«Gosto de sentir que tenho uma pequena percentagem do golo do Éder»

15 jul 2016, 23:58
Susana Torres (foto: arquivo pessoal)

Susana Torres, a «mental coach» do autor do golo que deu o Euro 2016 a Portugal, conta como começou a acompanhá-lo em sessões de coaching e como o ajudou a acreditar em si próprio. E admite: «Este Éder não é o mesmo»

Susana Torres começou a acompanhar Éder há cerca de um ano e meio. Na altura ao serviço do Sp. Braga, o autor do golo mais importante da história do futebol português atravessava uma crise de confiança. Foi nessa altura que recorreu à especialista que o ajudou a encontrar saídas para os problemas e tornar-se mais confiante. Ajudou-o a traçar objetivos, muitos deles entretanto cumpridos. O primeiro deles foi chegar à Premier League em seis meses: CHECK! O último foi precisamente marcar o golo que desse o título Europeu a Portugal. «Eu estava na bancada a assistir ao jogo e, quando ele entrou, fiquei relaxada. Eu sabia que ele ia marcar. A única dúvida é se ele entrava», diz em entrevista ao Maisfutebol.

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Trabalha só com futebolistas ou também com desportistas de outras modalidades?

Noventa e cinco por cento do meu trabalho está assente em futebolistas de primeiras ligas.

Primeiras ligas?

Na nossa, na inglesa e na francesa. Tenho um ou outro atleta que não têm a ver com futebol, mas são questões pontuais.

A situação em que o Éder sentia que estava não potenciava resultados»

Os futebolistas que a procuram, fazem-no porque não obtêm resultados positivos?

Não necessariamente. Gosto de trabalhar com atletas onde está tudo bem mas que querem ser ainda melhores do que já são. Atletas que têm o mindset do Ronaldo, o que, por incrível que pareça, é comum. Há atletas que pensam da seguinte forma: 'eu sei que já sou bom, mas quero ser ainda melhor, potenciar tudo aquilo que eu tenho'.

Quando o Éder recorreu a si, fê-lo porque queria ser melhor do que já era ou porque estava com um problema de auto-confiança que o impedia de atingir um determinado patamar?

O Éder é um rapaz extremamente inteligente, que lê bastante e que é muito curioso. E foi por aí que ele começou a interessar-se pelo coaching. Queria saber de que forma é que isto podia alterar ou potenciar alguma coisa na vida dele. A situação em que ele sentia que estava não potenciava os resultados.

Qual era o problema dele?

Ele não tinha problemas. Ele simplesmente estava a olhar para as coisas erradas. A partir do momento em que ele começou a olhar para as coisas certas, que o ajudavam a potenciar resultados, começou a perceber que o coaching podia ajudar a transportá-lo para um nível diferente daquele em que ele estava. E aproveitou isso para crescer enquanto atleta e pessoa.

Começou a acompanhar o Éder quando ele ainda estava Sp. Braga...

Há um ano e meio... Começámos a trabalhar na primeira semana de janeiro de 2015.

Como é que o encontrou animicamente?

Não diria que ele estava desmotivado, porque o Éder é uma pessoa que esconde bem as emoções. Ele está sempre bem.

Sempre a sorrir mesmo nos momentos difíceis?

Sim, sim. Lida bem com isso. Não encontrei propriamente uma pessoa desanimada. Encontrei uma pessoa curiosa. Provavelmente tinha questões por resolver: da imagem que tinha em Portugal, do que as pessoas diziam sobre ele. Mas nós preocupamo-nos muito mais com o que o atleta quer para o futuro do que propriamente com o que aconteceu para trás. O passado não é relevante para o nosso trabalho. O que importa é decidirmos o que queremos fazer daqui para a frente.

[No Sp. Braga] dizia-se que nos remates dele a bola ia sempre parar à pedreira. Hoje em dia, o Éder não falha um remate à baliza: tem isso muito bem treinado.»

