Elogio a um Porto que voltou a ser Porto: jogou de faca nos dentes e saiu de barriga cheia
O Sporting, já se sabe, nasceu de uma linhagem aristocrática e tem um código próprio. Gosta de ter boas maneiras, é educado e sabe estar. Fala com as palavras certas.
Numa altura em que ostenta o título de bicampeão, esta fidalguia parece tornar-se mais evidente, por debaixo daquele traje de luxo, que respeita o dress code da black-tie.
Ora tudo isto serve para dizer que sim, o bicampeão entrou em campo com tiques de nobre, o que é uma péssima forma de receber um Porto que voltou a ser Porto.
Um Porto, enfim, que não precisa de mordomias, nem de apresentações solenes, e que dispensa demasiadas elegâncias. Por isso ainda não se tinha completado o primeiro minuto e já Borja Sainz estava a atirar ao poste, num pontapé de bicicleta que servia de aviso.
Como é que é possível?
É fácil. O Sporting passou o jogo praticamente todo a defender como quem abre a porta de casa ao primeiro vendedor de enciclopédias.
O FC Porto, já se sabe, não é nenhum vendedor de enciclopédias. É uma equipa que recuperou aquele saudável hábito de jogar um futebol de faca nos dentes: que não brilha como ouro, mas arranha como ferro. E, convenhamos, um clássico pede essa fibra.
A fibra que faltou à equipa de Rui Borges.
O Sporting até conseguiu ter alguma qualidade com a bola, criou várias ocasiões de golo e fartou-se de falhar na zona de finalização. A defender, porém, foi uma agitação constante.
Um tremor sem fim.
Mal posicionados e muitas vezes desatentos nas marcações, os jogadores leoninos sentiram muitas dificuldades em parar a capacidade do FC Porto jogar entrelinhas, com as entradas de Froholdt e de Rodrigo Mora no espaço que ficava livre nas costas dos médios leoninos.
Aquele momento lapidar que deixou quatro leões fora da jogada
Há uma jogada na segunda parte, já sem Mora em campo, que é lapidar: com apenas um passe, simples, curto, para a frente, Zaidu tocou para Alan Varela nas costas de quatro jogadores do Sporting, que ficaram de imediato fora da jogada.
Quatro. Um, dois, três, quatro. Todos fora da jogada.
A partir daí Varela tocou para Alberto Costa, que combinou com William Gomes, ganhou a linha de fundo, não foi acompanhado por Pote, que já tinha ficado para trás, e serviu o golo numa bandeja a De Jong: o ponta de lança só teve que empurrar para golo.
Tudo simples, tudo fácil para o FC Porto, perante um adversário que só soube jogar para a frente. Aquele exemplo de que se fala aqui acima não foi um caso esporádico: aconteceu várias vezes, sobretudo em entradas dos médios do FC Porto, e lançaram sempre o pânico.
Claro que podíamos estar a falar de uma história diferente, se por exemplo Pote não tivesse falhado em frente à baliza. Ou se Luis Suárez não tivesse conduzido tão mal um contra-ataque de três contra um. Ou até se o mesmo Suárez tivesse rematado melhor em duas boas oportunidades que teve já nos instantes finais do jogo.
Tudo isso é verdade, a história podia ser diferente, mas não seria tão justa como é assim. O FC Porto foi a melhor equipa, mais madura, que mesmo não tendo o tempo de trabalho em conjunto ou a confiança de ser bicampeã, soube sempre melhor o que fazia em campo.
Farioli sabe o que anda a fazer: definitivamente sabe mesmo
Foi humilde, foi intensa e foi solidária a defender. Soube os momentos em que tinha de pressionar e em que tinha de recuar. Ocupou exemplarmente os espaços e foi aos poucos acreditando que podia ser melhor do que o campeão, mesmo sem ter o domínio da partida.
E ainda brilhou naquele golaço de levantar o estádio de William Gomes. Ele que foi o melhor em campo, o miúdo que agarrou na caneta e riscou várias linhas no guião feliz da noite.
Francesco Farioli definitivamente sabe o que anda a fazer. Impressionante como em pouco tempo conseguiu agitar de forma tão violenta que na época passada era uma sombra pálida.
Por isso voltou a ganhar em Alvalade, dois anos depois da última vez.
Sai de Lisboa líder do campeonato e, acima de tudo, sai depois de dar um grito de revolta, daqueles que se ouvem longe. Mais do que três pontos, foi a afirmação de uma identidade. À Porto. Aquele Porto de antigamente.
O que, traduzido em termos simples, quer dizer que entrou de faca nos dentes, não teve vergonha de mostrar o que queria e saiu de barriga cheia.