A próxima ameaça de superbactérias já cá anda. E vai ser ainda mais difícil de superar

CNN , Sandee LaMotte
19 jun, 16:00
Superbactérias

Uma nova ameaça de superbactérias já está a espalhar-se pelo mundo. Os culpados: esporos microscópicos de fungos que vivem dentro e sobre o corpo humano, na terra e no ar.

Torrence Irvin acredita que o fungo fatal chamado Coccidioides entrou nos seus pulmões em junho de 2018, enquanto relaxava no seu quintal em Patterson, na Califórnia. “Eu estava sentado na minha espreguiçadeira a aproveitar um belo dia de verão, a jogar no meu telemóvel e a beber o meu cocktail”, diz Irvin, que esteve perto de morrer antes de um especialista diagnosticar corretamente a sua infecção, quase um ano depois.

"Passei de um homem de 130 quilos para um esqueleto de 68 quilos", recorda Irvin. "[O meu estado] chegou a um ponto em que os primeiros médicos encolheram simplesmente os ombros e disseram à minha esposa que não havia nada que pudéssemos fazer. Ainda me lembro de como minha esposa chorou quando lhe disseram isso"

Assim como Irvin, Rob Purdie acredita que estava do lado de fora de sua casa em Bakersfield, também na Califórnia, a trabalhar no seu jardim, quando inalou esporos de Coccidioides, em 2012. A infeção espalhou-se de imediato para o seu cérebro, causando uma meningite fúngica. A doença é caracterizada por uma inflamação potencialmente mortal das membranas protetoras que envolvem o cérebro e a medula óssea.

“Em cerca de 3% das pessoas infetadas, o fungo vai para outro lugar do corpo além dos pulmões, [como] para a pele, ossos e articulações e outros órgãos, ou lugares estranhos como o globo ocular, o dente e o dedo mínimo”, adianta Purdie, membro fundador da organização sem fins lucrativos MYCare, ou MYcology Advocacy, Research & Education, que educa e promove pesquisas na área de doenças fúngicas.

“Metade das vezes, vai para o cérebro, como no meu”, diz Purdie, lamentando: “Para controlar a minha doença durante o resto da minha vida, preciso tomar injeções intracranianas com uma droga tóxica de 80 anos que está a envenenar-me lentamente”.

À esquerda: Rob Purdie lembra um momento caricato - "A minha esposa, Wendy, achou que este seria o nosso último Dia dos Namorados juntos. Terrivelmente chateada, fez-me um grande sorriso", conta. À direita: "Estou a sorrir porque estou sob o efeito de medicamentos", conta. (Fotografia: Esther Ketcherside)

A arte imita a vida - e vice-versa

Na série da HBO “The Last of Us”, um fungo Cordyceps mutante fictício espalha-se através de picadas de hospedeiros humanos infetados. (Esta série é transmitida pela HBO, que, nos Estados Unidos, partilham a mesma empresa-mãe, a Warner Bros. Discovery, com a CNN)

Na série, o parasita invade rapidamente o cérebro da vítima, transformando-a num predador violento, coberto de escamas e com tentáculos a sair da boca. O Cordyceps da vida real, no entanto, infecta apenas insetos como formigas, besouros, borboletas, mariposas e aranhas - o resto do enredo é ficção científica.

A realidade, porém, não exige zumbis de ficção científica - fungos que mutilam e matam pessoas estão a espalhar-se rapidamente pelo mundo. Estimativas globais recentes indicam que há 6,5 milhões de infeções fúngicas invasivas e cerca de 3,8 milhões de mortes anualmente - e algumas dessas infeções estão a tornar-se mais difíceis de tratar.

Devido à crescente resistência microbiana a todos os medicamentos fungicidas existentes, em abril, a Organização Mundial da Saúde listou 19 espécies de fungos como de prioridade crítica, alta ou média para o desenvolvimento de novos medicamentos. E fungos do género Coccidioides, que infectaram Irvin e Purdie, estão na lista de prioridades da OMS.

Embora as mortes associadas a superbactérias sejam maiores do que aquelas associadas a fungos (4,7 milhões contra 3,8 milhões), existem centenas de antibióticos disponíveis para tratar bactérias. Em contraste, apenas cerca de 17 medicamentos antifúngicos estão em uso, de acordo com os Centros de Controlo e Prevenção de Doenças dos EUA. Um dos motivos é a dificuldade de fabricar medicamentos que matem o fungo sem causar danos aos humanos.