Está a circular um vídeo de uma entrevista do Éder ao Alta Definição em que ele admite que chegou a pensar em desistir do futebol porque achava que «estava a atrapalhar». Era assim que ele se sentia quando começou a acompanhá-lo?

Sim. Ele não me disse isso nas primeiras sessões, mas depois, quando começou a ganhar mais confiança, chegou a dizer-me isso. E o resto verão no Alta Definição [risos].

É curioso que na fase final da época em que começou a acompanhar o Éder, ele marcou seis golos em cerca de um mês. Isso é o resultado do seu trabalho com ele a dar frutos?

O Éder aprendeu a ser eficaz. A usar ao máximo o foco de visão periférica. Ele treina isso há um ano e meio. Lembro-me que antes de eu começar a trabalhar com o Éder, ele tinha uma alcunha. Não me lembro ao certo de qual era, mas dizia-se que nos remates dele a bola ia sempre parar à pedreira. Hoje em dia, o Éder não falha um remate à baliza: tem isso muito bem treinado.

Existe uma expressão [na jogada do golo] que ele leva na cara, e que está expressa em várias fotografias, que espelha determinação e foco.»

Quer dizer que há muito de mental na questão da pontaria?

É uma combinação das duas coisas. Mas posso ser muito bom fisica e tecnicamente mas, se não for forte mentalmente, não vou fazer nada. Isso justifica que jogadores muito bons falhem penáltis ou que equipas muito boas, que custam milhões, percam com outras inferiores. Isso acontece constantemente e não tem a ver com técnica ou com tática. Se assim fosse, o futebol era extremamente previsível.

Acredita que o Éder de há dois anos, por exemplo, não marcaria aquele golo à França?

Não sei. Mas uma coisa sei. Existe uma expressão [na jogada do golo] que ele leva na cara, e que está expressa em várias fotografias, que espelha determinação e foco. E em momento algum o Éder olha para a baliza, o que significa que ele está a usar ao máximo a sua visão periférica. Ele consegue colocar a bola no sítio que quer sem estar a olhar para lá.

 

Um dos objetivos traçados nas vossas sessões foi que ele chegasse à Premier League em seis meses. Porquê a Premier League?

Era o sonho dele. Quando eu lhe perguntei quais eram os seus objetivos, ele fez um compasso de espera e não saiu nada cá para fora. Aí eu percebi que não havia nada definido e perguntei-lhe se tinha algum sonho de criança... O sonho era jogar na Premier League. Peguei naquilo e sugeri que fosse o objetivo a trabalhar. Como os objetivos só são verdadeiramente objetivos se lhes colocarmos um prazo, sugeri definir um prazo. Ele disse: 'Se calhar daqui a dois anos, porque não é fácil ir para a Premier League e vou andar aqui a esfolar-me todo'. Respondi-lhe que íamos colocar o prazo de seis meses.

Quando definimos esse objetivo [de chegar à Premier League em seis meses], o Éder foi buscar uma folha grande onde escreveu 'Premier League 2015/16'. E colou-a na parede do quarto, em frente à cama, para que olhasse para o objetivo todos os dias quando se levantasse.»

Qual foi a reação dele?

Ficou a olhar para mim... Acho que pensou que eu não devia estar boa da cabeça e que eu não percebia nada de futebol. 'Vem para aqui com estas ideias e deve achar que faz milagres [risos]'. Mas houve ali um compromisso. Disse-lhe que ele tinha de acreditar no meu trabalho e que eu ia acreditar no dele: se ele encarasse o objetivo como um compromisso, eu garantia-lhe que ele chegava à Premier League em seis meses.

Celebraram uma espécie de tratado?

