Diana denunciou onze casos de alegada negligência médica e tentaram interná-la compulsivamente. “O erro não é discutido. Como se fossem todos impecáveis, cirurgiões que não falham”

TVI
6 mai 2023, 22:00

Diana Pereira, a médica que denunciou alegados casos de erros e negligência no serviço de cirurgia do Hospital de Faro foi a convidada desta semana de Manuel Luís Goucha. Diana apresentou queixa dos seus superiores por acreditar que estas más práticas devem ser analisadas para se evitar erros semelhantes e assim contribuir para a melhoria do Serviço Nacional de Saúde, que considera ser "péssimo" no Algarve. Nos hospitais, diz, encontrou o que chama de uma confiança “desmedida” entre alguns profissionais de saúde que prejudica os cuidados e pouca atenção para com as necessidades dos doentes.

Ser cirurgião “faz de nós quase super-heróis”, diz Diana Pereira, jovem médica de 27 anos. “Só que isso, às vezes, sobe à cabeça de muita gente, porque nós não somos super-heróis, somos humanos.” Diana viu o seu historial clínico ser exposto e chegou a ser intimidada. Sugeriram que fosse internada compulsivamente devido ao seu estado de saúde mental. Ainda assim, garante, não se arrepende de ter falado.

“Eu tento ajudar, e isso às vezes é um bocadinho mal visto na medicina”

Manuel Luís Goucha: Doutora Diana, é a última vez que a trato por doutora, mas a si tenho de a tratar por doutora, que é médica. Em termos teóricos, portanto, tem todo o tipo de conhecimentos, e depois, a partir da teoria, que médica, que profissional, ao serviço dos outros, queria ser? Ou quer ser?

Diana Pereira: Eu quero ser sempre aquela que gostava de ter se eu estivesse doente.

Isso quer dizer o quê?

Eu tento sempre pôr-me na pele do doente, que está ali num momento de vulnerabilidade...

Empatia?

E tentar ser o melhor possível para que ele se sinta bem. Ou seja, se eu vou ver um doente de manhã e ele diz que está triste pelo motivo X ou Y, até pode não ter nada que ver com o motivo dele estar lá internado. Mas eu tento ajudá-lo da melhor forma que sei.

As pessoas costumam dizer que eu sou muito... hospitaleira. Não sei se é assim o termo, mas eu tento ajudar, mesmo quando não são questões da minha área, e isso às vezes é um bocadinho mal visto na medicina.

Chama-se isto a humanização dos serviços de saúde. E andamos a falar disto há décadas, não é?

Sim, e o problema do doente, o problema que mais me incomoda hoje, até pode não ter que ver propriamente com a sua saúde.

Por exemplo, eu tive doentes lá no serviço, uma doente amputada que não saía da cama porque tinha medo de ir para a cadeira, porque tinha o travão bloqueado e aquilo não funcionava.

E aquilo chateou-me durante dias, até que chegou um dia em que eu peguei na caixa de ferramentas e fui arranjar a cadeira. Para as pessoas que viram, aquilo estava tudo mal, porque eu sou médica e não tenho de arranjar uma cadeira de rodas.

Para mim o que fazia sentido era eu ajudá-la, mesmo que aquilo não fosse um ato médico.

A cirurgia “faz de nós quase super-heróis. Isso, às vezes, sobe à cabeça de muita gente”

Qual é o fascínio de seguir uma intervenção cirúrgica?

Envolve muita responsabilidade, é verdade, porque nós podemos fazer uma asneira muito grande...

Tem nas mãos a vida de um doente.

Sim, mas, ao mesmo tempo, envolve toda uma arte da cirurgia, da técnica, que nós temos de dominar com a prática e que, a dada altura, faz de nós quase super-heróis. Só que isso, às vezes, sobe à cabeça de muita gente, porque nós não somos super-heróis, somos humanos.

Logo também podem falhar.

Exato. E temos muita responsabilidade nas mãos. Ou seja, quando corre bem, nós sentimos ali uma coisa que parece surreal, porque nós estamos a prolongar a vida de uma pessoa. Quanto é que o Manuel pagava para ter mais um ano de vida? Se tivesse uma doença grave, se calhar pagava todo o dinheiro que tem.

