Lai Ching-te entende que a China quer recuperar Taiwan não por razões territoriais mas sim por razões geopolíticas. E dá o exemplo dos territórios cedidos à Rússia para comprovar isso mesmo. Para Jorge Tavares da Silva, especialista em assuntos chineses, "as razões históricas" que Pequim alega para a soberania "perdem razão quando se olha para a parte leste", mas para o major-general Agostinho Costa está-se "a comparar o incomparável"
O presidente de Taiwan, Lai Ching-te, desafiou no domingo o Partido Comunista Chinês (PCC) a recuperar os territórios cedidos à Rússia no século XIX, sob o desígnio da “reunificação”, criticando a dualidade de critérios de Pequim em relação a Taiwan.
Citado pela agência Reuters, Lai Ching-te, eleito presidente de Taiwan em janeiro, lembra que a China também perdeu território para a Rússia em 1858, ano em que assinou um dos chamados “tratados desiguais”, que a última dinastia chinesa, a dinastia Qing, se viu obrigada a assinar com as potências estrangeiras no século XIX, e no qual cedeu aos representantes do Império Russo os seus territórios situados à esquerda do rio Amur e nos montes Sikhote-Alin. Entre eles, Haishenwai – hoje conhecida como Vladivostok, uma importante cidade portuária russa.
“Se [o controlo de Taiwan] é pelo bem da integridade territorial, porque é que [a China] não recupera as terras ocupadas pela Rússia que foram assinadas no tratado de Aigun? A Rússia está agora no seu ponto mais fraco, certo?”, questionou, acrescentando que esta postura de Pequim só mostra que “não quer invadir Taiwan por razões territoriais”, como tem vindo a argumentar, mas sim por razões de natureza geopolítica, para mudar a ordem mundial a seu favor.
Para o major-general Agostinho Costa, este argumento de Lai Ching-te não faz sentido, uma vez que “está a comparar o incomparável”, lembrando que “o conflito que havia entre a União Soviética e a República Popular da China foi sanado pela via diplomática entre a Rússia e a República Popular da China”.
Já em relação a Taiwan, o especialista militar lembra que a Organização das Nações Unidas (ONU) reconhece a ilha como território chinês. “Tal como o eram Macau e Hong Kong. Os portugueses saíram de Macau tranquilamente, sempre dissemos que era território chinês sob administração portuguesa”, recorda, acrescentando que “o número de países que reconhece Taiwan é absolutamente minúsculo e irrelevante”. Além do Vaticano, são 11 os países que reconhecem a soberania de Taiwan - sete na América Latina e nas Caraíbas, três nas ilhas do Pacífico e um em África.
Portanto, no entender do major-general, “o presidente de Taiwan não está a ser honesto intelectualmente”.
O professor Jorge Tavares da Silva, especialista em assuntos chineses, por sua vez, diz entender os argumentos de Lai Ching-te, concordando que “as razões históricas que a China muitas vezes alega para justificar a soberania sobre Taiwan perdem razão quando se olha para a parte leste, onde não alega razões históricas para reivindicar território cedido à União Soviética na altura”.
Para o professor de Relações Internacionais da Universidade de Aveiro, mais do que razões históricas e territoriais, o interesse da China por Taiwan deve-se sobretudo a questões de política interna. Basta lembrar que, em 1949, ano da proclamação da República Popular da China, “um dos grandes objetivos” estabelecidos pelo PCC era precisamente “a unidade e o prestígio nacional”, tanto que reivindicaram o Tibete na década de 60 e insistem em controlar Taiwan.
“Recuperar Taiwan é, acima de tudo, um objetivo político, de política interna. Se isto não for alcançado, politicamente, o PCC desafia a sua própria sobrevivência”, argumenta Jorge Tavares da Silva.
Mas também há razões de natureza geopolítica, acrescenta o professor, descrevendo Taiwan como “uma espécie de porta-aviões na costa China”, situada no Oceano Pacífico, a cerca de 120 km da costa da China. Daí que esta região seja “importantíssima” para Pequim, “quer do ponto de vista da segurança, quer para controlar toda essa região marítima”, diz Jorge Tavares da Silva.
Além disso, há uma outra questão que pode explicar o interesse chinês em Taiwan, que é a questão económica, uma vez que Taipé produz mais de 60% dos semicondutores de todo o mundo, sendo a maioria fabricada por uma única empresa, a Taiwan Semiconductor Manufacturing Corporation (TSMC, em inglês).
No entender de Jorge Tavares da Silva, Pequim de facto nunca se esforçou para reivindicar os territórios cedidos à Rússia porque olha para Moscovo como "o parceiro ideológico tradicional num modelo político passado" e que "não quereria confrontar".
"Eu acho que até é mais do que a questão geopolítica, é mesmo aquele parceiro com o qual não quis entrar em conflito", sublinha, lembrando que o mesmo não acontece com a Índia, com quem a China ainda tem delimitações fronteiriças por resolver, lembra o especialista, nomeadamente na região fronteiriça dos Himalaias, região disputada entre os dois países há mais de 60 anos.