Mais de 400 médicos saíram do Estado desde o fim do estado de emergência. E não só por dinheiro. “Ninguém sai do SNS de ânimo leve”

23 nov 2021, 07:00
Edson Oliveira

Mais de 400 médicos abandonaram os hospitais públicos desde que, a 1 maio, terminou a proibição de sair então imposta no estado de emergência. Cinco médicos contam o que os levou a trocar o sistema público pelo privado. Não foi só dinheiro

Nos meses em que a pandemia colocou os hospitais públicos à beira da ruptura, os médicos internistas Pedro Azevedo, 36 anos, e Catarina Mota, 39 anos, passaram os dias a tratar doentes covid. A falta de condições e de profissionais, o excesso de horas extra e o fraco investimento nos hospitais foram suficientes, explicam, para os levar a trocar o sector público pelo privado.

Não foram os únicos. Segundo dados oficiais da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), a que a CNN Portugal teve acesso em primeira mão, entre maio e outubro um total de 404 médicos rescindiu contrato com o Estado.  

Foi a 1 de maio que terminou a proibição de saída de médicos do sector público, então imposta por causa do estado de emergência. Em seis meses, em média, dois médicos desistiram do Serviço Nacional de Saúde (SNS) por dia. Entre estes, muitos de Medicina Interna, desgastados com a sobrecarga das urgências que a covid-19 veio agravar.  Para grande parte dos médicos não foi o dinheiro que os motivou a trocar o SNS pelo privado.

Os dados da ACSS mostram que o mês com mais pedidos foi precisamente de maio, com 104 rescisões. Não existem ainda dados disponíveis para novembro, havendo ainda pedidos de saída pendentes. É o caso da internista Catarina Mota, médica com contrato até ao final deste mês: abandonará o SNS dentro de dias, mais precisamente o Hospital de Santa Maria - o maior do país e de onde esta segunda-feira, 22 de novembro, os chefes da equipa de urgência cirúrgica demitiram-se em bloco, 

Mês Desvinculações
Maio 104
Junho 48
Julho 78
Agosto 55
Setembro 77
Outubro 42

Catarina Mota, também professora da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, pensou em sair do SNS há três anos. Mas a pandemia adiou a decisão: “Já na altura era insustentável manter-me no SNS", conta. "Surgiu a pandemia e a ideia caiu por terra, porque todo o trabalho depois desenvolvido consumiu-nos de tal forma que toda a nossa vida foi adiada”, explica, culpando a falta de condições pela sua opção de rumar agora para um hospital privado. Segundo a médica, a decisão "foi difícil e muito pensada" mas a desilusão e frustração pesaram mais.

“Atualmente a disponibilidade dos serviços é nula, porque não há recursos humanos. O trabalho é mal pago; há trabalho não pago e descanso que não é devidamente gozado. Fazemos muito mais horas que o que devíamos, com riscos: riscos para os doentes e para nós. Não conseguimos fazer o trabalho de cinco pessoas”, lamenta a médica que estava ligada àquela instituição há 20 anos. Primeiro como aluna na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, depois como interna e especialista do serviço de Medicina Interna do Santa Maria.

Anos em que segundo a médica foi acumulando desgaste e revolta. Cansada, diz que as "milhões de horas"  necessárias a impedem de ter uma vida familiar. E relembra que se tem assistido a uma diminuição no investimento público, nomeadamente desde a chegada da Troika, em 2011, naquilo que apelida de “catástrofe financeira no SNS”. Ao mesmo tempo, sublinha que estão montadas barreiras no SNS para a inovação, o que é desmotivador.

E falta tempo ou disponibilidade para uma formação adequada, complementa: “A maior parte de nós tem interesse na atividade académica, em dar aulas, em fazer atividade científica, mas não temos tempo, não temos reconhecimento das instituições”.

