Os bombeiros dizem-se "preparados para fazer partos" em ambulâncias, mas não tantos como aqueles que têm sido feitos este ano. Até agora "tem corrido bem" e dizem que é "uma alegria" ajudar as grávidas, mas apressam-se a acusar o Governo de lhes imputar uma responsabilidade que é do Estado
A morar em Cancelos de Baixo, uma aldeia em Mêda, Cátia Rodrigues é uma das mais de 40 mulheres que este ano deu à luz dentro de uma ambulância em plena estrada, “no IP2”, diz-nos para ser mais precisa. Não foi de todo o parto que idealizou e diz que se tudo correu bem foi graças aos bombeiros, a quem não tem mais como agradecer: já o fez nas várias publicações que vão surgindo nas redes sociais e fá-lo agora novamente. “Tive todo o acompanhamento, foram cinco estrelas e muito atenciosos”.
“Correu tudo bem, mas podia não ter corrido”, conta-nos. O parto da sua terceira filha foi todo um momento de “muito nervosismo”. Começou ainda no dia 1 de setembro com dores intensas nas costas que a levaram a ir, pelos seus próprios meios, às urgências do Hospital da Guarda, a cerca de 70 quilómetros, onde esteve cerca de três horas até que “a senhora doutora mandou-me embora e disse que o parto ainda demorava [a acontecer]”. Mas saiu de lá sem sentir qualquer melhoria, pelo contrário. “Eu berrava muito, dizem-me todos aqui na aldeia. Mas as dores eram tantas”.
Já de madrugada, em casa, as dores intensificaram-se e o alarme soou: “Estava já a sangrar, a vomitar, a suar”, relata Cátia, de 34 anos. O seu marido decidiu ligar para os bombeiros de Mêda que “foram rápidos a chegar”, mas “os bombeiros disseram que não podiam fazer grande coisa e chamaram o INEM, arrancamos e nasceu no IP2”, num parto que descreve como doloroso. “As dores eram muitas, pensei que ia morrer. E só me deram o soro”, lembra.
Só este ano, já foram feitos 41 partos em ambulâncias, muitos deles com os bombeiros ao comando, que se dizem “preparados” para este momento, mas não para a frequência com que tem acontecido.
“A ambulância não é o local normal para se realizar partos, estamos preparados, mas para situações excecionais”, começa por dizer António Nunes, presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, adiantando que têm vindo “a chamar a atenção do Ministério da Saúde, do INEM, do SNS, através da direção-executiva, para a necessidade de não empurrar para os bombeiros um problema que é do SNS”.
Para o representante dos bombeiros, o aumento do número de partos em ambulâncias a caminho dos hospitais é o resultado da falta de resposta do Serviço Nacional de Saúde e dos encerramentos de maternidades e urgências de obstetrícia que, em alguns casos, implica viagens de mais de 50 quilómetros para que a grávida consiga o devido atendimento médico.
“Estamos a assistir a um SNS que não conseguiu dar resposta, não só nesta situação, como noutras. E depois diz aos bombeiros ‘transportem’. Essa responsabilidade em vez de ser do SNS passa a ser dos bombeiros”, atira António Nunes, que admite que os bombeiros têm tido “algumas semanas complicadas” e que este cenário está longe de ser apenas “provisório”. “Deixamos de ter o hospital de referência para ter o hospital de oportunidade”, vinca.
O encerramento de serviços e instalações é também apontado por Sara do Vale, da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto, à qual chegam relatos de grávidas que vivem tudo menos um estado que se quer de graça. “Tudo isto são sintomas do que alguma coisa está a falhar e isto não pode continuar, uma coisa é [fazer partos em ambulâncias] de vez em quando, partos que são céleres, ou emergências que acontecem de quando em vez, agora parece que se tornou hábito e isto é perigoso”, diz a cofundadora da associação. “O problema é as coisas que eram exceção tornarem-se um hábito e se cristalizar a ideia de que não se pode fazer melhor”, lamenta.
Bombeiros sem mãos e meios
Os distritos de Setúbal, Santarém e Leiria são os que registam mais casos de partos na estrada, embora Lisboa e Vale do Tejo também comece a entrar para a estatística, diz o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses. Mas uma breve pesquisa online, sobretudo em redes sociais, permite perceber rapidamente que há relatos atrás de relatos de corporações de bombeiros de norte a sul do país a assumir que estiveram envolvidos em mais um parto.
Em agosto, e devido ao encerramento da urgência de Portimão, uma mulher deu à luz numa ambulância dos Bombeiros de Portimão em plena Via do Infante a caminho do Hospital de Faro, como conta a imprensa local. As ambulâncias dos Bombeiros Voluntários do Beato e Penha de França foram sala de parto duas vezes este verão, uma a 21 de junho e outra a 7 de setembro, como os próprios contam na sua página de Facebook. É também nesta rede social que os Bombeiros Voluntários de Benavente contam que deram assistência a um parto numa viagem de 120 quilómetros até à maternidade de Abrantes, uma vez que o Hospital de Santarém estava lotado e os hospitais de Vila Franca de Xira e Loures estavam com os serviços de urgência de obstetrícia encerrados. “Os bombeiros João Costa e Mário Gil tiveram a honra de trazer à luz da vida a Pequena Catarina, em plena Rotunda da A10 em Benavente”, lê-se na publicação.
