Não é "próprio de um país europeu" o que "este Governo e os anteriores" fizeram às grávidas em Portugal

7 ago, 07:00
Um “paraíso” na Internet. Centenas de grávidas estrangeiras procuram Portugal para ‘turismo de nascimento’

"Falta coragem política" para se pagar mais aos médicos e para se tomar outras medidas - algumas podiam entrar em vigor já este verão, dizem os especialistas (que dão neste artigo recomendações ao Governo). Enquanto isso: uma mulher que engravide em Portugal "vai viver em ansiedade" - e há "dois anos" que é assim. "A saúde dos portugueses, sobretudo dos que não têm meios financeiros para ir ao privado, não pode ser um tema de conflito político"

Nos dias que correm, estar grávida em Portugal é, para muitas, tudo menos um estado de graça. Conseguir fazer as ecografias trimestrais obstétricas pelo Serviço Nacional de Saúde é um rasgo de sorte e há quem nem chegue a tentar e prefira gastar umas boas centenas de euros no privado. Quem necessita de urgências ou também gasta umas boas centenas de euros no privado ou corre o risco de ficar à espera de um atendimento telefónico ou de uma longa viagem até um hospital que não o seu de residência. Na hora do parto, mais um jogo de sorte e de chamadas. E seja ou não um parto programado, mais uma viagem de muitos quilómetros - mesmo em trabalho de parto.

“Há uns tempos, a grávida saberia mais ou menos qual era o hospital, neste momento não sabe, telefona e logo vê o que é que lhe pode acontecer, inclusive podem dizer-lhe que está a muitos quilómetros de distância. Isto não é desejável. É apenas criar mais um fator de ansiedade numa situação que, já por si, pode criar bastante ansiedade na mulher”, critica Nuno Clode, presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno Fetal.

Ayres de Campos, presidente da Federação das Sociedades Portuguesas de Obstetrícia e Ginecologia, reconhece que “todo esse contexto tem repercussões a nível psicológico, de insegurança no futuro, mas não é preciso ser muito especialista na área da psicologia para se aperceber disso”. O especialista diz que encerrar maternidades de “forma rotativa, como foi iniciado no ano passado, é uma solução que não é própria de um país europeu” e que “causa imensa insegurança”. “A grávida não sabe quando vai entrar em trabalho, na maioria das vezes não é programado. E mesmo que seja informada três meses antes do local, isso não a acalma.”

O caso da grávida das Caldas da Rainha deixou a nu um problema que não é de agora e que os profissionais temem que se repita e agrave: há falta de médicos especialistas em ginecologia-obstetrícia no SNS, os que lá ‘sobrevivem’ são demasiado velhos para fazer urgências, a carreira é pouco ou nada atrativa para captar os recém-formados e não há regras claras que tornem o funcionamento desta especialidade fluído. 

“Nos últimos dez anos tem havido pouca coragem política para enfrentar este problema. Se fosse fácil, se houvesse uma bola mágica, acredito que tivessem a coragem, mas é um problema complexo, que implica várias frentes em que é preciso alterar conceitos. As grávidas têm estado nesses dois anos com ansiedade”, começa por dizer Diogo Ayres de Campos, que defende um “espírito mais reformista” para o setor público da saúde, algo que considera que tem falhado a nível governamental. “De facto, os governos anteriores não têm tido essa coragem e este ainda não tomou as medidas necessárias.”

“A saúde dos portugueses não pode ser um tema de conflito político”

Nuno Clode, presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno Fetal, não tem dúvida que “alguma coisa tem de ser feita e alguma coisa terá de ser reorganizada”, mas reconhece que tal tem “de ser programado com antecedência, com espaço e provavelmente com alguma coragem política, que é aquilo que é necessário”. 

Diogo Ayres de Campos também diz que “falta coragem política” a este e aos anteriores governos para mexer em salários, criar regras e apostar na formação. O médico reconhece que “há problemas de fundo que demoram” a surtir efeito, como a formação de novos profissionais”, mas crê que há medidas que podem ser feitas em quatro, cinco, seis meses” - ou até antes -, “desde que haja um entendimento alargado”, referindo-se, em parte, ao papel que o setor privado pode ter no combate às carências do SNS. 

“Foram feitas muito poucas reformas de fundo, é preciso um acordo alargado. A saúde dos portugueses, sobretudo dos que não têm meios financeiros para ir ao privado, não pode ser um tema de conflito político”, sublinha Ayres de Campos.

