Do Irão à Turquia: o que a rebelião síria pode significar para o equilíbrio de poderes no Médio Oriente

CNN , Mostafa Salem
8 dez 2024, 09:53
Rebeldes festejam controlo do aeroporto de Hama (Ghaith Alsayed/AP)

As partes interessadas a nível mundial têm agora de contar com o impacto geopolítico de uma ofensiva rebelde liderada por um grupo islamista na Síria, que pode potencialmente ameaçar o domínio do presidente Bashar al-Assad sobre o país.

Os rebeldes sírios fizeram um avanço relâmpago no norte do país, tomando duas grandes cidades: Alepo, a segunda maior cidade, e Hama, uma cidade estrategicamente importante que se situa numa rota de abastecimento vital. Os rebeldes afirmam que vão avançar mais para sul, até Homs, a pouco mais de 160 quilómetros da capital síria, Damasco.

“Quando falamos de objetivos, o objetivo da revolução continua a ser derrubar este regime. Temos o direito de utilizar todos os meios disponíveis para atingir esse objetivo”, declarouAbu Mohammad al-Jolani, antigo combatente da Al Qaeda que lidera agora a rebelião, numa entrevista à CNN, na quinta-feira.

Embora Assad tenha muitos inimigos na região e fora dela, a sua queda não seria bem recebida por todos.

Os Estados ocidentais e árabes, bem como Israel, gostariam de ver a influência do Irão na Síria reduzida, mas nenhum deseja que um regime islamista radical substitua Assad. Para a Rússia, a queda da Síria pode significar a perda do seu aliado mais próximo no Médio Oriente e minar a sua capacidade de projetar poder enquanto trava uma guerra na Ucrânia. Para o Irão, poderia abalar o seu chamado Eixo de Resistência, composto por Estados aliados e milícias.

Eis como os acontecimentos na Síria poderão afetar os principais intervenientes no Médio Oriente:

Estados árabes

Os avanços dos rebeldes na Síria marcam o primeiro teste real ao empenhamento dos poderosos Estados árabes em reconciliarem-se com Assad.

No auge da guerra civil síria, os Estados árabes sunitas, incluindo as potências regionais Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, romperam os laços com o regime de Assad, aliado do Irão, tentaram isolá-lo e apoiaram os grupos da oposição que tentavam derrubá-lo, vendo nisso uma oportunidade para travar a influência regional de Teerão.

Mas Assad, apoiado pela Rússia, pelo Irão e pelo Hezbollah libanês, sobreviveu e recuperou o território perdido para os rebeldes. Sob pesadas sanções dos EUA, a Síria transformou-se naquilo a que alguns especialistas chamam um “narco-Estado”, alimentando uma crise de droga nos países vizinhos.

A nova realidade da Síria levou as nações árabes a estender a mão ao regime de Assad e, nos últimos anos, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos lideraram os esforços para a sua reabilitação regional e internacional. Em 2023, o regime sírio foi readmitido na Liga Árabe.

Mais de uma década depois de terem apoiado a oposição síria, os Estados árabes do Golfo, incluindo a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, estão agora ao lado de Assad, que enfrenta mais uma vez uma rebelião.

“Em 2011, um grande número de países chegou rapidamente à conclusão de que seria melhor para eles se Assad caísse... mas os sauditas, os emiratis e outros países da região veem agora uma situação desafiadora e desestabilizadora para eles se Assad cair nesta altura”, indicou Trita Parsi, vice-presidente executiva do Quincy Institute, com sede em Washington DC.

Na cimeira anual do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), realizada no fim de semana passado, os líderes árabes do Golfo apelaram à preservação da integridade territorial da Síria, declararam respeitar a sua soberania e rejeitaram a interferência regional nos seus assuntos internos. Em contrapartida, a declaração após a cimeira do CCG de 2011 apelava a Assad para que “parasse imediatamente a máquina de matar, pusesse fim ao derramamento de sangue e libertasse os detidos”.