E é isso que nós damos às pessoas na cirurgia, damos a capacidade delas poderem ter mais tempo com os que gostam, com as suas vidas, e há esse fascínio por essa parte.

Mas também há todo um medo da outra parte, do fracasso, do ego, do...

Como é que se lida com isso? Também, psicologicamente, se é preparado para isso?

Sim.

Justamente ao longo da aprendizagem?

Ao longo da aprendizagem nós temos aulas de comunicação empática, comunicação de más notícias e tudo o mais, e foi algo que para mim foi muito complexo, porque até me habituar ao ritmo de ter que lidar tantas vezes com a morte e lidar com situações muito complexas, eu senti, até durante a faculdade, que não tinha capacidade, que preferia até escolher uma especialidade em que não lidasse tanto com a morte.

Mas, depois, a partir do momento em que comecei a ter prática, comecei a perceber que se calhar eu até tenho um jeito, precisamente por ser empática e por me colocar no papel do outro.

E aprendeu alguma coisa sobre a morte?

Já aprendi umas quantas coisas.

Que tipo de coisas?

Aprendi que nós não conseguimos controlar tudo. Por muito que nós queiramos dar o nosso máximo, às vezes não é só o doente, mas também toda uma estrutura do SNS em que estamos inseridos, não nos deixa dar o máximo.

Aprendi que por muito que tentemos fugir, ela é inevitável. Todos nós um dia vamos acabar por morrer e, portanto, devemos aproveitar a vida da melhor forma que podemos.

Com qualidade.

Mas também aprendi que, por ela ser uma coisa que é imprevisível, nós, enquanto médicos, temos de dar o nosso melhor para que não seja agora e para que seja protelada.

“Eu cheguei a fazer cirurgias como cirurgiã principal quando só tinha ajudado em duas na vida”

Em todo este processo nunca pôs em causa a especialidade que escolheu?

Não. E mesmo depois da queixa também não, porque há muita gente que me diz que o erro é inevitável e eu sei que sim. Por isso é que nós temos que estudar, fazer cursos, dar o nosso melhor, praticar, praticar, muito antes de começar a fazer cirurgias como cirurgião principal.

Tudo isso é muito importante para um interno e é isso que às vezes falha também, no caso no internato no Hospital de Faro, onde eu estava.

Eu acabei por fazer cirurgias como cirurgiã principal, logo em janeiro e fevereiro, cirurgias essas que eu em pouco ou nada ajudei.

Por exemplo, a apendicectomia, que é a retirada do apêndice, eu cheguei a fazer como cirurgiã principal e com o meu ex-orientador de formação ao lado e eu tinha ajudado em duas durante a vida toda. Como é que eu vou fazer uma cirurgia a uma pessoa que está ali sem ver o suficiente para ter confiança que vou fazer aquilo bem?

E eu de início achei aquilo o máximo, eu achei espetacular, eles aqui deixam-me operar, deixam-me fazer as coisas. Eu estava encantada.

Não é leviano?

Foi quase como uma tomada de consciência que eu tive ao longo do tempo, de perceber a responsabilidade que estava ali e até de perceber com os erros dos outros. Porque eu via os outros a falharem e pensava para mim, «posso ser eu também». Eu posso pôr em causa a vida de uma pessoa, posso pôr em causa a qualidade de vida de uma pessoa e, por isso, eu comecei a ter medo.

Mas o medo advém do facto de começar a ver as pessoas a falharem e a equipa a falhar?

Também. Se eles que são assistentes e assistentes graduados, ou seja, são profissionais, com anos de experiência, falham, claro que eu, se tenho pouca experiência, vou falhar muito mais rapidamente, não é?

Eu tenho muito medo de falhar precisamente por saber que sou inexperiente.

Às vezes, na cabeça dos especialistas, esse medo deixou de existir, porque consideram que já são muito capazes. E quando o medo deixa de existir, nós entramos numa confiança que às vezes é desmedida.

