Derrotada: Rússia. Derrotado ainda maior: "Eixo do Terror". Bilhete dourado: Israel. Aliviada: Turquia. Quem deve aproveitar: UE

10 dez 2024, 22:00
Sírios celebram queda do regime de Bashar al-Assad (EPA via LUSA)

ANÁLISE || Já há ilações a tirar da deposição de Bashar al-Assad na Síria, incluindo quem mais ganha e perde com isso no imediato. Entretanto, há bons sinais: a vandalização dos santuários xiitas não foi permitida. Mas há esta dúvida: a milícia que agora lidera a Síria vai continuar a ser considerada terrorista pelos países europeus e EUA? No Reino Unido já se "precipitaram" a responder a isso. Outra nota: "É perigoso os países europeus decidirem precipitadamente suspender o estatuto de asilo dos sírios"

Ainda é cedo para antecipar o que vai acontecer na Síria no rescaldo de uma ofensiva rebelde que em apenas dez dias depôs a longa ditadura da família Assad. É certo que “estamos, sem dúvida, a assistir ao fim de uma era com a queda do último dos regimes baathistas pan arabistas da junta nasserista no Médio Oriente”, refere à CNN Portugal Sarah Zaaimi, especialista em assuntos do Médio Oriente do Atlantic Council – o que “significa o fim de toda uma ideologia repressiva que reinou na região durante quase 70 anos”. Mas é preciso esperar para ver o que acontece a seguir.

“As próximas semanas serão cruciais para [os rebeldes] demonstrarem liderança na cena internacional e para dar garantias aos seus vizinhos imediatos, como a Turquia e Israel, mas, sobretudo, aos principais atores internacionais, como os EUA e a Rússia, de que o seu novo projeto de Estado é sustentável e digno de confiança e não uma nova iteração das entidades terroristas Al-Qaeda ou ISIS.”

Após anos a apoiar a Síria de Bashar al-Assad, que chegou ao poder há 24 anos após outros 30 ao leme do pai - Hafez al-Assad -, os russos e os iranianos, grandes aliados do regime sírio, deram por si “desgastados pelas suas próprias batalhas e pela guerra de cálculo geoestratégico” a ser combatida noutras partes da região e não puderam “continuar a sustentar uma guerra dispendiosa e distópica na Síria, especialmente porque Assad não mostrou qualquer liderança nem vontade de se envolver em reformas substanciais reais para estabilizar o seu país”.

Com a fuga da família Assad para parte incerta (Rússia?), os analistas desdobraram-se em antevisões e comparações com outros países mergulhados no caos após o eclodir da Primavera Árabe, no final de 2010. Um dos grandes receios era que a ofensiva deixasse um “vácuo de poder” em Damasco, cidade de redobrada importância estratégica quer para países vizinhos, quer para o resto da comunidade internacional. Mas Zaaimi é mais cautelosa e otimista do que outros especialistas.

“Não creio que venha a existir um vazio de poder em Damasco, tendo em conta a primeira série de medidas tomadas pelos rebeldes da oposição, a começar por terem apelado à unidade nacional, perdoando os combatentes do exército sírio, protegendo os locais de património das minorias e abrindo caminho a uma transição pacífica”, ressalta a analista do Centro Rafik Hariri. “Os novos líderes do país mostraram que aprenderam com os erros do passado e planearam meticulosamente a tomada de poder – e agora precisam de demonstrar a sua capacidade de conter quaisquer revoltas regionais ou de minorias num contexto étnico e sectário altamente fragmentado.”

Queda de Assad filho põe fim ao "último dos regimes baathistas pan arabistas da junta nasserista no Médio Oriente” e a 13 anos de uma sangrenta guerra civil na Síria foto CNN

Com os temores de um “vácuo de poder” vieram inevitavelmente as comparações com a Líbia, um país entregue a lutas sectárias violentas entre dois governos rivais e onde os rebeldes Houthis, apoiados pelo Irão, continuam a dar cartas. Mas essas comparações são “essencialistas”, defende Zaaimi – leia-se, demasiado básicas tendo em conta o mosaico de poder na Síria. “O contexto sírio é muito mais complexo do ponto de vista étnico, ideológico e sectário. Enquanto a Líbia é um país homogéneo, com uma população reduzida e vastos territórios desérticos, onde os atores lutam sobretudo por recursos e modelos de governação, a Síria é um país altamente povoado e urbanizado, rodeado de atores com interesses imediatos em Damasco, como a Turquia, o Iraque, o Líbano e Israel.”