Os líderes árabes do Golfo participam na 45.ª cimeira do Conselho de Cooperação do Golfo no Palácio Bayan, na cidade do Kuwait, a 1 de dezembro. Amiri Diwan do Estado do Qatar/Anadolu/Getty Images

“Muitos destes países poderão querer tirar partido da situação para melhorar a sua própria posição na Síria, em particular com o Irão, mas para isso é necessário que Assad fique enfraquecido, mas permaneça - uma posição muito diferente da que tinham anteriormente, quando estavam a atirar tudo contra ele para se livrarem dele”, acrescentou Parsi.

Irão

O Irão tem utilizado a Síria para ampliar a sua influência regional através de grupos de representantes no país. A República Islâmica, juntamente com o seu mais formidável representante, o Hezbollah, tem-se revelado fundamental para manter Assad no poder, ajudando as forças governamentais sírias a recuperar o território perdido e enviando os seus próprios comandantes do Corpo de Guardas da Revolução Islâmica (IRGC) para aconselhar os militares de Assad.

Depois de o grupo militante palestiniano Hamas ter lançado um ataque contra Israel, em outubro do ano passado, o Hezbollah começou a trocar tiros com Israel, o que levou a uma retaliação israelita que assassinou os principais responsáveis do grupo e debilitou significativamente as suas capacidades. Como resultado, o Hezbollah retirou as suas forças da Síria para se concentrar na sua guerra contra Israel, deixando Assad exposto, segundo os especialistas.

O presidente da Síria, Bashar al-Assad, reúne-se com o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão, Abbas Araghchi, em Damasco, Síria, a 1 de dezembro. SANA/Reuters

Na Síria, Israel tem visado sistematicamente os iranianos e as rotas de abastecimento utilizadas para transferir armas para os seus representantes. A queda de Alepo e, potencialmente, de outras cidades que fazem fronteira com o Líbano poderá perturbar ainda mais essas rotas, colocando o Irão numa posição difícil. Na semana passada, o ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano, Abbas Araghchi, disse à agência noticiosa Al Araby Al Jadeed, do Qatar, que Teerão consideraria a possibilidade de enviar tropas para a Síria se o regime de Assad o solicitasse. No entanto, a escalada da guerra na Síria poderia prejudicar os esforços do Irão para prosseguir a diplomacia com o Ocidente e os Estados árabes.

Perder a Síria seria “um grande golpe” para o Irão, assumiu Parsi. “O investimento que os iranianos fizeram na Síria é muito significativo, é uma importante ponte terrestre para o Líbano, mas também a aliança que os iranianos têm com o regime de Assad tem durado ao longo da história da República Islâmica”.

Segundo Parsi, o Irão pode também utilizar os seus representantes na região como alavanca em potenciais conversações com a nova administração Trump.

“Se o Irão perder demasiado da sua posição na região, será demasiado fraco para negociar? Mas se ripostar para tentar manter o máximo possível dessa posição, arrisca-se a escalar a guerra ao ponto de a diplomacia deixar de ser possível? “Estão a caminhar para um equilíbrio delicado”, problematiza.

Israel

Também Israel se encontra numa posição difícil. Assad, que vê Israel como um inimigo, não tem representado uma ameaça direta para o país, optando por não responder aos ataques israelitas regulares na Síria ao longo do último ano. Mas o regime permitiu que o seu território fosse utilizado pelo Irão para abastecer o Hezbollah no Líbano.

Hadi al-Bahra, um líder da oposição síria que representa os grupos anti-Assad, incluindo o Exército Nacional Sírio (SNA), apoiado pela Turquia, disse que os rebeldes se sentiram encorajados a avançar para Alepo na semana passada, depois de Israel ter debilitado o Hezbollah e enfraquecido a presença do Irão na região.

“Devido à guerra no Líbano e à diminuição das forças do Hezbollah, o regime (de Assad) tem menos apoio”, afirmou Al Bahra numa entrevista à Reuters, acrescentando que as milícias apoiadas pelo Irão também têm menos recursos e que a Rússia está a dar menos cobertura aérea às forças de Assad devido ao seu ‘problema com a Ucrânia’.

O grupo que lidera a rebelião, no entanto, é o Hayat Tahrir Al Sham (HTS), cujo líder Abu Muhammad Al Jolani é um antigo combatente da Al Qaeda com uma ideologia islamista que se opõe a Israel.