Onze alegados casos de negligência médica. “O erro naquele serviço não é discutido. Como se fossem todos impecáveis, cirurgiões que não falham”

Quando é que as coisas se começam a complicar no bloco operatório para si? Quando é que começa a perceber que, alegadamente, acontecem muitos casos de negligência? Só em três meses, penso eu, onze.

Foram mais, os onze foi os que eu denunciei.

Sim, porque, entretanto, vão-lhe chegando outras queixas, não é?

Não, mas mesmo durante esse período. Eu denunciei os casos que eu considerei mais evidentes, em que houve alguma coisa que correu mal.

Há coisas imprevisíveis que acontecem, não é?

Exato. Mas também sei que há coisas que não se devem fazer de todo. E dissecar pelos planos anatómicos corretos, por exemplo, na área cirúrgica é muito importante.

E era isso que muitas vezes faltava nas cirurgias que eu via na equipa em que estava. 

E questionava?

Eu questionei sempre.

O chefe, o cirurgião-chefe?

Sim, o cirurgião que estava como principal e os ajudantes, muitas vezes, porque às vezes os ajudantes tinham mais facilidade em falar, porque não estavam tão concentrados e explicavam-me.

Ajudantes experientes?

Sim. Assistentes também, ou seja, especialistas.

Portanto, é a equipa dele?

Muitas das vezes o que acontecia é que não admitiam o erro, ou então diziam que o erro era porque o doente tinha aderências, porque já tinha sido operado antes. O erro é porque o doente tem comorbilidades e aquilo não funciona. O pós-operatório complicou-se porque o doente é assim e assim e tem esta certa idade.

Ou seja, o erro nunca era discutido como algo que acontece. O erro nunca era discutido como algo que até pode ser construtivo, porque nós podemos melhorar a seguir quando vier o próximo paciente com a mesma situação, nós podemos olhar para isto de uma forma educativa, construtiva.

Mas o erro naquele serviço não é discutido. Como se fossem todos impecáveis, como se fossem todos cirurgiões que não falham. E isso não acontece em lado nenhum.

Então e como é que a equipa, e nomeadamente este cirurgião que está aqui a ser posto em causa e que foi denunciado, lida com estes sucessivos casos?

O que me preocupa e o que me preocupou sempre foi a falta de emoção associada ao que vem a seguir. Ou seja, nós falhamos.

“Há pessoas que morreram, há pessoas que ficaram sem órgãos”

Há pessoas que morreram.

Há pessoas que morreram, há pessoas que ficaram sem órgãos, há pessoas que ficaram com um dano corporal associado.

Sequelas para sempre.

Sequelas para sempre. E estas pessoas, quando vêm a seguir à consulta e nos trazem um abdómen, por exemplo, completamente desfigurado, não há como não olhar para elas e pensar, «se calhar eu falhei aqui, se calhar eu podia ter feito alguma coisa diferente».

E o que eu via nesta pessoa é que ela não se punha em causa. Se ela podia ter feito alguma coisa diferente. Ela não parecia ter emoção perante as consequências que tinha na vida das pessoas.

Ainda há dias, passou uma reportagem daquela senhora e eu emocionei-me com a reportagem. E eu conhecia a história toda, mas eu emocionei-me porque vi a casa dela, vi a cadeira de rodas que ela utilizava para ir buscar o marido, vi as limitações que ela depois disse ter.

E, antes das cirurgias, eles andavam a passear, como dois reformados do Algarve, gostavam de passear e fazer a vida deles, e agora estão completamente limitados.

E é este olhar para o doente e para a sua vida, muito para além daquilo que nós lhe estamos a fazer ali na maca, no bloco operatório, que me importa e que me faz a diferença. E por isso é que eu depois chegava à casa, e às vezes não conseguia dormir, e às vezes tinha de voltar ao hospital.

Ia perguntar-lhe isso. Que impacto emocional tinha isto em si? Estas práticas que via?

Eu acho que tinha um impacto que, também não considero que deve ser o comum, porque as pessoas também têm de ter vidas e têm que saber desligar do trabalho, mas, no meu caso, eu não conseguia.

