Companhia brasileira controlada por Neeleman é credora da TAP em quase 200 milhões e quer garantias reforçadas de que vai receber o dinheiro. Caso contrário, diz o CEO, ameaça avançar para tribunal e pôr em risco os acordos de voos no Brasil, o que desvalorizaria a companhia. CEO revela que já contratou advogados em Portugal – e que está a contactar os interessados na privatização
O CEO da Azul, uma das maiores companhias aéreas do Brasil e principal parceira da TAP no país, acusa a companhia portuguesa de “querer deixar para trás” uma dívida de 198 milhões de euros (1,2 mil milhões de reais) por causa de um empréstimo obrigacionista feito em 2016. John Rodgerson admite interferir na privatização da empresa portuguesa, desestabilizando o processo e até o valor da transportadora, se o dinheiro não for pago - ou se não forem assinadas mais garantias entre as duas companhias. “Este é o momento de pedirmos os nossos direitos”, afirma em entrevista à CNN Portugal.
Mais: o gestor garante que a companhia brasileira já contratou um escritório de advogados em Portugal - que se recusou a identificar - e admite recorrer aos tribunais.
“O facto de estarem a começar a criar uma 'TAP boa' e a querer deixar a dívida para trás” foi o sinal de alarme, diz. “Achámos prudente contratar um escritório para conversar com a TAP e com o Governo português sobre termos mais garantias ou recebermos o dinheiro de volta".
Dívida tem oito anos
A empresa a privatizar é a TAP SA, mas a dívida está na TAP SGPS, que está a ser "esvaziada" de ativos: esta é a questão de fundo.
A dívida que a "holding" do Estado tem para com a empresa brasileira remonta ao tempo da privatização anterior da TAP, quando se deu a entrada do consórcio composto por Humberto Pedrosa e David Neeleman, o empresário que se mantém como o maior acionista da Azul. Na Assembleia Geral de março de 2016 ficou previsto que a Azul avançaria com 90 milhões de euros para capitalizar a TAP (entrando o Estado com mais 30 milhões), através de uma emissão obrigacionista da TAP SGPS (que controlava a TAP S.A.) a vencer em 2026. A operação avançou.
Segundo uma auditoria divulgada pelo Tribunal de Contas em 2018, estas obrigações seriam convertíveis em capital da TAP. No entanto, com a nacionalização da empresa de 2020, acordou-se que a Azul prescindiria da conversão de obrigações em ações.
Só que, segundo o CEO da Azul, quando a empresa que dirige se comprometeu com a subscrição daquelas obrigações, a configuração da companhia portuguesa era muito diferente daquela que é a sua realidade agora. “Quando investimos, investimos na TAP inteira”, explica, apontando para o facto de o Governo de António Costa, quando decidiu nacionalizar a TAP, em 2020, ter separado a ligação que havia entre a TAP S.A e a TAP SGPS, que ele apelida de "TAP má”, por ter um buraco de quase 1,3 mil milhões de euros.
As duas entidades estão hoje separadas, mesmo se ambas são detidas pelo Estado português. E é a SGPS a devedora dos 198 milhões de euros.
O CEO da Azul teme que, em 2026, o dinheiro não seja pago à companhia brasileira - especialmente porque, acredita, nessa altura a TAP S.A. já não será controlada pelo Estado. “O que não se pode fazer é esperar por 2026 e depois dizer, 'está quebrado, porque se tiraram toda as coisas boas que poderiam pagar essa dívida'. Obviamente, isso não é uma coisa certa nem para a Azul, nem para o Governo português”, aponta.
Quando foi separada, a TAP SGPS ficou com os ativos que não faziam parte da operação principal da companhia aérea, como a Portugália, a Cateringpor, a Groundforce e a M&E Brasil, de manutenção. No entanto, com o passar dos anos, esta holding tem vindo a ser esvaziada. Hoje a Groundforce (denominada Menzies Aviation) está nas mãos da TAP S.A e a Portugália está em vias de ser absorvida pela "TAP boa".
Se a dívida não for paga - ou se não forem dadas mais garantias desse reembolso -, a Azul assume que poderá romper a aliança que tem com a TAP S.A. no Brasil. "A TAP serve 11 cidades no Brasil e, na sua maioria, a Azul é a empresa aérea que lhes garante mais serviços de conectividade". Se esses pactos deixassem de existir, sublinha John Rodgerson, “seria uma perde-perde e seria mais difícil vender a empresa, porque sem a conectividade do Brasil, o valor da TAP também cai”.
Além disso, revela o CEO, os potenciais compradores da empresa portuguesa, incluindo a Lufthansa, que tem sido apontada como forte candidata, já foram alertados para a possibilidade de esses acordos entre as duas companhias aéreas virem a ser desfeitos. “É o nosso papel, porque eles também querem saber se o acordo com a Azul vai continuar”, prossegue. “E eu digo: depende, depende dessa dívida”.
"Não podem tirar todas as coisas boas da TAP que me deve dinheiro, isso é contra a lei"
CNN Portugal: A Azul anunciou que contratou um escritório de advocacia europeu para cobrar a dívida de 1,2 mil milhões de reais à TAP (cerca de 198 milhões de euros). O que motivou esta decisão?
John Rodgerson: Em 2016 emprestámos dinheiro à TAP, lado a lado com o Governo português. Investimos 90 milhões de euros, um empréstimo que tem juros. E ao longo destes anos temos tido conversas amigáveis com a TAP sobre esta dívida. Como agora há um processo para, potencialmente, vender a TAP, achámos prudente contratar um escritório para conversar com TAP e com o Governo português sobre termos mais garantias ou receber o dinheiro de volta.