“Estas soluções de andarmos constantemente com uma grávida num transporte de 150 ou 200 quilómetros aumenta o risco para as nossas equipas de bombeiros e a grande preocupação que temos vindo a demonstrar é que, se um dia destes alguma destas situações é negativas do ponto de vista dos resultados, vai recair sobre os bombeiros a responsabilidade, pelo menos no imediato”, adverte António Nunes, que diz que “o número de ambulância contratualizadas” é insuficiente, “os bombeiros precisam de mais”.
Mas esta não é a única questão que o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses quer colocar em cima da mesa e até da discussão política. Os bombeiros não têm formação para todo o tipo de partos e isso, acrescenta Sara do Vale, não pode ser ignorado, não apenas por colocar em risco a grávida e o bebé, mas também porque impõe uma responsabilidade aos bombeiros que não deve ser a deles.
“Os bombeiros têm a sua formação para partos iminentes, situações excecionais que possam ocorrer, há um kit na ambulância, mas não houve formação adicional para estas situações, não houve nenhuma medida dirigida aos bombeiros no sentido de se poderem requalificar, sendo certo que o SNS não era capaz de dar resposta, pura e simplesmente [o SNS] liga para os bombeiros e diz ‘transporta’”, afirma António Nunes.
Sara do Vale lamenta que não se esteja a dar a devida atenção às grávidas. Para a cofundadora da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto, esta “deve ser a prioridade”. “Se não respeitamos o momento do nascimento, que raio de apoio estamos a dar à nossa população”, questiona, dizendo que é preciso assegurar o funcionamento dos serviços e, sobretudo, a localização dos mesmos. “O país é pequeno, mas as pessoas precisam da sua maternidade local”, vinca.
“Do que temos visto, há nas grávidas níveis muito grandes de ansiedade e uma descrença e descrédito muito grande. Para além da falta de vigilância, das ecografias, há a incógnita de não saberem em que hospital vão ter o bebé”, lamenta Sara do Vale.
Figueira da Foz vive esta realidade há quase duas décadas
O encerramento da maternidade da Figueira da Foz, no final de 2006, trouxe toda uma nova realidade aos bombeiros locais. Os partos em ambulâncias a caminho das maternidades de Coimbra não são uma raridade: nos últimos 17 anos foram 43, o primeiro logo em março de 2007 e os dois últimos este verão. Ainda assim, é uma situação sempre stressante.
“Enquanto vamos tendo ajuda [médica] e está a correr tudo bem é bom e é uma alegria, mas é sempre complicado e stressante. Quando não temos apoios médico, muitas vezes temos de solicitar apoio médico, temos receio”, conta-nos o comandante Armindo Bertão, que diz que a viagem para as maternidades até é rápida - “conseguimos fazer em 35 minutos a andar bem” - e que têm tido “a sorte” de conseguir sempre ajuda médica.
“Ficamos com coração nas mãos, ficamos felizes quando corre tudo bem e é sempre uma alegria”, diz, admitindo que “a adrenalina é muita” e que “não é fácil” lidar com este stress, embora reconheça que há colegas de outras corporações em situações piores por terem pela frente viagens mais longas. “Aqui temos [as maternidades] perto, mas não é fácil andar cento e tal quilómetros com uma parturiente de um lado para o outro”, diz, apontando o dedo a “falhas” que o Serviço Nacional de Saúde tem e que têm de ser “melhoradas”, destacando que “não se devem fechar as maternidades só porque há menos partos e miúdos a nascer”. Para o comandante, “centralizar” as maternidades e serviços de urgência “é um mau serviço” e “não faz sentido a Figueira da Foz ter ginecologia para consultas e a grávida ter de ir para Coimbra para o bebé nascer”.
“Não podemos andar às voltas só porque [o serviço] está fechado. Mas nós existimos para combater as falhas do Estado e esta é mais uma. É uma alegria quando corre bem, mas o Estado nunca nos transmitiu nada, nem um apoio, nem um reconhecimento de bom serviço, no dia que correr mal os bombeiros têm de ir responder por essas situações”, adverte o comandante Armindo Bertão dos Bombeiros Voluntários da Figueira da Foz.
Em apenas seis meses, nasceram tantos bebés em ambulâncias de norte a sul do país como nos últimos 17 anos da Figueira da Foz, onde os bombeiros recordam os vários partos que já assistiram e, apesar das dificuldades, dizem-se felizes por estarem presentes num dos momentos mais importantes das famílias e por receberem sempre o devido agradecimento.
“As mães acabam por nos vir visitar [com os bebés] e até as crianças mais velhas vêm cá todos os anos ver os bombeiros que assistiram ao parto”, conta o comandante. “Esta última mãe [que deu à luz no dia 7], assim que saiu da maternidade fez questão de vir aos bombeiros e trazer a menina”, conta-nos, contente pelo gesto.