E foi por isso que também voltei a fazer terapia e tudo o mais, porque eu vivi estas complicações como se fossem elementos da minha vida, como se fossem amigos ou família.

Eu chegava a casa e ia jantar, mas depois lembrava-me que havia um exame qualquer que nós, se calhar, podíamos pedir, para esclarecer ali qualquer dúvida, e voltava ao hospital.

E eu, por acaso, como era só atravessar a rua e estava no hospital, eu, literalmente, saía de casa... Eu cheguei a dormir no hospital em noites em que eu não estava de urgência sequer. Eu dormia porque ficava lá até tão tarde, e depois no dia seguinte tinha que estar lá tão cedo, que eu estava tão cansada que nem me dava ao trabalho de atravessar a rua. E fazia muitas horas, o problema também era este.

Eu não tinha tempo sequer para estudar o suficiente, o que devia estudar um interno, porque havia semanas com 80 a 100 horas de trabalho.

Também se está a pôr em causa.

Sim, eu estou a pôr-me em causa a mim também, porque como é que alguém não falha quando tem essas condições?

E os internos, e eu sei, fruto do conhecimento de todos os internos de serviço de cirurgia, nós temos as piores vidas dos internatos, os internos de cirurgia geral.

Mas ali em Faro é o expoente máximo, porque eu chegava a trabalhar 24 horas seguidas, e, supostamente, saía às 9 da manhã, mas nessa mesma manhã tinham de se discutir os casos que se ia operar no dia seguinte, então ninguém me deixava sair, e eu precisava de ficar lá para estudar os casos do dia seguinte.

“Qualquer profissional de saúde daquele hospital, se precisar recorrer, por exemplo, ao serviço de cirurgia, à urgência, pergunta-nos a nós primeiro quem é que está de urgência hoje?”

Diana, estamos a falar de alegados casos de negligência médica, 11, com mortes e com sequelas para toda a vida de alguns pacientes e estamos a falar de um período de 3 meses. Neste hospital, não se falava do que acontecia lá dentro? E, por outro lado, as famílias dos pacientes não apresentavam queixa?

Manuel, no caso...

Impera o silêncio?

Impera o silêncio e é uma injustiça tremenda, isto eu posso dizer, e toda a gente que conhece o hospital de Faro se vai rever nas minhas palavras. Qualquer profissional de saúde daquele hospital, se precisar recorrer, por exemplo, no caso ao meu serviço,
ao serviço de cirurgia, à urgência, pergunta-nos a nós primeiro «quem é que está de urgência hoje? Que equipa é que está?»

E, se for uma equipa que lhe agrada, com um determinado profissional que lhe agrada, ele vai à urgência. Se não for, ele vai ao privado ou aguarda pelo dia em que está a equipa que conhece.

Mas o comum dos mortais que não tem esta possibilidade, não é profissional de saúde, não conhece ninguém no hospital, não tem a mesma possibilidade e sujeita-se a quem aparece. E o que acontece é que quem aparece muitas vezes são os causadores da maior parte destas complicações. E quem aparece faz aquilo que sabe, aquilo que pode, muitas vezes sem respeito pelos doentes e é isso.

Mas já tinha ouvido queixas em relação concretamente a esta pessoa?

Sim, eu quando soube que ele era meu orientador, eu já conhecia muita coisa sobre ele. E todo o hospital conhece. O problema é este, é ser uma situação tão conhecida para todos os profissionais daquele hospital. Inclusivamente, muitos doentes já apresentaram queixas internas, queixas essas que acabam por cair no nada porque vão para o gabinete de cidadão. Não é reencaminhado para lado nenhum e recebem um pedido de desculpas por e-mail. Metem o pedido de desculpas ao bolso e seguem a vida com uma série de problemas associados ao que aconteceu.

Mas a verdade é que impera o silêncio porque as pessoas têm medo.

Que é uma coisa que você não tem?

Eu não sei como é que sou assim, às vezes até ponho em causa, eu sei que devia ter mais, mas ao mesmo tempo...