Nesta cena de “The Last Of Us”, da HBO, uma vítima coberta de fungos está à procura de uma presa. (Fotografia: Liane Hentscher/HBO)

“Geneticamente, os fungos estão mais intimamente relacionados aos humanos do que às bactérias”, explica o especialista em doenças infeciosas Neil Clancy, que também é professor associado de Medicina e diretor do programa de Micologia da Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos.

“Se está a tentar criar um medicamento antifúngico, é preciso encontrar alvos que não prejudiquem os genes e as proteínas que os humanos possuem”, adianta Clancy. “Atualmente, o medicamento que usamos para matar fungos reage melhor de forma cruzada com células renais humanas, o que pode levar à insuficiência renal”.

Outros antifúngicos podem causar impotência, pancreatite, danos ao fígado e reações alérgicas graves.

As infeções fúngicas em pessoas saudáveis são, por norma, resolvidas com o tratamento antifúngico atual, especialmente quando detetadas precocemente, garantem os especialistas. Os mais vulneráveis ​​a infeções fúngicas invasivas são pessoas com sistema imunitário enfraquecido, talvez devido à quimioterapia, diálise, vírus da imunodeficiência humana (VIH, causador de Sida), medicamentos imunossupressores e transplantes de órgãos ou células-tronco, de acordo com o Centro de Controlo de Doenças norte-americano.

No entanto, nem Irvin nem Purdie estavam imunocomprometidos quando contraíram coccidioidomicose, ou cocci, a doença causada pelos fungos que inalaram. Como os pesquisadores identificaram cocci pela primeira vez no Vale de San Joaquin, na Califórnia, a doença também é conhecida como febre do vale.

“Alguns desses pacientes, apesar de não serem imunossuprimidos, simplesmente não combatem bem a infeção”, reconhece o investigador de fungos George Thompson, também professor de medicina na Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia, Davis.

“Se pudéssemos descobrir o que há de diferente no sistema imunitário deles, talvez pudéssemos fortalecê-lo para ajudá-los a combater o fungo”, reconhece Thompson, o especialista que diagnosticou Irvin com febre do vale.

Rob Purdie com a sua família a defender o financiamento de estudos e literacia de pacientes sobre a crescente ameaça da resistência fúngica (Fotografia: Esther Ketcherside)

Os fungos resistentes mais perigosos

O Cryptococcus neoformans, causador de uma forma potencialmente letal de meningite, liderou a lista da OMS dos quatro parasitas fúngicos que são prioridade máxima para pesquisa e desenvolvimento de novos medicamentos. A taxa de mortalidade por infecção por C. neoformans é extremamente alta, chegando a 61%, especialmente em pacientes com VIH.

Aspergillus fumigatus, um fungo que danifica os pulmões e que pode espalhar-se para outras partes do corpo, ficou em segundo lugar na lista. “O Aspergillus está em todo o lado - no solo, nas folhas que a pessoa varre, na cobertura morta que coloca”, adianta Thompson. “É muito difícil de evitar e tem uma taxa de mortalidade muito alta - cerca de 40% em algumas pessoas -. então. é uma infecção para a qual precisamos desesperadamente de novos medicamentos”.

Candida auris ocupa o terceiro lugar na lista crítica e é única em vários aspectos. Primeiro, o micróbio já era resistente a todas as quatro classes de tratamentos fungicidas quando apareceu pela primeira vez nos Estados Unidos em 2013. “A Candida auris chegou com resistência antifúngica incorporada”, adianta Clancy, da Universidade de Pittsburgh. “Não é necessário o surgimento de novas mutações para desenvolver resistência antifúngica”.

Também conhecida como C. auris, este fungo é incomum porque é "pegajosa", aderindo ao plástico e à pele de formas que outras espécies de Candida não conseguem, continua o pesquisador de fungos Jatin Vyas, professor de medicina no Vagelos College of Physicians and Surgeons da Universidade de Columbia, na cidade de Nova Iorque.

Essa tenacidade fúngica torna o C. auris extremamente difícil de descontaminar quando encontrado em hospitais movimentados, casas de repouso e clínicas de diálise.

“Um paciente pode ser colonizado por C. auris, então um profissional de saúde ou alguém que esteja a cuidar dele toca nele e contrai o organismo”, adverte Vyas. “Os cuidadores podem, então, ser colonizados e transmitir o microrganismo de um paciente para outro”.

