Uma atriz negra a interpretar Cleópatra está a causar polémica. Mas "é mais provável que se parecesse com ela do que Elizabeth Taylor"

29 abr 2023, 18:00
A atriz Adele James como Cleópatra (DR/Netflix)

A minissérie "Rainha Cleópatra" estreia a 10 de maio na Netflix, mas a escolha de Adele James para protagonista já deu origem a diversas críticas de egípcios e historiadores que defendem que a rainha tinha a pele branca. Até já há um processo em tribunal

Depois de Claudette Colbert, Vivien Leigh, Sophia Loren, Elizabeth Taylor ou Monica Bellucci, cabe agora à atriz Adele James interpretar o papel de Cleópatra. A minissérie "Rainha Cleópatra" tem estreia marcada para 10 de maio, mas a polémica começou muito antes, assim que a Netflix lançou o trailer da série que retrata a famosa rainha do Egito como uma mulher negra.

Além da presença da atriz Adele James, logo no trailer surgem alguns historiadores a defender que Cleópatra tinha a pele escura - o que mostra bem como a produção tinha consciência de que este seria um dos temas principais da série. E não se engararam. As reações não se fizeram esperar. Nas redes sociais, alguns egípcios levantaram preocupações sobre racismo e colorismo no Egito moderno, um país árabe que tem uma parte da população negra. Também o ex-ministro egípcio das antiguidades, Zahi Hawass, um reputado egiptólogo, descreveu a representação da rainha Cleópatra como uma mulher negra como “falsificação de factos”, acrescentando que “isso é completamente falso": "Cleópatra era grega, o que significa que ela era loira, não negra”.

Finalmente, o advogado egípcio Mahmoud al-Semary entrou com um processo no Ministério Público contra os criadores da série, assim como contra a gestão da Netflix pela sua participação “neste crime”, pedindo mesmo a suspensão da plataforma no Egito, relata o jornal Egypt Independent. O advogado justifica: “A maior parte do que a plataforma Netflix exibe não está em conformidade com os valores e princípios islâmicos e sociais, especialmente os egípcios”. A queixa afirma ainda que a série contradiz a história egípcia, tratando-se de uma "falsificação" e acusa a produção de promover o afrocentrismo, com o objetivo de distorcer e apagar a identidade egípcia.

"A Rainha Cleópatra" é uma minissérie de quatro episódios que faz parte da série "Rainhas Africanas", que é produzida pela atriz Jada Pinkett Smith e relata a história das monarcas femininas do continente africano. A série, apresentada como um "docudrama", mistura cenas dramatizadas com entrevistas com especialistas.

Antes de Cleópatra, a primeira temporada acompanhou a vida da Rainha Njinga, que no século XVII governou dois territórios no que hoje é Angola, e foi uma importante política, diplomata e líder militar.  Jada Pinkett Smith, que além de produtora executiva também é a narradora da série, explicou a ideia: "Não costumamos ver ou ouvir histórias sobre rainhas negras, por isso foi muito importante para mim, assim como para minha filha e para para minha comunidade, poder conhecer estas histórias". A ideia é precisamente mostrar "as vidas destemidas e cativantes de rainhas que provavelmente não fazem parte do currículo académico ocidental".

Afinal, Cleópatra era grega ou egípcia?

A rainha Cleópatra nasceu em 69 a.C. na cidade egípcia de Alexandria e morreu em 30 a.C. na mesma cidade. Cleópatra VII reinou durante 21 anos e foi a última governante da dinastia Ptolomaica, uma dinastia de língua grega fundada pelo general macedónio Ptolomeu I, em 323 a.C., que havia sido um dos generais de Alexandre, o Grande, que conquistou o Egipto. Ela sucedeu a seu pai, Ptolomeu XII, em 51 a.C., quando tinha apenas 18 anos, e governou até morrer. Depois disso, o Egito caiu sob o domínio romano.