Bom sinal: vandalização dos santuários xiitas não foi permitida

Os destinos na Síria estão agora nas mãos de uma milícia que em tempos foi filiada à Al-Qaeda mas que nos últimos anos se desvinculou do grupo extremista para adotar uma posição aparentemente mais moderada e inclusiva – o Hayat Tahir al-Sham (HTS), numa tradução livre Organização para a Libertação do Levante, liderado por Abu Mohammed al-Golani.

Um dia depois da chegada dos rebeldes a Damasco, e com os sírios a celebrarem nas ruas a queda de Assad após uma sangrenta guerra civil de 13 anos que vitimou mais de meio milhão de pessoas e levou mais de 6 milhões a fugir do país, um ministro britânico foi o primeiro a anunciar uma mudança de postura do Ocidente quanto ao HTS, que para já continua a integrar as listas de organizações terroristas dos países europeus e dos Estados Unidos. 

Foi, contudo, um passo precipitado da parte de Pat McFadden. Horas depois de ter dito à Sky News que o Reino Unido e outros países podiam retirar “rapidamente” o HTS das suas listas de grupos proscritos, o primeiro-ministro britânico ressalvou que “ainda é demasiado cedo” para tomar essa decisão. “Todos já vimos, noutras fases da história, quando pensámos que havia um ponto de viragem, que esse não era necessariamente o futuro melhor que se esperava”, disse Keir Starmer. “Temos de garantir que este caso é diferente.”

Julien Barnes-Dacey, ex-correspondente na Síria e atual analista político do European Council on Foreign Relations (ECFR), escreveu num email enviado à CNN Portugal que é preciso perceber que já há uma grande conquista que representa uma grande oportunidade: “Apesar de concentrados nos riscos, os europeus devem, antes de mais, concentrar-se na grande oportunidade que representa a morte política de Assad, reconhecendo que a queda do principal fator de instabilidade, da violência brutal e dos fluxos de refugiados da Síria saiu de cena”.

Com “prudência”, Sarah Zaaimi também se mostra otimista quanto ao futuro da Síria face às primeiras ações do HTS após a deposição de Assad. “Golani compreende que não se pode envolver em mais uma guerra civil distópica e que a gestão das minorias e o apelo à recuperação e à unidade nacional são a única forma de governar o país”, começa por defender. “As primeiras indicações foram muito positivas, por exemplo ao perdoar os combatentes de Assad, ao manter as estruturas governamentais e ao pedir a proteção do património cultural.”

Este último ponto marca um claro distanciamento do HTS em relação à Al-Qaeda e ao ISIS de há cerca de uma década. “Uma grande ameaça teria sido permitir a vandalização dos santuários xiitas de Sayyeda Zainab e Sayyeda Rukaya, uma vez que incidentes anteriores em 2015 levaram ao envolvimento de milícias iraquianas, libanesas e iranianas sob o pretexto de proteger os seus locais sagrados”, refere Zaaidi.

É preciso esperar para ver se a renovação do HTS ao leme de Golani é verdadeira ou "apenas um jogo para ganhar credibilidade internacional antes de voltarem aos seus velhos hábitos" foto DR

“Em vez disso, Golani apelou à proteção dos locais e ao respeito pelo património cultural e religioso. E mesmo as cidades alauitas tradicionalmente pró-Assad, incluindo Latakia, parecem aliviadas com o fim da era Assad, o que é uma indicação positiva de que as minorias podem querer deixar para trás quaisquer diferenças e envolver-se num processo de reconciliação nacional.”

Ainda assim, a analista do Atlantic Council continua “a ser prudente em fazer quaisquer prognósticos, dado o passado de Golani e de alguns dos seus aliados com ligações à Al-Qaeda e ao ISIS”. Como vários outros especialistas, assume que “isto pode ser apenas um jogo para ganhar credibilidade internacional antes de voltarem aos seus velhos hábitos – vamos esperar para ver”.

Zaaimi vê um outro sinal “muito positivo” na escolha do novo primeiro-ministro do “governo de salvação nacional” na Síria, Mohammed al-Bashir – “alguém próximo das instituições do Estado que é aceite pela maioria dos sírios”, que “já tinha liderado um esforço governamental que falhou”, em Idlib, o bastião do HTS durante a guerra civil, mas que “manteve boas relações com os rebeldes e com as minorias” e que “é sobretudo visto como um pedagogo e como uma figura neutra”.

