Governo espera que portugueses fumem e bebam mais em 2025. Médicos estão “preocupados” e dizem que fatura para a saúde será maior do que a receita fiscal

29 out 2024, 07:00
Tabagismo

Especialistas dizem-se preocupados com a decisão do Governo e alertam que cabe ao Executivo colocar um travão àquele que é já um longo e conhecido problema na sociedade portuguesa. “Estamos a andar para trás”, advertem

O tabagismo matou mais de 13 mil pessoas em 2019 em Portugal. E cerca de 2.500 morreram por conta do alcoolismo em 2021. O consumo de tabaco nas suas mais variadas formas e o consumo de álcool estão entre as três principais causas de mortes evitáveis em Portugal e no mundo.

Ainda assim, o Governo espera que, no próximo ano, os portugueses fumem e bebam mais uma vez que apesar de não terem aumentado as taxas de imposto sobre estes consumos na proposta de Orçamento do Estado para 2025, esperam arrecadar mais 80 milhões de euros em impostos. E pouco desse dinheiro que o Executivo espera encaixar vai ser usado para o Serviço Nacional de Saúde.

À CNN Portugal, especialistas na área da pneumologia, sociologia médica e psiquiatria alertam para as implicações para a saúde de uma medida que passa uma mensagem que, aos dias de hoje, já não faz sentido. “Estão a passar uma mensagem completamente errada, é fácil responder a isso”, começa por nos dizer Daniel Coutinho, pneumologista do Hospital de Vila Nova de Gaia/Espinho e membro da Sociedade Portuguesa de Pneumologia. O médico classifica como “irresponsabilidade completa” a decisão do Governo não aumentar o imposto do tabaco, pois considera que é a subida do preço “o que vai dissuadir o consumo”. “Até entendo as contas deles, querem meter mais dinheiro no bolso dos portugueses, mas a mensagem passada é complemente errada até a nível de saúde pública”, diz o pneumologista, vincando que “o facto de não pesar no bolso é um incentivo ao consumo e o facto de o Governo contar com esse incentivo ao consumo é ainda mais grave”.

Claro que estamos bastante preocupados com tudo o que permita o incentivo ou a não dissuasão ao consumo, sabemos o que o tabaco representa. Nós pneumologistas sentimos todos os dias a carga que o tabaco traz para a saúde”, adverte Daniel Coutinho.

Rui Nunes, médico, professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e presidente da Associação Portuguesa de Bioética, é rápido a dizer que “não faz sentido sermos proibicionistas”, mas ´igualmente rápido a considerar que “tem de haver uma mensagem do foro pedagógico”, o que diz ter falhado com este Orçamento do Estado para 2025. “Quer por questões de princípios e pelas consequências [para a saúde], creio que teria sido prudente dar um sinal, por pequeno que fosse, de um aumento da carga fiscal, sobretudo no tabaco”, diz o também especialista em sociologia médica, defendendo que o Governo deveria “rever” esta sua posição.

“Devíamos passar uma mensagem de que há liberdade para um consumo responsável, mas o Estado tem de ser o primeiro a moderar esse mesmo consumo. Mas em Portugal não se faz estudos económicos a médio e longo prazo, mas sabemos que impacto esta medida traz a médio e longo prazo no SNS”, diz Rui Nunes, referindo-se às consequências para a saúde e aumento de consultas e tratamento para patologias associadas ao consumo de álcool e tabaco. 

Segundo o relatório Perfis de Saúde do País 2023, da OCDE, o consumo de tabaco em Portugal continua abaixo da média na União Europeia, mas, ainda assim, é um dos responsáveis pelas mortes por causas evitáveis, assim como o consumo de álcool.  E a prevalência de consumo destes dois aditivos tem vindo a aumentar, como mostra o V Inquérito Nacional ao Consumo de Substâncias Psicoativas na População Geral 2022, promovido pelo Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) com investigação do CICS.NOVA. Os dados apresentados neste estudo indicam que a prevalência do consumo de tabaco em Portugal aumentou de 48,8% para 51% e a do consumo de álcool de 49,1% para 56,4% entre 2017 e 2022. 