Um dos outros aspetos que é possível mudar a curto prazo, continua o presidente da Federação das Sociedades Portuguesas de Obstetrícia e Ginecologia, é o modelo de funcionamento dos serviços de ginecologia e obstetrícia e das próprias maternidades, evitando os encerramentos rotativos. No entanto, para tal, Fernando Cirurgião, diretor do Serviço de Obstetrícia e Ginecologia na Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, defende que “precisamos de regras muito bem definidas - faltam normas muito bem definidas de como as equipas devem ser constituídas, das obrigações dos elementos dessas equipas, por exemplo”. E esta falta de regras, alerta, pode levar a uma má gestão dos recursos e, por consequência, a mais encerramentos de serviços. 

“Os serviços acabam por se suicidar. Com poucos utentes e recursos médicos acabam por perceber que não precisam de estar abertos”, vinca o médico, adiantando que “há hospitais neste momento fechados, sem assistência, mas com médicos a tomar conta das grávidas internadas que mas podem lá estar sem fazer nada”, fazendo falta noutras unidades.

Fernando Cirurgião considera que o encerramento da maternidade do Hospital Santa Maria foi mal gerido, defendendo que deviam ter sido “aproveitados os recursos” do Hospital São Francisco Xavier, onde trabalha, podendo ter sido evitados alguns casos mais graves de transferência de grávidas. “Não consigo compreender porque não aconteceu isto, não há justificação a não ser que seja algo mediático e político. Em prol das grávidas não foi”, diz o médico, que é também crítico quanto às instalações renovadas da Maternidade Luís Mendes da Graça, no Hospital de Santa Maria, e que vão ter a visita do primeiro-ministro, Luís Montenegro, e do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que interrompeu as férias para fazer esta visita.

“O que me parece utópico é o porquê de abrir [a maternidade do] Santa Maria neste momento quando não traz nada diferente, é só um show off. Se tivesse equipa para abrir as 12 camas seria uma pedra no charco, mas neste momento não está a ser feito nada disso. Vai só reter lá alguns médicos, vai haver uma dispersão ainda maior dos médicos”, critica Fernando Cirurgião.

O médico do São Francisco Xavier diz ainda que, “se nada for feito”, casos como o das Caldas da Rainha ou como o da grávida que morreu enquanto era transferida de hospital “vão continuar a acontecer”, mas apressa-se a apresentar uma forma de evitar cenários como estes: “Isto resolve-se com a concentração de recursos, como a referenciação de utentes, e assumir que os hospitais têm de trabalhar apenas como hospitais de referenciação. Assim, pelo menos, as grávidas sabem para onde vão”, atira.

Quando questionados sobre a necessidade de ser criada uma task-force dedicada a este caos da Ginecologia e Obstetrícia, tanto Fernando Cirurgião como Ayres de Campos se mostraram apologistas de uma equipa dedicada ao tema ainda este verão, mas Ayres de Campos olha para o que a história já ensinou e diz que de nada podem adiantar se, a nível político, não forem tomadas as decisões necessárias. 

“Já se criaram várias [comissões], umas mais eficazes do que outras, mas cria-se a noção de que a task force tem o poder político e muitas vezes não tem. Houve comissões no passado que trabalharam bem, recomendaram e o poder político não implementou [essas recomendações], mas tem de haver comissões especializadas para aconselhar o Governo, que não tem de saber ao pormenor”, vinca o médico e antigo diretor de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina de Reprodução do Centro Hospitalar Lisboa Norte, que foi afastado por questionar o projeto de reestruturação no Hospital de Santa Maria e a colaboração com o S. Francisco Xavier.

Ter "coragem" para pagar mais aos médicos

“O que está a acontecer neste instante é que as grávidas são as mesmas, mas as maternidades que estavam planeadas para esta população não estão a dar resposta por causa de falta de recursos médicos”, lamenta Nuno Clode. E para o presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno Fetal, “tudo isto é expectável, não tem nada de novo - isto é uma questão meramente de planeamento e de organização”. Mas não só, adiantam Diogo Ayres de Campos e Fernando Cirurgião, que defendem que é preciso mexer o quanto antes na remuneração dos médicos, sendo esta a única forma de tornar o Serviço Nacional de Saúde atrativo e garantir que há profissionais suficiente para as escalas, sobretudo de urgência, que têm sido a mais afetadas pela falta de recursos e levado ao encerramento dos serviços. Mas, para isso, dizem, é necessária a tal “coragem política” e pode ser necessário abrir os cordões ao Orçamento. 