“A principal cadeia de abastecimento do Eixo do Terror foi comprometida”

Dado o complexo mosaico de poder na Síria, é importante analisar também o contexto geopolítico da deposição de Assad, que também fornece algumas pistas sobre o que pode acontecer a seguir. Para Sarah Zaaimi, “a Rússia é um dos perdedores desta nova viragem, sobretudo se perder o acesso ao Mediterrâneo e ao Médio Oriente e se as suas duas bases militares no país forem encerradas”.

O “maior perdedor”, contudo, “é o Irão, que acaba de perder um aliado fundamental” que o ligava ao Iraque ao Líbano, país onde o regime dos aiatolas continua a apoiar o Hezbollah. “A principal cadeia de abastecimento de armas e de mão de obra entre os países do chamado Eixo do Terror foi comprometida e interrompida pela queda de Assad – e o Hezbollah, por extensão, ver-se-á isolado e enfraquecido sem o apoio da Síria.”

Em contrapartida, os dois grandes vencedores são óbvios: Turquia e Israel. “A Turquia pode aliviar o fardo dos refugiados sírios e reposicionar-se como o patrono neo-otomano da região” e, com o volte-face, Israel recebe “um bilhete dourado para acabar com a presença do Irão na região e reforçar a sua presença nos Montes Golã e mais além.”

Aproveitando a queda de Assad, Israel já está a avançar para lá dos Montes Golã ocupados foto Matias Delacroix/AP

As movimentações para redefinir o equilíbrio de poderes na Síria já estão em curso. Esta segunda-feira, horas depois da fuga de Assad, os EUA atingiram alvos associados ao Daesh no centro do país e a Turquia atacou as forças curdas apoiadas pelos EUA, com media regionais a noticiarem um acordo para a retirada das forças curdas da cidade de Manbij, no norte do país, na sequência de avanços do Exército Nacional Sírio, outro grupo rebelde associado ao HTS e apoiado por Ancara.

Já Israel enviou forças para uma zona-tampão para lá dos Montes Golã ocupados e para antigas posições militares sírias no Monte Hermon, no que Telavive descreve como uma “medida temporária”, prometendo manter ataques aéreos a locais-chave do antigo regime associados a mísseis e armas químicas, incluindo ao porto de Latakia. Segundo o Observatório Sírio para os Direitos Humanos, grupo sediado no Reino Unido que acompanha a situação na Síria desde o início da guerra civil em 2011, em 48 horas Israel “destruiu as mais importantes instalações militares da Síria” em cerca de 250 ataques aéreos.

Para Julien Barnes-Dacey, a queda de Assad representa, entre outras, uma oportunidade para “os governos europeus intensificaram o contacto com a Turquia, que tem influência sobre os rebeldes, para pressionar no sentido de uma abordagem inclusiva, para oferecer aos curdos sírios uma via política de integração nas novas estruturas do Estado sírio que responda quer às suas necessidades, quer às preocupações turcas relativamente à autonomia curda”.

Contra a Rússia de Putin, cujos interesses geoesratégicos saem danificados com a queda de Assad, a Turquia de Erdogan é das que mais têm a ganhar - e a Europa deve "aproveitar" o momento para uma aproximação a Ancara que garanta os seus interesses mas também os dos curdos foto AP

Isso reveste-se de grande importância se se considerar também a situação dos seis milhões de sírios que fugiram para outros países em mais de uma década, três milhões dos quais vivem atualmente na Turquia. No imediato, este é um dos pontos mais sensíveis face à nova constelação de poderes na Síria, agora que vários autarcas da oposição turca estão a lançar campanhas de repatriamento de sírios e também agora que vários países europeus, entre os quais Alemanha, Noruega, Itália, Áustria e Países Baixos, decidiram travar os processos de asilo a cidadãos sírios, com França a indicar que pretende seguir o mesmo passo em breve.

Questionada sobre estas decisões, Sarah Zaaimi invoca a mesma “prudência” que todos devem exercer neste momento em relação ao HTS e ao futuro da Síria ao seu leme. “É perigoso os países europeus decidirem precipitadamente suspender o estatuto de asilo dos sírios”, refere a analista do Atlantic Council. “É demasiado cedo para compreender o modelo de governação e os planos dos novos líderes do território. A Europa pode estar a enviar os sírios para outra iteração do Daesh e da Al-Qaeda. Recomendo que se deixe assentar a poeira e se espere para perceber o que acontece a seguir no país.”

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