O genocídio de Srebrenica foi um momento decisivo (por Christiane Amanpour)

CNN , Christiane Amanpour (originalmente publicado em 2019)
11 jul 2022, 08:00
Srebrenica. DIMITAR DILKOFF/AFP via Getty Images

O massacre de Srebrenica faz esta segunda-feira 27 anos. A pivô da CNN Internacional Christiane Amanpour esteve lá e recordou assim o que aconteceu por lá

Na primavera de 1995, o general Rupert Smith, comandante da Força de Proteção das Nações Unidas na Bósnia, começou a alertar que os sérvios bósnios iriam querer brevemente recuperar zonas que haviam sido declaradas “seguras” pelas Nações Unidas.

Poucos o levaram a sério.

Mas, pouco a pouco, os ataques foram acontecendo. E a 11 de julho de 1995, um massacre em Srebrenica terminaria em infâmia. Após anos de indiferença, o mundo não podia mais fechar os olhos.

Foi, na altura, a pior atrocidade cometida em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial, e os números são surpreendentes até aos dias de hoje.

Mais de sete mil homens e rapazes foram assassinados simplesmente por serem muçulmanos, parte dos cerca de 100 mil que viriam a ser mortos durante a guerra, a maioria deles muçulmanos.

Antes da chacina, Ratko Mladic, o líder militar sérvio bósnio, foi visto a rir-se com os seus soldados, a distribuir doces e a dizer aos civis para não se preocuparem. É um dos vídeos mais arrepiantes que já vi na minha vida.

Ver Mladic no tribunal em Haia, a enfrentar a justiça pela brutalidade que infligiu aos outros, foi muito satisfatório.

Foi preciso haver uma chacina a milhares e milhares de pessoas – um genocídio no coração da Europa – para os governos norte-americano e europeus imporem um ultimato a Slobodan Milosevic, o líder sérvio que usou os sérvios bósnios como os seus instrumentos letais.

Um enorme ataque de morteiro a um mercado de Sarajevo foi a gota de água. A NATO bombardeou posições sérvias durante duas semanas. As forças sérvias eram intituladas como brutais, mas no final foram fracas: a sua rendição foi rápida. A Administração Clinton encarregou o falecido diplomata Richard Holbrooke de levar as partes em conflito até Dayton, Ohio, e negociar a paz, que é mantida até hoje.

O melhor e o pior

Quanto a mim, a guerra e o que testemunhei mudaram tudo. Vi o melhor e o pior da humanidade.

O pior foram os sérvios bósnios, armados e apoiados por Milosevic, a matar civis, o que incluía mulheres, crianças e idosos.

Não esqueçamos que se tratou de uma chacina deliberada de civis e não de uma guerra entre dois exércitos. O objetivo dos sérvios bósnios era aterrorizar, matar e limpar etnicamente esses civis do território que queriam demarcar como um pequeno estado etnicamente puro para si próprios. Até tinham o sonho de se juntarem a uma grande Sérvia.

Era um “campo de jogo” completamente desigual, até pelo simples facto de eles estarem debruçados nas montanhas ao redor de Sarajevo, bombardeando e atacando os residentes maioritariamente muçulmanos de Sarajevo, de Srebrenica e de outras cidades sitiadas que se encontravam nos vales abaixo. Não havia limites para os ataques: as filas para o pão, os pontos de distribuição de água, hospitais, escolas, e até o simples ato de atravessar a estrada era fatal.

Era difícil recordar que apenas uma década antes, a cidade etnicamente mista, sofisticada e liberal de Sarajevo havia sido a anfitriã dos Jogos Olímpicos de Inverno de 1984.

Ao fazer a cobertura jornalística da guerra, era difícil imaginar o estádio onde o par britânico, Jayne Torvill e Christopher Dean, patinou no gelo e ficou registado nos livros de história, pois agora era um cemitério sobrelotado.

Era difícil evocar a música “Bolero”, que lhes trouxe uma medalha de ouro, quando tudo o que ouvíamos agora era o estrondo do fogo de morteiro e o sibilo das balas dos snipers.

Mas a guerra também traz o melhor das pessoas.

Trouxe o melhor daqueles que resistiram e daqueles que sobreviveram, que se agarraram à crença de que assim que aquele inferno terminasse poderiam voltar a viver juntos na sua adorada cidade multiétnica. E, apesar da depravação desta guerra e de o mundo os ter abandonado, mantiveram a dignidade, humanidade e esperança.

Foi um privilégio e uma lição para a vida ter testemunhado este combate heroico e contar esta história ao mundo.

Objetividade real

Sendo uma repórter jovem, a Bósnia foi onde encontrei a minha voz. Sendo uma pessoa que aprendera os valores da liberdade, da democracia, dos direitos humanos e da tolerância religiosa e étnica, ver tudo isso sob ameaça mortal na Bósnia - Sarajevo, Srebrenica e noutras aldeias, localidades e cidades - foi formativo. Resolvi fazer o que podia para combater isso: através das minhas palavras, das nossas fotografias e da nossa plataforma enorme e poderosa.

E combater aquilo significava ver com clareza, saber o que estava a ver e contar a verdade sobre o que se passava. A regra de ouro do jornalismo tornou-se fulcral para mim: a objetividade. Percebi então que a objetividade significa dar a todos os lados um julgamento justo, mas não significa tratar cada lado de forma igual.

Objetividade não significa tratar a vítima e o agressor da mesma forma. Objetividade não significa atribuir uma falsa equivalência moral. Mas era o que os nossos governos tentavam fazer.

Os oficiais dos Estados Unidos da América e de toda a Europa, que não quiseram intervir para pôr fim a esta guerra, diziam que todos os lados eram igualmente culpados, quando isso não era verdade. E o massacre de Srebrenica veio provar isso mesmo, provou finalmente aos nossos governos que não poderiam olhar mais para o lado.

Um momento de confronto

Um ano antes de Srebrenica, com a guerra bósnia ainda no ativo, o Presidente Bill Clinton foi a Atlanta participar num fórum de assuntos globais organizado pela CNN. Eu era um dos vários correspondentes destacados pelo mundo para participar em algo semelhante a uma conferência de imprensa global.

A moderadora, a nossa pivô Judy Woodruff, chamou-me para colocar uma questão sobre Sarajevo. Eu não tinha pensado, ou planeado, que a pergunta fosse um confronto. O Presidente tinha estado a falar sobre o grande trabalho que os Estados Unidos tinham feito na prestação de ajuda humanitária, e eu estava com dificuldade em aceitar isso.

Eu só pensava isto: “Nunca mais, nunca mais.”

Eu fiz uma pergunta longa, lembro-me como se fosse ontem: porque a Administração dele havia tido tantos volte-face relativamente à Bósnia, porque não enfrentavam a máquina de guerra sérvia e se não estava com medo de abrir um precedente perigoso.

Ele ficou irritado. Foi um momento constrangedor para mim, e foi provavelmente um momento constrangedor para o Presidente, mas em retrospetiva, creio que agi bem. Estávamos na era pré-viral, mas este encontro ecoou pelo mundo inteiro.

Era uma questão séria e dramática: por que razão o mundo não agia para travar o genocídio?

Europa

Mais Europa

Patrocinados