Por que é que há pessoas que tiveram contactos de risco mas nunca apanharam covid-19?

30 jan 2022, 08:00
Profissionais de saúde são pintados como heróis (Dmitri Lovetsky/AP)

Familiares na mesma casa, amigos no mesmo jantar, mas só alguns ficam infetados, quando todos tiveram a mesma exposição. O que explica que algumas pessoas nunca tenham sido contagiadas com a covid-19, mesmo tendo tido vários contactos de risco? Especialistas decifram o que se sabe

Numa altura em que Portugal tem uma parte da população infetada com covid-19 (cerca de 5%), há outros 5% da população que são “contactos em vigilância”. Muitos desses contactos, considerados de risco, são pessoas que coabitam com outros infetados, mas que, de alguma forma, acabam por nunca apanhar o vírus. Esta é uma das questões que tem intrigado a ciência. Ou seja, a ideia de que pode haver, por várias razões, uma maior capacidade de resistir ao contágio. Será apenas sorte, ou será que há pessoas imunes aos Sars-CoV2?

Embora já tenham sido publicados vários estudos sobre o assunto, os cientistas continuam sem conseguir responder com todas as certezas. Segundo os especialistas, não existem pessoas imunes. Mas, antes,  um conjunto de fatores que pode terminar uma maior facilidade ou dificuldade em ser contagiado, seja a nível imunitário, seja pela proteção, ou até pela sorte.

É no sistema imunitário que pode estar grande parte do segredo. Segundo o presidente da Sociedade Portuguesa de Alergologia e Imunologia Clínica, Manuel Branco Ferreira, as diferenças nos sistemas imunitários das várias pessoas serão uma das grandes respostas para que algumas não apanhem o vírus tão facilmente.

De acordo com o especialista, para se defender o organismo o sistema imunitário conta com dois tipos de imunidade: a adquirida, que se consegue através da vacina e da própria infeção, e a inata, que se ganha à nascença.

As duas são relevantes na luta contra o contágio, explica o médico. No entanto, é naquela que cada um tem desde que nasce - a inata - que pode estar a chave para esta questão do contágio não afetar todos de igual forma. Isto porque nada se pode fazer para a melhorar. Depende da qualidade das várias componentes celulares do sistema imunitário, como os interferons, linfócitos T, linfócitos NK ou até os macrófagos. São todos estes que podem explicar como diferentes pessoas podem ter diferentes contactos com o vírus.

Aqui, o especialista destaca o papel dos linfócitos NK (NK de Natural Killer – assassino natural), que, como o nome indica, matam as infeções. O que pode acontecer em pessoas que não são contagiadas é que, tendo uma maior quantidade de linfócitos NK, matam a infeção antes que ela se consiga reproduzir ao ponto de a pessoa ficar infetada:

“Há um número de cópias [do vírus] que é eliminado rapidamente. Um vírus entra e infeta mil células. Se elas morrerem, o vírus morre com as células. Há entrada do mirco-organismo, mas não há infeção”.

Além disso, Manuel Branco Ferreira diz que também os interferons – células do sistema imunitário – são importantes, uma vez que estimulam as células na luta contra infeções virais, ao ponto de, em certos casos, o fazerem tão eficazmente, que a pessoa nunca chega a ficar infetada.

“Por isso é que há pessoas que nunca tiveram uma infeção na vida”, refere, ressalvando que, no caso da covid-19, esta ainda é uma hipótese “especulativa”, sendo necessário mais estudos. Na prática, algumas pessoas podem ter estas células “mais ativadas do ponto de vista imunitário”, o que ajuda a responder “mais rapidamente”.

O imunoalergologista avança ainda outra hipótese, e que está centrada nas células recetoras. Aqui, uma pessoa pode ter menos destes componentes, o que faz com que o vírus tenha menos espaço para entrar no organismo humano, nomeadamente no sistema respiratório: “Estas pessoas têm menos portas de entrada para o vírus”.

O papel de quem transmite

Além do sistema imunitário, há outros fatores que podem contribuir para que haja quem nunca tenha testado positivo. O pneumologista Filipe Froes explica que há dois lados a ter em conta: o emissor e o recetor. Ou seja, a pessoa que transmite e a pessoa que pode ser contagiada, respetivamente. No primeiro ponto, e segundo o também coordenador do Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos, podem existir variados fatores: dimensão da carga viral, duração dessa carga infeciosa ou até o estado vacinal.

Já do lado do recetor, o especialista aponta duas caraterísticas base: imunológicas e estado vacinal.

Assim, Filipe Froes não tem dúvidas: uma pessoa com esquema vacinal completo tem menor probabilidade de ser infetado com covid-19, mas também de transmitir, uma vez que a inoculação “reduz a carga viral e o intervalo de tempo de contágio”.

“Uma pessoa que tem uma carga viral elevada pode ter sido vacinada há mais tempo”, refere.

Já Miguel Prudêncio, investigador do Instituto de Medicina Molecular, não exclui o fator sorte. Mas diz que o facto de haver pessoas que parecem não ter tanta facilidade a apanhar o vírus pode ser uma questão multifatorial. Desde logo, e como hipótese mais credível, defende que há alguns, mesmo que de forma inconsciente, estão mais protegidos fisicamente. Por exemplo, numa casa com cinco elementos, em que apenas um não foi infetado, pode significar que cumpriu melhor a higiene sanitária: talvez se tenha desinfetado mais vezes e utilizado sempre a máscara; ou pode até nem ter saído do quarto.

“As pessoas pensam que, se vivem todas na mesma casa, estão igualmente expostas. Não é necessariamente assim”, aponta o especialista, que dá importância à localização das diferentes pessoas na habitação.

Mas aqui também entra o lado do organismo. “Há pessoas que, por caraterísticas intrínsecas, têm mais dificuldade em contrair a infeção”, vinca Filipe Froes, acrescentando que o mesmo se verificou anteriormente noutros vírus, como o caso do HIV.

“Somos todos diferentes e reagimos de diferentes maneiras. Há quem seja mais resistente à infeção, mas ainda não sabemos as causas”, frisa Filipe Froes.

Também Miguel Prudêncio diz que não há pessoas iguais, lembrando, por exemplo, os jovens, que, de forma genérica, têm maior capacidade imunitária do que os mais velhos.

Outra hipótese que Miguel Prudêncio avança, e que pode ser mais remota, é a de algumas destas pessoas que não foram infetadas terem tido a infeção de forma prévia, sem que o saibam, porque estiveram assintomáticas e não foram diagnosticadas com o vírus. Assim, e caso essas pessoas estejam vacinadas, gera-se a tal “imunidade híbrida” (vacinação + infeção), que ajuda a prevenir o contágio, que, nesse caso, seria repetido.

Apesar de todos estes fatores serem parte da explicação para esta dúvida sobre o que leva algumas pessoas a nunca serem infetadas, ainda há que fazer mais investigações para se descobrir o que, ao certo, as protege mais do que às outras? Esse é um dos mistérios do sistema imunitário e a resposta do milhão de euros, que investigadores e especialistas continuam a tentar responder. Até porque, quando chegarem a essa conclusão, será muito mais fácil desenvolverem medicamentos e vacinas, não só para a covid-19, mas também para outros vírus e doenças. Ainda sobre a descoberta da causa que leva algumas pessoas a terem o sistema imunitário mais fortalecido, Manuel Branco Ferreira fala numa hipótese de futuro, algo que poderemos ver daqui a "20 ou 30 anos", a terapêutico-génica, que poderá ser crucial na mitigação de várias doenças.

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