público, Christine Ourmières-Widener não foi ouvida antes da tomada de decisão. “Esta lógica é a inversão natural da ordem das coisas. Demitimos primeiro e depois vamos ouvi-la. Se a decisão estava determinada, vamos ouvi-la para quê?”, questiona João Santos, que entende que o Governo devia ter ouvido primeiro, mas que fez o contrário, o que é “contornar a lei”.

“Há uma ilegalidade formal, porque inverteu a ordem das formalidades”, acrescenta o especialista em Direito Laboral.

Uma visão que é acompanhada pelo especialista em Direito Administrativo Paulo Veiga e Moura, que identifica uma falha de procedimento. À CNN Portugal, o jurista diz que “é manifesto que, à partida, não foi seguido determinado procedimento, o que tornou inútil esse passo processual”.

Que passo? O contraditório da CEO demitida, que tinha, legalmente, direito a defender-se. “Eles anunciaram a decisão antes de a demitirem. É a mesma coisa que haver um processo disciplinar e dizer ao trabalhador que, independentemente do que diga, já sabe que vai ser despedido. A decisão estava tomada, independentemente do que [Christine Ourmières-Widener] fosse dizer em sua defesa”, acrescenta.

Uma lógica semelhante à de um trabalhador comum. Nesse caso, o funcionário teria direito a uma nota de culpa, ficando depois com um prazo para responder. Aqui, esse direito parece ter sido esquecido pelo Estado. “Quando se quer fazer cessar um mandato, ou se tem justa causa e a pessoa tem o dever de ser ouvida antes da decisão, ou, se não há justa causa, tem de se indemnizar”, vinca Paulo Veiga e Moura.

E o problema é precisamente esse: a justa causa.

O Estado podia despedir Christine Ourmières-Widener sempre que quisesse, desde que a indemnizasse. Ao fazê-lo com recurso a justa causa torna obrigatória uma série de passos, incluindo o direito de contraditório.

Até porque, como nota João Santos, assim que é feito o anúncio dos ministros, a decisão está tomada: “Não se demite uma pessoa que ocupa um elevado cargo numa empresa pública sem se tomar a decisão. Não se anuncia sem ter a decisão tomada”.

O que disse o Governo

É que esse é um dos argumentos dados pelo Governo para garantir que tudo feito dentro da legalidade. Na Deliberação Unânime por Escrito de despedimento da CEO e do chairman da TAP, onde até já se sabe que a unanimidade foi difícil de atingir, o executivo garante que "foi a ambos garantido, e por ambos exercido, nos termos legalmente devidos, o direito de audiência prévia sobre aqueles projetos de deliberação de demissão". Só que o mesmo documento confirma que a adoção da deliberação só surgiu uma semana depois da comunicação dos ministros, feita a 6 de março.

Mas vejamos o que disse o Governo. “Era essencial recuperar esse laço de confiança entre o país e a empresa. A TAP não é uma empresa qualquer, é uma empresa especial no nosso país, pela sua dimensão e importância económica. Considerámos que era importante marcar este virar de página no sentido de haver uma estabilização", afirmou Fernando Medina. O virar de página era a saída da CEO.

É entendimento do Governo que isso "não consubstanciou nem a adoção de qualquer decisão final nem a prática de qualquer ato de exoneração pública, limitando-se a traduzir o resultado da avaliação que, em face do teor e conclusões do relatório da IGF, aqueles membros do Governo efetuaram quanto à existência de fundamento legal para demitir o presidente do Conselho de Administração e a CEO".

Mais argumenta o executivo que essa decisão "não degrada a relevância da pronúncia do presidente do Conselho de Administração e da resposta da CEO apresentadas, cujas questões essenciais nelas invocadas são agora contraditoriamente ponderadas, (...) de modo nenhum se esvaziando o sentido e a utilidade da audiência prévia a que houve lugar".

Mas, questiona Paulo Veiga e Moura: "Alguma vez iriam tomar uma decisão contrária à anunciada pelo ministro?".

Talvez por tudo isto fosse melhor ter pedido mesmo o tal parecer jurídico que nunca chegou a existir. João Santos admite que o Governo pode sair menorizado do caso, assinalando que um respaldo jurídico daria outra força na defesa da sua posição. "Numa decisão desta dimensão uma das coisas que teria de se ter é saber se há motivo e perceber, juridicamente, como se faz isto", vinca.

E tudo isto pode agora dar força à ex-CEO da TAP, que já anunciou que vai processar o Estado, estando à vista uma possível indemnização para Christine Ourmières-Widener. Para os juristas ouvidos pela CNN Portugal não há dúvidas: caso o processo avance mesmo para tribunal, o anúncio da decisão antes da mesma ter sido comunicada à gestora poderá ser um peso pesado na ora da decisão.

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