“Já é assim desde 1949”. População de Taiwan “despreocupada” perante “normalização” de ameaças da China

Agência Lusa , DCT
27 ago 2022, 08:09
Exercícios militares em Taiwan (EPA)

Após décadas de ditadura, sob o domínio das forças nacionalistas, Taiwan passou por uma transição política na década de 1980, e é hoje uma das democracias mais progressistas da Ásia

As manobras militares realizadas pela República Popular da China ao redor de Taiwan “não preocupam” a população local, contam à Lusa residentes na ilha, observando que este tipo de ameaças é constante há várias décadas.

“Já é assim desde 1949”, resume Kuo Tsanyu, gestor de produto na indústria de informação e equipamento informático, natural de Taipé. “Nada realmente mudou”, diz à agência Lusa.

China e Taiwan vivem como dois territórios autónomos desde 1949, altura em que o antigo governo nacionalista chinês se refugiou na ilha, após a derrota na guerra civil frente aos comunistas. Pequim considera Taiwan parte do seu território e ameaça a reunificação através da força, caso a ilha declare formalmente a independência.

Após a presidente da Câmara dos Representantes norte-americana, Nancy Pelosi, se deslocar a Taiwan - a visita de mais alto nível realizada pelos Estados Unidos à ilha em 25 anos – Pequim lançou exercícios militares numa escala sem precedentes, que incluíram o lançamento de mísseis e o uso de fogo real. Durante quase uma semana, o Exército de Libertação Popular fez um bloqueio marítimo e aéreo de facto ao território.

O português Ricardo Oliveira, que está a tirar doutoramento em Estudos da Ásia-Pacífico na National Chengchi University, em Taiwan, observou também “desinteresse” e “despreocupação” por parte da população local.

“Ninguém deixa de ir beber o seu chá de bolhas (‘bubble tea’, em português) devido aos exercícios militares”, resume Oliveira, referindo-se à popular bebida originária em Taiwan que mistura chá com frutas ou leite.

“São já várias décadas de rivalidade que criaram um ambiente de normalização e até de rotina face a estas situações, que noutros sítios levariam a um clima de enorme tensão e ansiedade”, descreve à Lusa.

Kuo Tsanyu acrescenta que existe também um sentimento de “incapacidade” que motiva essa despreocupação.

“Não temos hipótese de nos defender caso a China lance um ataque militar”, aponta. “A não ser que outros países venham em nosso socorro, seremos unificados em breve”, diz.

Washington passou a reconhecer, em 1979, a liderança em Pequim como o único governo legítimo de toda a China, rompendo os contactos oficiais com Taipé. No entanto, os Estados Unidos continuam a ser o maior aliado e fornecedor de armas de Taiwan.

Kuo refere, porém, que desde a invasão da Ucrânia pela Rússia começou a pensar no que faria se um cenário idêntico sucedesse em Taiwan.

“Estou a analisar a possibilidade de obter um segundo passaporte”, revela. “É importante ter um plano B”.

Ricardo Oliveira observa que a invasão da Ucrânia despoletou “debates exaustivos”, face aos “possíveis paralelismos” com Taiwan, levando a que a doutrina de defesa do território fosse revista.

O “receio face ao futuro” é particularmente sentido entre activistas, agentes activos da sociedade civil, soberanistas e intelectuais liberais do Partido Progressista Democrático (PPD), que ocupa actualmente o poder na ilha e rejeita o chamado “Consenso de 92”, que reconhece Taiwan e a China continental como parte de uma única nação chinesa, e a reunificação da ilha sob a fórmula “um país, dois sistemas”.

Aquela fórmula foi usada em Macau e Hong Kong, após a transferência dos dois territórios para a China, por Portugal e pelo Reino Unido, respetivamente, e garante às duas regiões um elevado grau de autonomia a nível executivo, legislativo e judiciário.

Mas a repressão lançada por Pequim sobre o movimento pró-democracia de Hong Kong, que resultou na prisão de activistas e no afastamento de membros da oposição do Conselho Legislativo local, aumentaram as dúvidas sobre a validade daquela fórmula.

Após décadas de ditadura, sob o domínio das forças nacionalistas, Taiwan passou por uma transição política na década de 1980, e é hoje uma das democracias mais progressistas da Ásia.

Mas, na China continental, o “papel dirigente” do Partido Comunista continua a ser um “princípio cardeal”. Activistas e dissidentes políticos são frequentemente punidos por subversão do poder do Estado ou por “causar distúrbios”. Pequim exerce um controlo férreo sobre o debate público, com académicos e intelectuais pressionados a aderir às interpretações oficiais do regime comunista em questões de natureza histórica, enquanto a imprensa é sujeita a uma censura rigorosa.

Kuo explica que, para a geração dos seus pais, o sistema vigente no território “não importa”.

“A minha mãe disse uma vez que, para ela, o que importa é receber [o salário] no final do mês, e não quem governa o país”, diz. “Mas, para a minha geração, isto tem maior relevância, já que crescemos num sistema democrático”, nota.

Ricardo Oliveira observa o mesmo fenómeno: “Entre os mais jovens, a maioria não se identifica politicamente de modo algum com o regime chinês, nem com a sua estirpe de comunismo”.

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