O escritório é em Portugal?
Sim, temos um escritório em Portugal e um escritório no Brasil que nos está a ajudar nesse processo.
Sobre esta dívida, disse numa conferência de imprensa que, como a TAP estava em processo de venda, tinha de pagar o valor em dívida. Pode explicar essa declaração e o porquê de a ter feito agora?
Porque eles estão a separar a TAP. Estão a tirar ativos da TAP má [TAP SGPS] para a TAP boa [TAP S.A.], para criar uma atividade que pode ser vendida. Mas eu tenho garantias que devem estar na TAP boa. Então, por essa razão, estamos a dizer que não podem tirar todas as coisas boas da TAP onde estou, onde está o meu empréstimo. Isso é contra a lei. Não podem tirar essas coisas. Então, por essa razão, isso veio para a mesa agora. Porque por causa dessa separação da TAP boa e TAP má, e tirando os ativos bons por um lado e deixando a dívida num lado só, isso não seria justo, certo? Não é uma maneira certa para fazer as coisas.
Da dívida que fala, o devedor é a TAP SGPS, mas o processo de venda que está em curso é da TAP S.A. Sendo entidades diferentes, existiu algum acordo para que no caso de venda de uma das partes a dívida teria de ser regularizada?
Quero deixar claro que quando investimos no TAP, investimos lado a lado com o Governo português. Emprestámos 90 milhões de euros e o Governo português 30 milhões de euros. Estivemos lado a lado com o Estado português. Quando investimos, [investimos] na TAP inteira.
Essa TAP de 2016 deixou de existir com a nacionalização.
Mas na altura as garantias que foram dadas à Azul foram o programa de fidelidade e outros ativos dentro da TAP. E o que é que está a acontecer? Estão a tirar essas coisas boas da TAP SGPS para a TAP S.A., mas querem que a dívida fique na TAP má. Isso obviamente é contra a lei.
O acordo de reembolso dessa dívida era até 2026. Pretendem que seja pago antes?
O que estamos a dizer é que tem de haver garantias ou tem de pagar de volta. O que não pode fazer é esperar por 2026 e depois dizer, está quebrado, porque se tiraram toda as coisas boas que poderiam pagar essa dívida. Obviamente, isso não é uma coisa certa nem para a Azul, nem para o Governo português.
A TAP e a Azul têm vários acordos em curso. Se a dívida não for paga, os acordos podem deixar de existir?
Pode impactar, não é? Não se faz isso com seu parceiro, não é? A Azul é a maior empresa aérea do Brasil, em número de cidades servidas. Somos o maior parceiro da TAP dentro do Brasil. A TAP serve 11 cidades no Brasil e em muitas dessas cidades, a Azul é a empresa aérea que tem mais serviços e mais conectividade. Mas isso seria uma [situação] perde-perde e seria mais difícil vender a empresa, porque sem a conectividade do Brasil, o valor da TAP também cai.
A Azul recebeu algum sinal de alarme ao longo dos anos na negociação desta dívida?
O primeiro alerta é que quando investimos na TAP estava tudo junto. Ninguém imaginava que eles iam se separar [a TAP SGPS e a TAP S.A.]. O nosso dinheiro foi usado pela TAP, investimos com boa-fé e com garantias, e por isso só temos de cumprir o contrato. Não estamos a pedir nada para além de se cumprir o contrato.
E como é que a TAP tem recebido as exigências da Azul?
Temos falado com a TAP ao longo destes e temos sido muito pacientes, porque as garantias não estavam lá. Eles diziam “não, vamos botar, vamos botar”. Ouvimos essa conversa há anos. Mas o que nos preocupou neste momento? O facto de estarem a começar a criar uma TAP boa e a querer deixar a dívida para trás. E por essa razão, levantámos a nossa cabeça para dizer, não, este é o nosso momento onde temos de pedir os nossos direitos.
A Fitch baixou na última semana os ratings da Azul. A pressão colocada na TAP para o pagamento tem em vista a resolução deste problema?
Se verificar, todas as empresas aéreas da América Latina pediram uma recuperação judicial. A Azul não escolheu esse caminho. Preferimos sempre ter negociações amigáveis com os nossos credores e com as pessoas com quem conversamos todos os dias. Nas próximas semanas haverá notícias sobre acordos com os maiores credores da Azul que ainda nos estão a entregar aeronaves novas. Mas isso não tem nada a ver com a situação da TAP. A situação da TAP é porque a TAP está à venda e estão a criar duas empresas separadas. Querem deixar a nossa dívida para trás e isso não é certo.
Admite processar a TAP?
Sim, claro, se esse for o caminho. Mas preferimos sempre ter conversas amigáveis e chegar a acordo para resolver o assunto de uma maneira amigável porque a TAP é um parceiro nosso.
A dívida pode pôr em causa a privatização da TAP?
Acredito que sim, com certeza. [O assunto] tem de ser resolvido. [A dívida] não tem de ser paga agora necessariamente, mas [o assunto] tem de ser resolvido de alguma forma.
Está em contacto com os potenciais compradores da TAP sobre este assunto, nomeadamente com a Lufthansa?
Falamos com todos. É nosso papel, porque eles também querem saber se o acordo com a Azul vai continuar? E eu digo, depende, depende dessa dívida.