Em 2016, houve 51 casos clínicos de C. auris em quatro estados, de acordo com as autoridades norte-americanas. Em 2023 - apenas sete anos depois - 4.514 casos clínicos foram identificados em 36 estados. Os casos clínicos do fungo multirresistente aumentaram 95% em relação ao ano anterior, somente em 2021.

A Candida albicans infeta o fígado humano. A candidíase invasiva ocorre quando espécies de Candida entram na corrente sanguínea e espalham-se por todo o corpo (Fotografia do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos - CDC)

Candida albicans, prima da C. auris, é um fungo comum que vive em pequenas quantidades na pele, boca, garganta, intestinos e vagina. A C. albicans ocupa o quarto lugar na lista de patógenos prioritários críticos da OMS.

Como parte de um microbioma saudável, a C. albicans vive pacificamente no corpo e pode até desempenhar um papel no fortalecimento da imunidade. Quando esse equilíbrio é perturbado por antibióticos ou imunossupressores pode, no entanto, causar infeções fúngicas preocupantes ou levar à candidíase invasiva resistente a antimicrobianos .

“As infecções por C. albicans podem acabar na corrente sanguínea e, quando isso acontece, as taxas de mortalidade na literatura variam de 40% a 60%, mesmo com diagnóstico e tratamento rápidos”, adianta Vyas.

"Febre alta, por si só, poderia matá-lo"

Torrence Irvin começou a ter dificuldade para respirar em junho de 2018. Na altura, achou que fosse uma constipação e, por isso, não foi ao médico. Os sintomas persistiram e, em agosto daquele ano, os vómitos começaram.

“Eu vomitava tudo o que ingeria, fosse água ou sólidos”, recorda Irvin. “A minha esposa pediu sacos de vómito e eu tinha que ter um comigo, não importava onde fosse, não importava o que estava a fazer. Comecei a ficar mais fraco. Comecei a perder peso”, continua.

A sua esposa de há 22 anos, Rhonda Smith-Irvin, ficou chocada com a rapidez com que o seu marido se deteriorou. “Uma vez, fomos ao hospital duas vezes em dois dias e, entre esses dias, ele perdeu 14 quilos - eu não conseguia acreditar”, lembra Rhonda . “Estávamos no hospital para o Dia de Ação de Graças, e ele continuava a vomitar todos os dias, o dia todo”.

Torrence Irvin (na cama do hospital) diz que perdeu tanto peso que ficou quase irreconhecível para a sua família e amigos quando o visitaram no hospital (Fotografia: Rhonda Smith-Irvin)

Os dias no hospital transformaram-se em semanas. Com o diagnóstico primário de pneumonia, Irvin disse que os médicos não conseguiam entender porque é que não respondia aos antibióticos. A diabetes atrapalhou a sua recuperação. A febre estava perigosamente alta e difícil de tratar, diz sua esposa, vincando que tal acontecia mesmo com gelo em todo o corpo.

"Ele nem sabia que estava com febre, então comecei a dormir na cama do hospital com ele para alertar as enfermeiras", continua, lembrando: "Elas disseram-me que só a febre alta poderia matá-lo".

Como a sua saúde continuou a piorar, Irvin disse que lhe foi colocado um ventilador: "Cheguei ao ponto em que respirava com apenas 20% dos meus pulmões", diz. E lembra de precisar de três transfusões de sangue. "Foi assustador para nós porque ele estava muito doente, muito doente", recorda a sua mãe, Brenda Irvin. "Ele só dizia: 'Será que eu vou morrer?'".

"Não, não vais morrer", respondia-lhe a mãe. "Deus vai curar-te", dizia-lhe. E agora reconhece: "Sabe, eu não podia deixá-lo ir para lá por causa da minha fé"-

"Isto pode acontecer com qualquer um"

Durante décadas, os cocci (Coccidioides) foram diagnosticados principalmente em agricultores e outros trabalhadores ao ar livre nas regiões áridas desérticas e vales do Arizona, Califórnia, Nevada, Novo México e Texas - locais nos Estados Unidos onde os micróbios Coccidioides proliferam. Hoje, no entanto, casos de cocci são encontrados em mais de 20 estados norte-americanos e atingiram regiões tão distantes quanto a Pensilvânia e Maryland, segundo dados do Centro de Controlo e Doenças do país.