O "urgenciocentrismo" e um problema enraizado

Pedro Correia Azevedo abandonou o SNS há cinco meses. Saiu do do Hospital Garcia de Orta, onde era assistente hospitalar de medicina interna e chefe de equipa de urgência, e em julho passou a ter contrato com a CUF - hospital privado do grupo José de Mello Saúde.

À frustração do serviço que ia fazendo juntou-se uma oportunidade profissional, que hoje lhe permite fazer o que mais gosta, com o tempo necessário, sem que para isso tenha de abdicar de tempo em família. Está neste momento, aliás, em licença de paternidade. "O número de horas extraordinárias que se pede aos médicos está muito acima daquilo que permite o bom equilíbrio entre a vida profissional e pessoal - chegamos a ter escalas com mil horas extraordinárias por ano”, diz.

O médico queixa-se da falta de articulação no SNS, assumindo desgosto e frustração por ter deixado o serviço público, que, segundo diz, está refém das urgências.  Uma situação que intitula de "SNS urgenciocêntrico”, o que se agravou com a pandemia

“Os serviços estão carregados, sem recursos humanos para dar resposta”, avisa, considerando que  há um “recorrente recurso às urgências que dificulta o trabalho dos hospitais”. Um sistema “demasiado centrado na capacidade das urgências, em vez de estar focado nos doentes”.

No seu caso, não foi o valor do vencimento que o levou a rescindir contrato.“O salário não é tema, é preciso tempo para projetos". 

Antes da pandemia já havia desilusão, tendo muitos jovens médicos começado a abandonar lugares no SNS. Um cenário bem diferente do passado, garante, quando nenhum profissional queria abandonar um lugar considerado como o caminho para uma carreira médica de sucesso.

"Sair foi a melhor decisão que tomei"

“Olhando para trás, foi a melhor decisão que tomei". O neurocirurgião Edson Oliveira, que parecia ter uma carreira promissora no Hospital de Santa Maria, também trocou o sector público pelo privado. Ao contrário de muitos colegas, fê-lo antes da pandemia. A 18 de março de 2020 foi decretado o estado de emergência, mergulhando o país num longo período de confinamentos e de combate à pandemia de covid-19. Como forma de assegurar a melhor resposta possível no SNS, o Governo suspendeu a desvinculação de todos os profissionais do setor.

“Ninguém sai do SNS de ânimo leve”, garante Edson Oliveira, 39 anos, que além de se dedicar à neurocirurga dá aulas na Faculdade de Medicina de Lisboa.

Um dos motivos que  o levou o sonho de desenvolver um projeto pessoal na área da Medicina Aeropacial  Edson Oliveira, que entretanto mudou também para a CUF está, com outros especialistas, a criar  um centro de estudos de Medicina Aeroespacial, que vai ter uma colaboração da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa com a NASA e a Agência Espacial Europeia. Um projeto em que não poderia estar envolvido caso continuasse no SNS, explica.

“Senti que era impossível criar e desenvolver isto em tempo útil com o volume de trabalho no SNS. Na altura não me foi permitido fazer uma redução de horário”, explica, adiantando que para "a criação deste centro é preciso tempo e dedicação. "O projeto avançou e o centro de estudos vai ser inaugurado no próximo ano”, refere.

Segundo  o neurocirurgião, que foi presidente do Conselho Nacional do Médico Interno, está a assitir-se a uma “degradação progressiva do sistema”  público de saúde, Situação que testemunhou de perto nos últimos três anos de atividade no público,onde ao contrário do que sempre sucedeu, recursos tecnológicos são piores do que no privado.

Num olhar mais global, Edson Oliveira, que também é presidente da sub-região da Grande Lisboa da Ordem dos Médicos, afirma que o salário não esteve em causa para a saída, ainda que admita que muitos médicos “são mal pagos e fazem muitas horas de graça”: “A atividade privada é mais bem paga e dá-nos mais tempo. Começa a pôr-se em causa uma decisão que é extremamente difícil. Os médicos são cada vez mais maltratados e o espírito de missão começa a desvanecer-se”. No seu caso, não desistiu de acreditar naquilo que diz ser uma “missão”.