Sim. O objetivo é escrito. Quando definimos esse objetivo, o Éder foi buscar uma folha grande onde escreveu 'Premier League 2015/16'. E colou-a na parede do quarto, em frente à cama, para que olhasse para o objetivo todos os dias quando se levantasse. A partir do momento em que ele estabeleceu aquele objetivo, começou a respirar como se respira na Premier League. A treinar àquele nível, a ver jogos...

A viver o Sp. Braga como se fosse um clube da Premier League?

Como se ele já lá estivesse. Ele deixou de trabalhar ao nível do Sp. Braga para trabalhar ao nível da Premier League. Nessa altura ele não estava a jogar no Sp. Braga. Estava no banco e, na altura, era o Zé Luís quem estava a jogar. Ele esteve três meses no banco a trabalhar ao mais alto nível: daí ele ter marcado no último mês aqueles golos todos que disse.

Até tinha razões estar menos motivado...

As pessoas no Sp. Braga até lhe diziam que ele andava mais feliz quando não jogava e que antes, quando jogava, andava cabisbaixo, deprimido. Não sabiam o que estava a acontecer.

Certo é que ele chegou mesmo à Premier League dentro desse prazo.

Ao fim de seis meses ele tinha quatro propostas da Premier League em cima da mesa. Ele acabou por escolher a do Swansea, mas tinha quatro propostas que surgiram todas no dia a seguir ao golo que ele marcou à Itália [n.d.r.: 1-0 num particular em Genebra, na Suíça].

A convocatória do Éder para o Euro 2016 foi muito criticada quer pela opinião pública quer por comentadores desportivos. Ajudou-o também a lidar com essa crítica? Como é que o ajudou a lidar com essas situações que foram mais do que pontuais?

Já tínhamos feito esse trabalho antes. Por isso, as críticas à convocatória já não tiveram um impacto muito grande. Ele já estava na bolha dele. Claro que ele sabia que essas críticas existiam e que foi ouvindo uma ou outra coisa. Mas a convocatória foi um objetivo trabalhado, que ele definiu quando saiu do Swansea para o Lille [janeiro de 2016].

(...)

Ele tinha três objetivos. Um era marcar dez golos, outro era ir ao Europeu e o outro era que o Lille quisesse ficar com ele no fim do empréstimo, independentemente de ele decidir ficar lá ou não.

Antes, o Éder achava que a vida dele dependia das circunstâncias: do destino.»

Só falhou o primeiro...

Marcou seis mas fez também quatro assistências, o que vai dar mais ou menos à mesma coisa [risos]. O Lille, que estava em 15.º lugar quando ele chegou, terminou a época no 5.º lugar. Essas vozes, essas opiniões, acabaram por passar-lhe um pouco à margem, até porque ele tinha acabado de atingir os seus objetivos. E aí traçou logo outros: ser o melhor marcador do Europeu. Preparou-se para isso.

Esse não foi mesmo atingido.

Como não estava a jogar, esse objetivo acabou por sair do alcance.

E é aí que surge o objetivo de marcar o golo que desse a vitória a Portugal no Europeu?

Exatamente.

Quando é que foi definido esse objetivo?

Mais ou menos no quarto jogo, a seguir à fase de grupos. O que ele passou a querer nesta altura era marcar o golo decisivo na final. Claro que há aqui uma componente que ele não controla, que é se o treinador o mete ou não a jogar, mas todo este trabalho é extremamente positivo: enquanto ele vai sonhando, vai treinando ao máximo para estar pronto para concretizar o objetivo que traçou.

Como é que um jogador que jogou apenas 13 minutos em seis jogos tem essa auto-confiança?

Ele está sempre preparado para jogar dez minutos, porque normalmente é esse o tempo que ele joga. E ele mentaliza-se de que tem de dar o máximo nesse período e tentar marcar. Penso que marcou 20 minutos depois de ter entrado. E ele tinha estabelecido que se o momento aparecesse ele cumpria. E cumpriu. Eu estava na bancada a assistir ao jogo e, quando ele entrou, fiquei relaxada. Eu sabia que ele ia marcar. A única dúvida é se ele entrava.

