O troféu da Youth League é um bom pisa-papéis

19 mar 2023, 22:21
Sporting festeja golo de Rodrigo Ribeiro frente ao Liverpool, na Youth League (Photo by Carlos Rodrigues/Getty Images)

«Quem é que defende?», o espaço de opinião de Sofia Oliveira no Maisfutebol

Eu vejo um homem extremamente obeso, de dimensão semelhante ao que personifica a Gula, em Sete Pecados Mortais, de David Fincher, enterrado na cadeira da secretária do seu imaculado escritório. Falta-lhe já o último botão da camisa antes das calças, dando-lhe um ar desfraldado. As paredes estão forradas de diplomas, as vitrines, sem vestígios de dedadas, carregadas de medalhas e medalhinhas. Resta apenas um foco de desarrumação: meia dúzia de folhas de papel A4 desalinhadas e prestes a cair, não fosse o baço troféu da Youth League a servir de pisa-papéis.

Este é o cenário que recrio sempre que me deparo com gente que exalta a conquista da Youth League como o Fernando Medina exaltou, no final de Fevereiro, a redução da dívida pública. Talvez seja um cenário de reductio ad absurdum. E sobretudo porque um obeso narcisista dificilmente utilizaria uma camisa sem um botão. De resto, não me soa exagerado partir da ideia do pisa-papéis. Aliás, desconfio que, ao longo da carreira, Tomás Esteves já se fez valer de um pisa-papéis, enquanto a conquista da Youth League não lhe valeu mais do que um Pisa.

No outro dia, contei mais de 30 pessoas indignadas com a utilização de Fatawu frente ao Arsenal. Indignadas, mesmo. Rabugentas, até. Havia quem levantasse cartazes de incompetência a Rúben Amorim, dando a entender que o treinador do Sporting, ao utilizar o extremo ganês na primeira mão dos oitavos-de-final da Liga Europa, nem sabia que Fatawu completava três participações pela equipa principal em competições europeias, registo que o impossibilitaria de voltar a actuar na Youth League, pelos sub-19. Na cabeça dessas pessoas, o pisa-papéis acabava de ficar mais difícil de conquistar. Pior: Rúben Amorim fazia com que passassem por tamanha dor, porque entendeu lançar Fatawu no jogo ao minuto 89.

Quem é que Rúben Amorim pensa que é para, por puro capricho, dificultar a vida de café a sicranos e beltranos muito sportinguistas e muito doridos com massacres de portistas e benfiquistas já medalhados nessa coisa? Nessa prova. Como é que se chama aquilo? 

Por outro lado, aposto que Tomás Esteves, jogador do Pisa emprestado pelo FC Porto, adorava ter deixado a Youth League de lado para ter feito o lugar de Manafá (ex-Portimonense), de Nanu (ex-Marítimo), de Carraça (ex-Boavista) ou de Rodrigo Conceição, embora todos saibamos que se torna dificílimo lançar jovens quando há grandes jogadores a ocupar as suas posições. Jogadores indiscutíveis em termos de talento e que vêm de épocas em equipas médias a render muito. Ao Nanu, por acaso, bastou-lhe ser forte no sprint.

Os jovens gostam de disputar a Youth League - uma das melhores ideias da UEFA, nos últimos tempos -, gostam de vencê-la. Agora, não sei se a Youth League é, para todos e de igual forma, o melhor contexto para evoluírem. Por exemplo, existem clubes, como o Ajax, que abordam a competição com a maioria de atletas de 17 anos. Nos oitavos-de-final, diante do Sporting, o Ajax, entre titulares e suplentes, tinha um atleta de 19 anos, oito de 18 e nove de 17, enquanto o Sporting, entre titulares e suplentes, tinha sete atletas de 19 anos, seis de 18 e cinco de 17. A idade está longe de ser o único elemento fiável no momento de adequar estímulos de desenvolvimento individual. No entanto, para quem viu a partida, ficou claro que Fatawu não se destacou apenas por ser melhor, mas também porque o contexto esteve níveis abaixo do requerido para o seu desenvolvimento individual. Eu quero acreditar que, amanhã, se o Jovane puder disputar a Youth League, irá fazer a diferença. Logo, tal como Rúben Amorim explicou em conferência de imprensa: “a formação já ganhou quando o Fatawu deixou de jogar Youth League para jogar com o Arsenal”. Ao pessoal do café, explicou que sabia da regra, “obviamente”.

Na mesma intervenção, o treinador do Sporting usou o exemplo de Gonçalo Inácio, que nunca marcou presença na Youth League, para se demarcar do argumento que considera essencial a participação na prova. Não deixa de ser estranho que Rúben Amorim tenha sentido necessidade de refutar uma alegação tão fraquinha, ainda que não seja a primeira vez que vê potencial em coisas com pouca qualidade. Excelente exibição do Sporting frente ao líder da Premier League. Parabéns, míster.

Confesso que não vejo em Fatawu o que via em Diogo Costa, Tomás Esteves, Diogo Leite, Fábio Vieira, Romário Baró, Fábio Silva, Afonso Sousa, Vitinha, André Gomes, Tomás Araújo, António Silva, Pedro Santos, Diego Moreira ou Henrique Araújo, todos eles vencedores da competição pelos respectivos clubes. Quem vê, tem de agir como Rúben Amorim, ou seja, agarrar no pisa-papéis e depositá-lo naquele sítio onde o sol não brilha. A moda de que os jogadores não devem saltar etapas nos escalões de formação só veste quem não lhes reconhece grande margem de progressão, tal e qual a de que gosta de transformar os empréstimos em experiências de desenvolvimento pessoal sobre-humano, mesmo quando os jogadores não jogam.

Há algum treinador que acredite piamente no talento de um atleta e prefira aproximá-lo da imprevisibilidade que é trabalhar com alguém com ideologias distintas ou muito distintas das suas? Nem se em causa estiver a conquista de um pisa-papéis, seus gulosos.

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