Em Portugal, é "impossível" proibir a venda de tabaco como vai fazer a Nova Zelândia a nascidos após 2008

9 dez 2021, 19:54

Sendo o tabaco uma substância legal, não é possível proibir o seu consumo a determinadas pessoas. Isso seria uma "ditadura sanitária" explica o especialista em direito constitucional. Além de que iria promover um mercado negro. A solução é sensibilizar, nunca proibir, diz a Sociedade Portuguesa de Pneumologia

Numa tentativa de acabar com o consumo de tabaco no país, a Nova Zelândia decidiu proibir a venda de tabaco a todas as pessoas nascidas depois de 2008 durante toda a sua vida.

A lei deverá ser promulgada no próximo ano e a proposta é que as restrições sejam implementadas por etapas a partir de 2024, começando com uma redução acentuada no número de vendedores autorizados, seguida por uma redução na necessidade de nicotina, em 2025, e a criação de uma geração “livre de fumo” a partir de 2027. Nessa altura, os jovens nascidos depois de 2008 já serão maiores de idade mas, apesar disso, não poderão comprar cigarros. A venda de tabaco a pessoas nascidas antes desse ano vai continuar a ser permitida.

"Queremos garantir que os jovens nunca comecem a fumar", disse a ministra da Saúde, Ayesha Verall.

Em Portugal, tal lei seria "impossível", considera Jorge Pereira da Silva, diretor da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Lisboa e especialista em Direito Constitucional e Direitos Fundamentais.

"A isso chama-se ditadura sanitária. Tenho dúvidas que seja possível até na Nova Zelândia. Nos sistemas jurídicos ocidentais - e apesar da sua localização geográfica podemos considerar que a Nova Zelândia tem um sistema semelhante - as pessoas têm um conjunto de direitos fundamentais, entre os quais o direito a correr riscos e a terem uma vida que não é necessariamente a mais saudável ou mais segura", explica.

As pessoas podem comer fast food, fazer operações estéticas, colocar piercings, praticar desportos radicais, fumar. Tudo isto é permitido por lei, logo, não pode ser proibido a determinadas pessoas. "Nenhuma destas coisas eu aconselharia aos meus filhos, mas existe uma diferença enorme entre recomendar e proibir", diz.  

Essa proibição é, "por princípio", "bastante preocupante", explica o professor de Direito. "Quem é que pode decidir o que é melhor para cada um de nós? Podemos ter a figura de um ditador mas também podemos ter uma ditadura que é exercida por uma maioria eleita e que está no poder a prazo. Mas não deixa de ser uma ditadura."

"Este é o cerne da dignidade humana. Aquilo que nos distingue como seres humanos é sermos capazes de usar o nosso livre arbítrio para tomarmos decisões, que podem ser certas ou erradas, e depois, se quisermos, podemos corrigir-nos."

Na legislação portuguesa seria impossível incluir uma regulamentação deste género. "A nossa legislação está nos antípodas disso", explica Jorge Pereira da Silva, referindo que o direito à integridade física prevê, por exemplo, que uma pessoa escolha morrer em vez de ser submetido a uma intervenção cirúrgica. "Nesse caso, o médico que proceda à intervenção incorre no crime de ofensas corporais".

E para corroborar esta ideia recorda o "princípio do dano" enunciado por John Stuart Mill, no século XIX, segundo o qual ninguém pode ser obrigado a fazer alguma coisa contra a sua vontade a não ser que seja para "impedir o dano em outros". 

Ou seja, pode-se proibir uma pessoa de fumar perto de outras pessoas ou em determinados locais (como já acontece) mas não se pode proibir uma pessoa de fumar sozinho em sua casa. A única proibição aceitável do ponto de vista legal seria, à semelhança do que acontece com outras substâncias, a da produção, da importação ou da venda.

Sensibilizar e responsabilizar

Também António Morais, presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, considera que "a proibição não é o caminho". "A nossa convicção é de que as restrições devem ser implementadas em tudo aquilo que leve a consequências em terceiros", ou seja, para evitar o fumo passivo, tal como já acontece na legislação portuguesa.

"Temos que continuar a sensibilizar as pessoas para algo que é lesivo para a sua saúde, tal como temos feito", diz António Morais.

"Tenho muitas dúvidas de que essa medida seja eficaz. Com a proibição estamos a estimular percursos alternativos, marginais, e que escapam à nossa vigilância", explica. Ou seja, mesmo sendo proibido, os jovens que quisessem fumar iriam com certeza encontrar maneira de adquirir cigarros, ainda que de forma ilegal.

Uma das justificações dadas para implementar este tipo de proibição tem a ver com os custos que o tabagismo tem para o Serviço Nacional de Saúde.