“Israel está entre o Irão, os seus representantes e os rebeldes islâmicos da Síria”, explicou à CNN Avi Melamed, antigo funcionário dos serviços secretos israelitas. “Nenhuma das opções é boa no que diz respeito a Israel, mas, por enquanto, o Irão e os seus representantes estão enfraquecidos, o que é bom”.

Israel tem de se certificar que a ofensiva não evoluirá para um “novo desafio” colocado pelo HTS e pelos rebeldes sunitas que lideram a ofensiva na Síria, acrescentou.

Rússia

Assad estava numa maré de azar na Síria até à intervenção do presidente russo, Vladimir Putin, em 2015. Sem o apoio aéreo russo, a recaptura de Alepo em 2016, um ponto de viragem para o presidente sírio, teria sido difícil, senão impossível.

O Kremlin afirmou esta semana que vai “certamente continuar a apoiar” Assad, enquanto os jatos russos intensificam os ataques às forças da oposição no norte da Síria.

Nicole Grajewski, membro do Programa de Política Nuclear do Carnegie Endowment for International Peace, com foco na Rússia, disse que o regime de Assad foi apanhado de surpresa durante a última ofensiva dos rebeldes, e que estes podem ter aproveitado a distração da Rússia com a Ucrânia para tomar terras na Síria.

Pilotos da força aérea russa sobem para o seu caça na base aérea de Hemeimeem, na Síria, a 22 de outubro de 2015. Vladimir Isachenkov/AP

Moscovo não enviou um grande número de forças para a Síria e pode ainda ser capaz de a apoiar, acrescentou, mas a capacidade da Rússia para mobilizar forças seria difícil, dada a rapidez com que os rebeldes estão a avançar no norte da Síria.

No geral, o avanço dos rebeldes com a ajuda da Turquia é uma “grande ameaça para a Rússia”, disse Grajewski à CNN. “A Rússia investiu demasiado capital em Assad e a perda da Síria seria uma perda ainda maior para o seu estatuto de grande potência e para a sua capacidade de manobra no Médio Oriente”.

Turquia

A Turquia tem tentado distanciar-se das ações dos rebeldes no norte da Síria, mas é o principal apoiante do Exército Nacional Sírio, um dos grupos que está a impulsionar a ofensiva.

Ancara também representou a oposição nas negociações com a Rússia durante vários anos na última década, o que acabou por conduzir a um acordo de cessar-fogo em 2020 entre as partes na Síria que cada uma delas apoia.

Apesar do seu apoio às forças da oposição, a Turquia não excluiu a possibilidade de uma aproximação à Síria. O presidente Recep Tayyip Erdogan apelou a uma reunião com Assad, o homem que em tempos rotulou de terrorista, para restabelecer as relações. Assad tem-se recusado a encontrar-se com ele enquanto a Turquia continuar a ocupar partes do seu país.

A Turquia também tem procurado uma solução para os cerca de 3,1 milhões de refugiados sírios que acolhe - mais do que qualquer outro país. Os refugiados tornaram-se um dos principais pontos de discórdia na Turquia, dando frequentemente origem a motins anti-sírios e a apelos à deportação em massa por parte dos partidos da oposição.

Até há pouco tempo, a situação na Síria era vista na Turquia como “o regime está a ganhar, a oposição está a perder”, com o eixo Irão-Rússia a definir os desenvolvimentos no terreno, indicou Galip Dalay, consultor sénior da Chatham House, um grupo de reflexão em Londres. Mas o recente impulso dos rebeldes veio alterar essa dinâmica de poder.

“Agora é claro que os turcos querem entrar numa negociação, mas mostrando a Assad que ele está a entrar na negociação a partir de um ponto de fraqueza. Se as negociações se realizarem agora, a única forma de as levar a algum lado é se Assad fizer concessões reais e não concessões cosméticas”, disse Dalay à CNN.

Outro objetivo da Turquia é fazer recuar os grupos rebeldes curdos localizados ao longo da fronteira entre a Turquia e a Síria e criar uma zona tampão. Erdogan há muito que se opõe ao nacionalismo curdo e deixou claro que o seu objetivo final é eliminar o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), um grupo militante e político curdo de extrema-esquerda com base na Turquia e no Iraque que tem lutado contra o Estado turco há mais de três décadas.

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