Ainda é possível salvar o Serviço Nacional de Saúde?

26 nov 2021, 07:02
Idosos

A perceção é que o SNS não funciona, os profissionais estão descontentes e saem piorando ainda mais a situação; os utentes estão descontentes e procuram alternativas

"Quando nós criámos o Serviço Nacional de Saúde na década de 70, o país era muito diferente do que é hoje: era um país de gente jovem, com uma taxa de mortalidade muito elevada, com uma grande mortalidade materno-infantil e com uma escassa cobertura de cuidados de saúde básicos. O SNS foi criado para responder a isso e respondeu bem. Simplesmente o país mudou e o Serviço Nacional de Saúde não mudou. Esse é o fundo da questão", declara Contantino Sakellarides, professor catedrático jubilado da Escola Nacional de Saúde Pública.

"Aquele SNS virado para as famílias jovens e para dar resposta às necessidades episódicas - à consulta, toma um antibiótico e está tratado - vê-se agora a braços com pessoas envelhecidas, que têm múltiplos problemas de saúde, que precisam de utilizar diferentes serviços de saúde mas com continuidade."

"O subfinanciamento é real, é crónico, mas não explica tudo", diz.

O que falhou? Antes de mais, falhou a garantia de acesso aos cuidados de saúde.

Existe uma lei de 2007 que diz que "há tempos máximos de espera garantidos e se o SNS não responde nesse tempo, o Estado tem que suportar as despesas onde quer que seja", explica este especialista. "A lei não foi feita para prejudicar o SNS e esvaziá-lo, pelo contrário, foi feita para pressionar o SNS a evoluir de uma forma patente para as pessoas, há um compromisso numa melhoria contínua. O grande mistério é porque é que ninguém ligou à lei. Como ninguém quis saber, quando nos apercebemos do problema já era demasiado tarde e não o conseguimos resolver. Porque se no terceiro ano verificássemos que não se cumpriam os objetivos e perguntássemos porquê, diziam-nos: porque não estamos a reter os médico. E, então, o que é que temos de fazer para reter os médicos? Mas isto não aconteceu. A degradação contínua do acesso não foi percecionada politicamente e publicamente mais cedo."

Como consequência, não existe uma política das profissões. "É preciso saber o que motiva as profissões, o que move as pessoas, qual é a força competitiva", explica Sakellarides.

"Numa empresa, quando os profissionais estão descontentes e querem sair, as direções captam isso e vão negociar. No SNS isso não acontece. Se o capital humano é essencial no SNS, uma quebra no capital humano deveria ser um alerta. Mas o sistema é estúpido, não percebe isso e ninguém faz nada."

Para perceber isto e para, ao mesmo tempo, conseguir articular o sistema de saúde com o serviço social para dar resposta às novas necessidades, seria preciso ter não só um novo modelo de governação como também um centro de análise e avaliação estratégica.

"O problema não são as pessoas, é o modelo de governação. Por isso é que mudam os responsáveis mas não mudam os resultados", explica Sakellarides.

"O que temos é uma realidade complexa. O mundo hoje tem múltiplas fontes de iniciativa que não podem ser mandadas normativamente, têm de ser enquadradas, redirecionadas com outros mecanismos, normativos, de gestão ou subtis, têm a ver com intangíveis como a confiança nos outros, a vontade colaborar, o sentido de pertença - isso é que faz com que o elefante dance", explica Constantino Sakellarides.

Como isto não aconteceu chegámos a esta situação onde estamos hoje que é mais ou menos caótica. Onde a perceção é que o SNS não funciona, os profissionais estão descontentes e saem piorando ainda mais a situação; os utentes estão descontentes e procuram alternativas.

Segundo o relatório "Health at a Glance", durante o primeiro ano de pandemia, Portugal teve 37% de outros casos sem resposta médica adequada. No indicador de satisfação da população em relação à existência de serviços de saúde de qualidade, Portugal está abaixo da média da OCDE com apenas 67% das pessoas satisfeitas.

Logo, não é por acaso que já há 28% dos portugueses que optam por ter seguros de saúde.

Isto vai, obviamente, alimentando o sistema privado que vai crescendo sem qualquer regulação. "O que temos atualmente é uma mistura selvagem entre público, privado e social, onde quem vai sair prejudicado são, certamente, os mais pobres, aqueles que não têm alternativa", explica Sakellarides.

Ou como diz Roque da Cunha, o presidente do Sindicato Independente dos Médicos: “Quando fecha a urgência em Almada, quando não há médicos de obstetrícia em Castelo Branco, o que é que estamos a dizer às pessoas? Para irem para o privado. Não estamos a dizerem para irem a outro hospital público mais longe, onde as pessoas sabem que há muita gente e vão ter que ficar horas à espera.” 

Portanto, se queremos salvar o SNS, não podemos esperar por muito mais, avisa Constantino Sakellarides. "Não é fácil, mas se queremos salvar o SNS temos de agir", exalta este especialista, recordando que já em 2018 o relatório do Observatório da Saúde alertava para a necessidade de "repensar o SNS", sublinhando "que o seu desafio primordial são os profissionais de saúde. Afirma-se a necessidade de remunerar a qualidade, recompensar as boas práticas e valorizar e reconhecer o trabalho diferenciado. A qualificação dos recursos humanos, a sua satisfação, a clara definição das carreiras profissionais e remunerações adequadas". Referia-se depois "o planeamento estratégico integrado, a equidade, a clarificação da responsabilidade do SNS enquanto financiador e prestador, a definição clara de fronteiras entre público e privado, a gestão do SNS e a centralidade do cidadão no sistema de saúde".

"O problema já não se resolve com medidas conjunturais ou circunstanciais, é um problema de fundo, político, central", resume o médico Leonel Monteiro. "Temos de arranjar condições para que o SNS seja outra vez um sítio onde as pessoas queiram estar.”

"Nós como sociedade temos de nos perguntar: ou queremos uma sociedade que quando um dos indivíduos está doente todos os outros contribuem para que ele melhore, e nessa versão mais humanista precisamos de um Serviço Nacional de Saúde forte. Ou então podemos escolher uma visão mais individualista, um salve-se quem puder, mas não sei se será o mais desejável e se será a vontade do povo.”

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