"O tabaco é a maior causa de doença que pode ser evitável", diz António Morais. E as doenças associadas ao tabagismo - nomeadamente a doença pulmonar obstrutiva crónica e o cancro do pulmão - estão entre as principais causas de morte em Portugal. Em 2020, de acordo com os dados do INE, as doenças respiratórias (excluindo tumores malignos) foram responsáveis por mais de 13 mil mortes - representado 11,7% da mortalidade total, com um aumento de 3,8% em relação ao ano anterior.

"É verdade que os custos são elevados para o sistema de saúde e também na economia, mas as coisas não se resolvem com proibições", afirma o presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia.

Jorge Pereira da Silva concorda: "O que se pode argumentar é que, nesses casos, por exemplo, a pessoa torna-se responsável pelos custos de saúde. Existe uma diferença abissal entre responsabilizar as pessoas pela sua conduta e proibir essa conduta".

Nova Zelândia quer criar uma geração não fumadora

Atualmente, 13% dos adultos da Nova Zelândia fumam, com uma taxa muito mais alta entre a população indígena Maori, onde chega a quase um terço. Entre os Maori também existe uma taxa mais elevada de doenças e mortes.

O Ministério da Saúde da Nova Zelândia afirma que fumar causa um em cada quatro câncros e continua a ser a principal causa de morte evitável. O setor é alvo de legislação restritiva há mais de uma década.

A Nova Zelândia está agora determinada a reduzir a sua taxa nacional de fumadores para 5% até 2025 e, eventualmente, eliminá-la por completo.

Como parte da legislação anunciada esta quinta-feira, o governo vai começar por introduzir grandes controlos no nível de nicotina e nos locais onde se podem vender cigarros, retirando-os, por exemplo, dos supermercados. O número de lojas autorizadas a vender cigarros será drasticamente reduzido de cerca de oito mil para menos de 500, dizem as autoridades.

Os médicos e outros especialistas em saúde do país saudaram as reformas "pioneiras a nível mundial": "Isto vai ajudar as pessoas a parar de fumar ou a mudar para produtos menos nocivos e tornar muito menos provável que os jovens se tornem viciados em nicotina", disse a professora Janet Hook, da Universidade de Otago, citada pela BBC.

No entanto, alguns alertaram que a mudança pode levar à formação de um mercado negro para o tabaco - algo que a declaração oficial de impacto do Ministério da Saúde reconhece, avisando que "a alfândega precisará de mais recursos para controlar as fronteiras".

Jovens preferem cada vez mais os cigarros eletrónicos

O consumo de tabaco em Portugal diminuiu nos últimos cinco anos, de acordo com o Relatório do Programa Nacional para a Prevenção e Controlo do Tabagismo 2020, da Direção-Geral da Saúde (DGS), divulgado em junho deste ano.

De acordo com esse relatório, que cita o último Inquérito Nacional de Saúde, em 2019, 16,8% da população residente em Portugal continental com 15 ou mais anos era fumadora, 14% da qual fumadora diária.

No que se refere aos jovens, houve uma redução do consumo de tabaco, embora com aumento do consumo de tabaco para cachimbo de água e de tabaco aquecido.

Em 2019, entre os jovens dos 13 aos 18 anos, os cigarros foram o tipo de produto mais referido por quem já experimentou (29,3%), seguido dos cigarros eletrónicos (22,2%), do cachimbo de água (shisha) (15,0%) e do tabaco aquecido (4,9%). 

Porém, se forem apenas considerados os cigarros eletrónicos, registou-se um acréscimo relativo do consumo, entre 2015 e 2019, de 7,2% em ambos os sexos.

Em Portugal é fácil comprar tabaco antes da maioridade

Em Portugal, a venda de tabaco é proibida a menores de 18 anos, "a comprovar através da exibição de documento identificativo com fotografia".

No entanto, de acordo com um estudo publicado em 2019 na revista Drug and Alcohol Dependence, a maioria dos jovens com idade inferior consegue comprar cigarros sem dificuldade. 

A investigação, que foi liderada por Teresa Leão, da Escola Nacional de Saúde Pública, da Universidade Nova de Lisboa, incluiu questionários a mais de dois mil alunos com uma média de 15 anos de seis escolas em Coimbra, abrangendo adolescentes de famílias de altos e baixos rendimentos. Apesar do elevado número de adolescentes que referiu não ter fumado no último mês ou nunca sequer ter experimentado (total de 82,5%), a grande maioria (95%) dos adolescentes que tentou comprar cigarros conseguiu fazê-lo diretamente em fontes comerciais (máquinas de venda ou vendedores) e 73% dos alunos disse ser fácil ou muito fácil comprar tabaco. 

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