A coordenadora da Comissão de Trabalho de Tabagismo da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, Sofia Ravara, já tinha classificado de “irresponsabilidade política” e “incompetência grave e inaceitável” a decisão do Governo de não aumentar os impostos sobre o álcool e o tabaco, dois “produtos de consumo legais, mas letais”. 

Com esta decisão não estamos a andar para a frente, estamos a andar para trás. E isso tem consequências a nível da saúde”, lamenta Rui Nunes.

As contas de “merceeiro” que os médicos querem que sejam feitas

Ora, vamos então às contas do Governo. Segundo o Orçamento do Estado para o próximo ano, perspetiva-se que a receita fiscal com o imposto sobre o consumo de tabaco suba 63,7 milhões de euros face a 2024, totalizando 1.367 milhões de euros em 2025. Deste valor, 176 milhões destinam-se ao Programa Orçamental da Saúde, exatamente o mesmo valor alocado este ano. Contas feitas: apenas 13% da receita do consumo de tabaco será usado para financiar o SNS. No que toca ao álcool, o Executivo prevê que uma receita 16,4 milhões de euros acima da conseguida este ano, esperando, assim, um total de 348,3 milhões de euros em 2025 à boleia do IABA (Imposto sobre o álcool, as bebidas alcoólicas e as bebidas adicionadas de açúcar ou outros edulcorantes).

Mas o que o Orçamento do Estado não diz é quanto o Estado espera gastar com consultas de cessação tabágica ou tratamentos para casos de alcoolismo. Além do mais, alerta Daniel Coutinho, esperar que se fume mais quando em vigor está uma “agenda” de Portugal sem tabaco e se acaba de anunciar a comparticipação de dois medicamentos para deixar de fumar é um tanto ou quanto contraditório. “Todos nós, Sociedade Portuguesa de pneumologia e pneumologistas vemos com muita preocupação esta atitude e suponho que o Ministério da Saúde também”, diz Daniel Coutinho.

O médico pneumologista diz que é fácil perceber a lógica do Governo, naquilo que chama “contas de merceeiro”. “Eu não sou economista, mas, em contas de merceeiro isto não faz sentido, nem do ponto de vista economia”, atira, apressando-se a tentar perceber os cálculos: “Feitas bem as contas, se houvesse um aumento efetivo do imposto [sobre o tabaco], isso iria dar um aumento de receita mais segura, porque o Estado acha que vai arrecadar com um aumento de consumo, que não é real, não sabemos se o aumento de consumo vai existir”. Já Rui Nunes não tem tantas dúvidas quanto a este ponto: “Com esta política fiscal do Orçamento do Estado o consumo vai aumentar”.

E agora vamos às contas médicas, que, no fundo, são também contas do Estado, mas que ao invés de encherem os bolsos do saldo público, ajudam a esvaziá-lo. E embora defenda que uma maior carga fiscal possa ser um bom travão ao consumo, a psiquiatra Maria Moreno diz que é preciso ir mais além quando em causa estão adições como o tabaco e o álcool, cujo seu acesso acaba por continuar facilitado e até normalizado. “O álcool é a droga mais aceite na nossa sociedade. É quase parte de uma etiqueta social beber um copo de vinho ou dois ou mais em determinados eventos”, adianta a psiquiatria do Hospital Lusíadas Amadora e da CogniLAB.

A dependência é um problema complexo que envolve factores risco biológicos, psicológicos e sociais. Mesmo que o preço aumente, pessoas que já têm uma dependência forte podem continuar a consumir, priorizando o produto em detrimento de outras necessidades. Para estas pessoas, a garantia de um acesso fácil e atempado à ajuda em consulta de psiquiatria pode fazer uma diferença muito maior”, defende a psiquiatra Maria Moreno.