“O pensamento mais comum é que só se contrai a doença se se trabalhar ao ar livre, numa área empoeirada. Eu trabalhava num ambiente fechado. Eu fazia planeamento de reformas”, esclarece Purdie. Torrence Irvin também trabalhou em ambientes fechados - como gerente de uma loja de departamentos. 

A crise climática, o aumento de incêndios florestais e tempestades de poeira podem estar alimentando a propagação, de acordo com estudos já feitos. Modelos de projeção de propagação de Coccidioides preveem um aumento de 50% nos casos até 2100.

"Pode acontecer com qualquer um. No lugar errado, na hora errada. Basta, simplesmente, inalar esporos transportados pelo vento", explica Thompson, da Universidade da Califórnia em Davis. "Na Califórnia Central, as pessoas contraem essa infecção apenas a conduzir pela [estrada] Interestadual 5", alerta o médico.

Quando Irvin descobriu a clínica de Thompson em Sacramento, em março de 2019, já precisava de um andarilho para percorrer curtas distâncias. Thompson não hesitou em receitar a Irvin o medicamento experimental olorofim como parte de um ensaio clínico de fase II para testar o seu impacto sobre Coccidioides. O medicamento também está a ser testado para tratar Aspergillus fumigatus, o fungo na lista crítica da OMS.

"Eu nunca tinha ouvido falar de febre do vale", admite Irvin, "mas o doutor Thompson disse que chegamos ao ponto em que esgotamos todas as outras opções, então a minha esposa e eu estávamos dispostos a tentar [este medicamento experimental]".

Segundo Thompson, se Irvin não tivesse tido recursos para encontrar um especialista e mudar o seu tratamento, “ provavelmente teria morrido por causa da infeção”.

“Preocupo-me ainda mais com os nossos pacientes com menos recursos, que podem ter um desfecho muito mau ou morrer por não serem atendidos por médicos que trabalham com cocci e que têm acesso a tratamentos de ponta”, revela Thompson, adiantando que “precisamos de mais médicos para tratar estes pacientes e precisamos investir no desenvolvimento de novos medicamentos”.

O olorofim é um medicamento oral diário, o que significa que Irvin não passou por infusões intravenosas invasivas que outros medicamentos podem exigir durante os seus mais de três anos de tratamento, explica Thompson. Mas nem todos os casos são assim, adverte o médico. “Torrence não apresentou nenhum efeito colateral, mas alguns outros participantes do estudo apresentaram toxicidade hepática”, no entanto, admite que “isso, por norma, poderia ser controlado ao interromper o uso do medicamento, reiniciando com uma dose menor e aumentando-a ao longo do tempo”.

Atualmente, Irvin parou de tomar olorofim e os testes repetidos não mostram nenhum reaparecimento da doença. No entanto, isso pode mudar. “O doutor. Thompson disse-me que eu teria sempre algum tipo de cocci no meu corpo, dependendo da intensidade da infecção. Ainda assim, passei de [precisar de um] andarilho para bengala, o que foi uma grande melhoria para mim. Tem sido uma bênção”.

Torrence Irvin com a sua esposa, Rhonda Smith-Irvin, posam para uma fotografia antes de um fungo mortal infetar os seus pulmões (Fotografia: Ray Sheard Jr.)

“Ainda estou afastado do trabalho por causa da doença, mas estou mais forte”, assegura Irvin. “Estou de volta ao ginásio para treinar. Recuperei boa parte do peso que tinha perdido”.

Os danos causados pela infeção nos seus pulmões foram, no entanto, extensos, deixando tecido cicatricial que, segundo Irvin, o impede de recuperar totalmente. “Eu entro em pânico quando sinto falta de ar, fico a pensar se preciso ou não ir a um médico”, diz, admitindo que “gostaria de ter ouvido meu corpo quando fiquei doente pela primeira vez. Se eu tivesse reagido mais rapidamente ao que se estava a passar, talvez tivesse conseguido evitar que isso passasse pelos meus pulmões”.

Essa é a mensagem que Irvin quer enviar ao mundo - especialmente a homens como ele que, assim como o próprio já fez, se consideram invencíveis. “Precisamos deixar nosso ego masculino de lado e ouvir os nossos corpos, porque é o corpo que nos dirá quando algo estiver errado”, assegura Irvin, deixando um recado final: “Precisamos prestar atenção, cuidar de nós mesmos. Saúde é riqueza. E isso faz toda a diferença”.

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