Comprou uma guerra.

Eu sei. Só que aqui a questão é, eu prefiro dormir bem à noite a viver com medo porque eu podia simplesmente despedir-me. E foi isso que eu pensei de início, quando eu comecei a perceber que eu não estava a ser formada e que estava a ficar traumatizada perante tantas situações em que eu não me revia e não podia fazer nada...

“As queixas internas nos hospitais não dão em nada.”

Sentiu-se alguma vez cúmplice?

Era isso. Eu sentia que, se eu me despedisse e fosse embora, eu teria sido cúmplice daqueles três meses em que estive lá e participei nas cirurgias e vi os erros e nada fiz.

O meu caso é diferente porque eu percebi isto rapidamente e fui à instância judicial, que é aquela que tem mais competência para decidir se há crime, se não há, se há negligência.

À Polícia Judiciária?

Exato. E eu preferi fazê-lo...

Foi a eles que fez a queixa? A denúncia?

Sim, eu preferi fazê-lo porque toda a gente me disse que as queixas internas naquele hospital, e em geral, nos hospitais, não dão em nada.

Porquê? Porque estamos a falar de uma classe corporativista? 

Exatamente. Se nós formos olhar para outros casos...

Este país, é uma herança cultural do tempo de Salazar,  do Estado Novo, que é um país de corporações.

Exatamente, só que, se nós formos olhar para outros casos, ainda de há bem pouco tempo, bem conhecidos… No Amadora-Sintra, por exemplo, dois cirurgiões que até têm estado em contacto comigo e são pessoas que me têm apoiado bastante, eles denunciaram internamente. O que é que lhes aconteceu? Estão suspensos, os dois, do hospital, da prática cirúrgica. Um deles era diretor de serviço.

A Diana foi suspensa?

Eu pedi a suspensão. Porque, depois de eu fazer a queixa, toda a forma de eles agirem comigo não foi correta ao meu ver. Eu fui intimidada, inclusivamente.

Pensaram “instaurar um processo de internamento compulsivo contra mim”

Sofreu represálias?

No dia seguinte a eu fazer a queixa, um dos denunciados liga para o meu cunhado, que também trabalha lá no serviço, a pedir o contacto da minha mãe, porque ele achava que como eu fiz a queixa, eu não estava bem, e estava a pensar em instaurar um processo de internamento compulsivo contra mim. Até fazer a queixa estava tudo bem com a minha saúde mental.

Eles avançam mesmo para problemas psiquiátricos que a Diana tenha. Isso acha que tem a ver com o estado de exaustão a que chegou no quarto ano da faculdade? Porque aí teve um burnout. Acha que estão aí a buscar estes assuntos que estão resolvidos no tempo, não é? 

Sim, é público que eles acederam a dados meus de saúde, partilharam dados meus de saúde com outras pessoas do serviço, inclusivamente medicação que eu tomei, ou tomo.

Eles não são psiquiatras, e eu sou seguida e faço terapia porque me sinto melhor a fazê-la, porque tiro benefícios para a minha vida futura e não só para a vida atual, e porque sinto um bem-estar associado e sou a maior defensora da terapia para toda a gente, tenham ou não problemas de saúde mental.

Eu também sou o maior defensor.

Quando eles pegaram isto, acabaram por se autoincriminarem, porque, até então, até eu fazer a queixa, não havia problema nenhum comigo.

Eles só se queixavam de eu ser hiperativa, que trabalhava demais, que eu devia sentar-me mais às refeições.

E que fazia coisas que à partida não competiam a uma médica.

Sim, eles queixavam-se.

Quando muito a uma auxiliar de ação médica.

Exato, eles queixavam-se da minha conduta, que não era própria de uma senhora doutora, e queixavam-se de eu trabalhar demasiado, de não parar.

E é hiperativa?

Eu sempre fui, mas é mesmo de personalidade. Eu desde pequena, que a minha mãe, recebia as minhas boas notas, mas por baixo recebia o recado a dizer que eu não me calava e que não parava quieta.