“É preciso olhar para ordenados na medicina privada e fazer algum esforço para que [os do público] não fiquem tão distantes. É preciso haver coragem, não é a forçar os médicos a fazerem 250 horas anuais que tornam a carreira atrativa e foi essa a mensagem que o governo anterior passou”, diz Ayre de Campos, que acrescenta que “tem faltado coragem política para tomar algumas decisões estruturantes e importantes”, sobretudo no que diz respeito à carreira médica. 

Fernando Cirurgião considera que se “está a promover o trabalho à tarefa”, que este “é um regime muito mais apelativo”, sobretudo para os mais jovens, que assim que terminam a sua especialização “rescindem os contratos” e começam a trabalhar como tarefeiros. “Temos médicos recém-especialistas que estão contratados para fazer bancos de tarefa e recebem em 24 horas o que ganhariam num mês”, exemplifica Fernando Cirurgião, reconhecendo que é difícil combater este tipo de atratividade. 

A medicina privada tem sido a principal escolha de especialistas em ginecologia e obstetrícia. “Tornou-se bastante apelativa”, admite Fernando Cirurgião, não se referindo apenas ao facto de “dar as condições financeiras e económicas que a medicina pública não consegue dar”, também “permite a gestão dos horários, que o médico gira o seu tempo, que não seja assoberbado por pedido de mais urgências, cirurgias e horas extra”.

“Não há reconhecimento da evolução da carreira [no SNS], há um estagnar de carreira. Veja lá, só há um ano é que sou assistente graduado sénior, a seis ou sete anos de uma possível reforma”, revela Fernando Cirurgião, que lamenta o facto de o SNS não ser atrativo para os jovens, que diz que já nem conseguem sentir “orgulho” em querer “pertencer a um quadro hospitalar”.

Se se tornar a carreira atrativa, isso pode ser um trampolim para aumentar o número de médicos especialistas a curto prazo no SNS, mas ainda antes disso é preciso abrir vagas para especialidade e que estas sejam preenchidas. Este ano, o Governo anunciou que quer contratar 2.212 médicos, mas a verdade é que foram apenas abertas 42 vagas para ginecologia-obstetrícia, um número que os clínicos veem como curto e que sabem que não será totalmente preenchido, sendo este o cenário nos últimos anos. “Quase que me apetecia apostar consigo que não vão ser ocupadas”, diz Fernando Cirurgião.

O estudo Características Demográficas e Profissionais dos Especialistas em Ginecologia-Obstetrícia Registados em Portugal: Necessidades, Recursos e Desafios, do Colégio de Ginecologia/Obstetrícia da Ordem dos Médicos, diz que “em 2035 serão necessários 1.139 especialistas a nível nacional (público, público-privado e privado)”, sendo, para isso, necessário formar 33 especialistas por ano. 

O diretor do Serviço de Obstetrícia e Ginecologia na Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental diz que “há muitos anos que foram ignoradas as reais necessidades da obstetrícia - em termos de Medicina foi tudo mal perspectivado” - e que o não preenchimento de todas as vagas estava há muito prevista, até porque não é de agora. Ainda nos anos 1980, recorda, “já havia poucas vagas”. “Nos anos a seguir foi pior ainda, as vagas eram ainda mais escassas”, diz o médico, que lamenta o hiato geracional que é cada vez mais notório na especialidade. Há menos jovens a querer seguir esta área e os que ainda resistem no SNS estão já com idade para não fazer escalas noturnas e de urgência, o que tem causado dificuldades constantes.

Segundo os dados facultados pela Ordem dos Médicos à CNN Portugal, existem atualmente 1.913 médicos de ginecologia e obstetrícia, apenas mais três do que no final do ano passado. Mas nem todos eles trabalham no SNS, muito menos apenas no SNS. Olhando para os dados disponíveis online, referentes a dezembro de 2023, mais de 60% têm mais de 56 anos, idade a partir da qual podem rejeitar fazer parte da escala do serviço de urgência. E este, assegura quem está no terreno, é o grande problema do SNS e aquele que faz com que muitos fujam para o privado.

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