O Relatório Anual - Acesso a Cuidados de Saúde nos Estabelecimentos do SNS e Entidades Convencionais 2019, diz que, nesse ano, a proporção de utentes nos cuidados de saúde primários com 14 ou mais anos e com o problema de "consumo excessivo de álcool", a quem foi realizada pelo menos uma consulta relacionada nos últimos 3 anos era de  56,8%. Em tratamento, estavam 13.951 pessoas. Já no que diz respeito ao tabaco, segundo os dados facultados pela Direção-Geral da Saúde à CNN Portugal, em 2022 foram realizadas 32.817 consultas, das quais 8.843 consultas, o maior número desde 2012. Ou seja, em 2022 foram mais de oito mil as pessoas que procuraram ajuda para deixar de fumar. Devido à reorganização em curso no SNS, nomeadamente à criação das ULS, não é ainda possível à DGS facultar dados de 2023.

Relativamente a centros de consulta, em 2022 existiam 152 em todo o país, menos 76 do que em 2018, ano em que se registaram mais locais de atendimento, um total de 228. Mesmo sendo notória uma oscilação ao longo dos anos, numa análise final, mesmo com a prevalência do consumo do tabaco a aumentar, foram apenas criados 25 novos locais para consultas de cessação tabágica em dez anos, entre 2012 e 2022.

O Estado comparticipa entre 80% a 100% alguns tratamentos para adições, mas a despesa total com este tipo de situações não é conhecida. A CNN Portugal questionou o Ministério da Saúde e a Direção-Executiva do SNS sobre quanto é que o Estado tem gastado nos últimos anos com consultas e tratamentos de adições, com foco no tabaco e álcool, mas não obteve uma resposta em tempo útil.

O que nos diz a ciência sobre o álcool e o tabaco

O tabagismo e o consumo de álcool em proporções não moderadas podem ou não ser causa direta de inúmeras patologias, como AVC, cancro, diabetes, doença respiratória crónica, doença cardiovascular e  doença hepática crónica. Estas duas substâncias estão há anos na mira da Organização Mundial da Saúde (OMS) por serem das mais nocivas, embora ambas sejam de consumo liberalizado em quase todo o mundo. “Do ponto de vista da saúde não há nenhuma dúvida que o aumento de consumo é extraordinariamente nocivo para a saúde”, atira Rui Nunes. 

O mais recente relatório do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (Sicad) revela que os óbitos por doenças relacionadas com o consumo de álcool, em 2020 e 2021, foram “os mais altos dos últimos dez anos”, com 2.544 mortes registadas em 2020 e 2.526 em 2021. Em todo o mundo morrem três milhões de pessoas por consequência direta do consumo deste produto.

“O consumo excessivo de álcool pode ser devastador para o corpo e para a mente. A nível físico, afeta o fígado e aumenta o risco de vários cancros. O coração também é afetado. No cérebro, o álcool interfere com a memória e pode conduzir a danos neurológicos permanentes, mais comuns daquilo que imaginamos. E no campo da saúde mental, o álcool é também muitas vezes usado como ‘automedicação’. Aparentemente reduz tristezas, ansiedades, ajuda no sono, mas cria-se um círculo vicioso do qual é muito difícil sair”, esclarece a psiquiatra Maria Moreno.

No que toca ao tabaco, os dados mais recentes em Portugal dizem respeito a 2019 e indicam que morreram 13.559 pessoas à boleia do tabagismo, cerca de 11,7% de todos os óbitos registados nesse ano, segundo o relatório do Programa Nacional para a Prevenção e Controlo do Tabagismo, da Direção-Geral da Saúde. No mundo, são oito milhões as mortes direta ou indiretamente relacionadas com o tabagismo.

O tabaco é causa de cerca de 90% dos casos de cancro do pulmão, aquele que mais mata em Portugal, mas pode ainda ser um responsável direto pelo cancro da boca, laringe e faringe. Foram também já registados em Portugal vários casos de doença respiratória aguda grave causada pelo uso de cigarros eletrónicos. Em alguns destes casos houve a necessidade de internamento e os especialistas alertam que o uso de cigarros eletrónicos pode levar à morte.

Os especialistas alertam ainda para as novas formas de fumar, referindo-se ao tabaco aquecido. No início do ano entraram em vigor as novas regras sobre este tipo de tabaco, equiparando-o aos cigarros convencionais, com mensagens chocantes nas embalagens e proibição de aromas, algo que os especialistas, porém, consideram insuficiente para fazer frente à maior procura destes produtos, sobretudo por parte dos jovens.

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