Ele não é a mesma pessoa. Se observarem bem, conseguem ver que a postura, a conversa e a solidez são outras.»

Algum tempo antes do Europeu começar, o Éder disse que ia responder dentro de campo às críticas. Isto é o resultado do seu trabalho com ele?

Sim, claro que sim. É a melhor resposta. Se fosse outro jogador, se calhar respondia. Mas o Éder não é pessoa de entrar em conflitos. É uma pessoa que não tem qualquer maldade, que não guarda rancor por ninguém. É uma pessoa que está de bem com a vida. Ele responde às pessoas com trabalho e é o que está a acontecer.

Que diferenças encontra entre o Éder antigo e o que deu o título europeu a Portugal?

Ele não é a mesma pessoa. Se observarem bem, conseguem ver que a postura, a conversa e a solidez são outras. Entretanto, também aprendeu novas línguas extremamente rápido. Ao fim de 15 dias em França já estava a dar conferências de imprensa em francês e foi para lá a zeros. Também aí ele traçou uma estratégia: só via televisão em francês para se adaptar mais rapidamente à língua. No fundo, ele hoje consegue aceder aos recursos dele e potenciá-los. Antes, achava que a vida dele dependia das circunstâncias: do destino.

Acompanhou-o de perto durante o Europeu?

Sim. O mister Fernando Santos deu-me carta branca para estar com o Éder sempre que eu entendesse. Podia frequentar o centro de estágio e fui lá várias vezes.

O caso de Éder pode ser tranposto para o que se viu na Seleção durante parte deste Europeu? Resultados não muito favoráveis mas que não mexeram com a confiança nem com os objetivos traçados pelo selecionador?

Eventualmente. É muito importante o momento em que o mister Fernando Santos vem à comunicação social dizer que só volta no dia 11 e que vai ser recebido em festa. Acho que esse foi um momento-chave. Um momento em que se criou um compromisso muito grande dele para com a equipa e da equipa para com ele. Foi um momento brilhante.

O Éder não está preocupado com pedidos de desculpa. Gosta de sentir que as pessoas mudaram a opinião em relação a ele e que as pessoas lhe reconhecem valor.»

Falou muito de objetivos traçados nesta conversa. Se Fernando Santos a procurasse antes do início do Euro 2016, o objetivo do título que ele traçou também era o objetivo que lhe sugeria?

Sim, sim. Ganhar tudo até ao fim.

Tem falado muito com o Éder nesta semana? Como é que ele está a lidar com todo este interesse em torno dele?

Está a lidar muito bem. O Éder preparou-se a vida toda para lidar com a parte negativa, por isso a positiva é canja. Está a usufruir. Não está preocupado com pedidos de desculpa. Gosta de sentir que as pessoas mudaram a opinião em relação a ele e que as pessoas lhe reconhecem valor.

Qual foi a primeira coisa que lhe passou pela cabeça quando viu Éder marcar. Quando o viu cumprir esse último objetivo que traçou?

Está feito! Ainda me virei para ele e gesticulei o número dois...

Ele viu?

Não. Comuniquei bastante com ele da bancada para o campo. Temos alguns sinais que trocamos um com o outro. Mas ele ficou tão feliz depois de marcar o golo que dispersou um bocadinho a atenção [risos]. Mas não valeria a pena porque o golo é o GOLO.

Sente que aquele golo também foi um bocadinho seu?

Eu costumo dizer que sou uma pequena peça do puzzle. Acredito que ninguém esteja a atribuir a vitória da Seleção ao fisioterapeuta, mas ele é uma pessoa muito importante para que os jogadores estejam a 100 por cento. E eu faço isso: sou fisioterapeuta da parte mental. Mas para chegarmos à final foi preciso muito trabalho de muita gente. No fundo, gosto de sentir que tenho uma pequenina percentagem do golo.

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