E pelos vistos não se cala, ainda hoje.

É verdade, eu sou uma turbina.

Não é disso que eu estou a falar, é da denúncia.

Sim, mas sindicalista também sempre fui. E pertenci sempre ao associativismo. Estive sempre envolvida em tudo o que fosse lutar pelo mundo mais justo. Porque é aquilo em que eu acredito e é aquilo que eu faço para que aconteça.

E a partir do momento em que denuncia à Polícia Judiciária, o que é que aconteceu a seguir?

Eu fiz queixa na PJ e, no dia seguinte, encaminhei a queixa para a entidade reguladora da saúde e a ordem dos médicos. Depois foi a própria ordem dos médicos que encaminhou também para o IGAS, para a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde.

E, depois, no dia seguinte, que foi o dia a seguir a encaminhar a queixa, eu fui trabalhar e falei com o conselho de administração, com o diretor do internato, e diretor clínico, que inicialmente tiveram todos uma abordagem de choque, de não perceberem porque é que eu não fiz uma queixa interna. Eu não a fiz precisamente porque já sabia que não ia dar em nada.

E acha que vai dar em alguma coisa?

Não sei. Muito sinceramente, eu já estou num ponto em que, serviu, em parte, para criar um reboliço... 

E para alertar.

E para alertar e para as pessoas terem mais cuidado. 

Porque, certamente, isso acontece também em outros hospitais, não é? Até nos privados há maus profissionais também.

Até para as pessoas se informarem melhor. E para chegarem ao hospital e terem noção de que têm direitos.

O paciente não tem noção dos direitos que tem.

Não tem noção porque se esconde, porque não é claro como é que o paciente deve agir perante más práticas

“É assim que está o SNS. Temos que trabalhar quase todos por 10 para que as coisas corram bem. E o Algarve tem um serviço de saúde péssimo”

Temos um bom Serviço Nacional de Saúde?

Não. Não, de todo.

Há muito que se desinvestiu, não?

Há muito que se desinvestiu e tem mesmo que se falar sobre isto, e eu espero que isto seja um modo para se falar ainda mais sobre isto, porque não é só a questão da má qualidade dos profissionais, é a questão da falta de recursos, é a questão da falta de recursos materiais.

E não é deste governo. É de vários governos para trás.

Quando eu estou numa urgência, se chegar uma senhora com a cabeça aberta e que eu tenho de dar os pontinhos, eu tenho que preparar a mesa, eu dou-lhe os pontos e a seguir eu limpo a mesa. Porque há duas auxiliares para uma urgência inteira, há três ou quatro enfermeiros que têm os doentes que estão lá para ser mudados, para fazer as higienes, tirar sangue, fazer as rotinas todas da enfermagem, e eles são pouquíssimos para a quantidade de trabalho que há.

Portanto, eu, enquanto médica, aquilo que eles se queixam de eu ser auxiliar e enfermeira, na urgência eu tenho de ser isso tudo e aí ninguém se queixa, porque como não há profissionais, tenho que ser e ponto.

E o SNS é assim que está. Nós temos que trabalhar quase todos por 10 para que as coisas corram bem. E mesmo assim não correm, porque nós não temos aqueles tais superpoderes, somos humanos, estamos limitados.

O que espera depois desta conversa?

Eu espero que as pessoas no Algarve comecem a educar-se mais no contexto da saúde, que percebam que têm direitos e que, quando recorrem aos serviços de saúde, se algo correr mal, elas têm direitos, têm o direito de se queixar, têm o direito de ir para as instâncias que forem precisas para conseguir justiça no caso de erro médico ou noutros tipos de situações.

E, acima de tudo, que as pessoas do Algarve se unam, porque há um hospital prometido há 20 anos que foi colocada a primeira pedra e nunca mais se falou disso.

Aquele hospital onde estamos agora não tem condições para os doentes todos do Algarve, muito menos no verão, quando temos 4 vezes a população. Ou seja, que as pessoas se unam e que percebam que isto aqui, tendo sido a ponta do icebergue, revela toda uma realidade de um serviço de saúde péssimo na região.

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