O tempo para a família

Joana Malho Rodrigues também é internista e estava cansada das urgências. “Há uns anos atrás não eram só internistas a fazerem as urgências, havia médicos de todas as especialidades. Fica difícil para nós, porque somos os únicos a fazer a urgência”, diz a médica, que deixou o SNS, para onde entrou em 2013. 

A especialista acredita que há um agudizar da situação para os internistas, que vão sendo cada vez mais direcionados para as urgências. Havia semanas, conta, em que fazia até 18 horas extra nestes serviços hospitalares. Pior eram as horas não previstas que tinha de fazer no serviço. Não só não eram pagas como tal, como iam para um banco de horas, do qual acabou por nunca ter compensação.“Saí do Hospital São Francisco Xavier com cerca de duas mil horas em bolsa de horas, horas extraordinárias que não são pagas”, diz.

A sua experiência no SNS começou no Hospital São Francisco Xavier mas depois passou para o Hospital de Cascais, tendo ainda trabalhado numa residência de apoio a idosos. Com a rescisão, a apenas 17 dias do inicio do estado de emergência, mudou-se para a CUF Tejo, onde hoje se sente mais realizada.

Para a sua saída, contribuiu também a falta de tempo para a família e para projetos profissionais contribuíram para a decisão.

Chegou a ter dias em que tinha de sair de Cascais, onde mora, por volta das 19:00. Chegava ao São Francisco Xavier para entrar no turno das 20:00, que fazia até às 08:00 do dia seguinte. Entre a passagem de serviço e a saída, mais uma hora. Acabava por chegar a casa muitas vezes por volta das 10:00. “A escola da minha filha começa às 08:30. Como é que se gere isto? Não consigo. Tenho apoio da minha família, mas quero ter tempo para a minha filha, para pelo menos lhe dar um beijo de manhã. Agora tenho esse tempo, nem tem comparação. Se eu conseguir ter mais tempo para mim e para a minha família, vou estar melhor”, aponta.

Quanto aos projetos profissionais, Joana Malho Rodrigues assume que gosta da área dos cuidados paliativos e de ajudar em serviços de cuidados primários, algo a que deixou de se dedicar nos últimos anos de carreira no público.

Para já, um regresso ao SNS é algo que está colocado de parte. Para a médica precisariam de ser feitas muitas mudanças. Além disso, não quer abdicar da sua atual "equilibrada" vida pessoal/vida profissional. “Consigo fazer isto porque consigo estar dedicada a isto. Não o conseguiria fazer se estivesse constantemente a pensar ‘hoje vou estar de banco’”, nota.

Embora soubesse de antemão que ia ganhar mais no serviço privado, afirma que o salário “foi a última coisa que pesou” na decisão que tomou.

Problemas iguais há vários anos

Depois de seis anos de internato no Hospital de Portimão, onde fez a especialidade de Medicina Interna, Ricardo Louro decidiu sair para o Hospital Particular do Algarve, onde encontrou aos 30 anos o que chama de “projeto aliciante”. No seu caso, a saída deu-se já há vários anos. Estava-se em 2014 quando quis, ao fim de apenas nove meses como especialista, trocar a carreira no sector público pelo privado. 

À distância, não se vê a regressar ao SNS, e diz-se “muito satisfeito” com o percurso que está a fazer. Sete anos volvidos, vê os mesmos problemas no SNS, entretanto exacerbados pela pandemia, “Há um stress pessoal associado à parte profissional”, o que funcionou como um “despoletar para a saída” de muitos profissionais, afirma.

“Existe muita exigência e poucas condições, isso leva a que as pessoas não consigam sentir-se realizadas com aquilo que fazem”, acrescenta

Sobre as diferenças salariais, admite que esta não é uma questão que se possa colocar de lado e defende para o público um “modelo de objetivos”, que o torne mais competitivo. Até porque como lembra: "No privado, se não se cumprirem objetivos, a remuneração pode ser inferior ao "público”.

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