A maioria dos estudiosos hoje em dia concorda que a rainha provavelmente tinha pele clara devido à sua ascendência predominantemente macedónia com pouca ou nenhuma herança egípcia. No entanto, as lacunas na árvore genealógica de Cleópatra e as representações inconsistentes que existem da governante deixam espaço para o debate. Não há muitos elementos sobre a sua mãe e alguns historiadores dizem que é possível que a mãe, ou qualquer outra ancestral feminina, fosse egípcia ou de outro lugar de África.

"Não existe, de facto, consenso entre especialistas sobre o tom de pele de Cleópatra VII (a famosa Cleópatra), tal como não existe consenso sobre o tom de pele de, arrisco-me a dizer, nenhum monarca do Antigo Egipto", explica à CNN Portugal a historiadora Inês Torres, doutorada em Egiptologia pela Universidade de Harvard e Investigadora Integrada no CHAM – Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa. "Tal como no Egito de hoje, no Egito Antigo viviam pessoas de diferentes origens étnico-raciais, com diferentes práticas sócio-culturais, diferentes tons de pele, diferentes crenças, que falariam diferentes dialetos e, até, línguas. O Egito sempre foi um país cosmopolita", esclarece.

"Quando Cleópatra subiu ao trono do Egito, a sua família, apesar de ser originária da antiga Macedónia, já governava o Egipto há cerca de 300 anos", lembra Inês Torres. "Embora os Ptolomeus praticassem o incesto, também tiveram várias esposas de outras origens étnico-raciais. Assim, há quem sugira que a mãe de Cleópatra VII tenha sido uma dama egípcia de uma antiga família sacerdotal da cidade de Mênfis, e não uma dama de origem grega/macedónica."

O que é certo, afirma esta especialista, é que, "independentemente do seu tom de pele, Cleópatra VII identificava-se como a legítima monarca do Egito e como egípcia, apesar de os seus antepassados, que fundaram a dinastia Ptolomaica 300 anos antes, terem sido originários da Macedónia. E, igualmente importante, o povo do Egipto aceitava-a como sua monarca".

A atriz Adele James como Cleópatra (DR/Netflix)

Além disso, a raça não era discutida da mesma forma que é agora. "Perguntar se alguém era 'negro' ou 'branco' é anacrónico", disse a historiadora Rebecca Futo Kennedy, à revista Time, acrescentando que esse questionamento "diz mais sobre as preocupações políticas modernas do que tentar entender a antiguidade nos seus próprios termos". Até porque as classficações raciais surgiram apenas nos séculos XVII e XVIII. 

Também a historiadora portuguesa Inês Torres tende a concordar com esta tese: "A ideia moderna do que constitui uma pessoa branca ou uma pessoa mestiça ou negra (e as atuais implicações que advêm da sua racialização) não corresponde necessariamente à realidade do Antigo Egito, sobre a qual sabemos muito pouco. As nossas ideias modernas não podem ser utilizadas para definir a identidade étnico-racial da própria Cleópatra ou dos seus antepassados, até porque esta identidade, provavelmente, terá sido bastante fluida. O Egito Ptolomaico foi um período particularmente complexo e importante pelo seu multiculturalismo, especialmente no que diz respeito às interações sócio-culturais (incluindo entre indivíduos/comunidades de diferentes origens étnico-raciais). Estas interações tiveram impactos cruciais na formação das identidades individuais e colectivas da época, mas que nos são muito difíceis de avaliar hoje em dia, devido à natureza das fontes históricas e arqueológicas disponíveis".

"Podemos ter certeza de que não era branca como Elizabeth Taylor"

“A opção criativa de escolher uma atriz de herança mista para interpretar Cleópatra é um piscar de olhos ao debate, que dura há séculos, sobre a raça do governante”, explicou a Netflix. "Durante o seu reinado, a população do Egito era multicultural e multirracial. Era improvável que a raça de Cleópatra fosse documentada, e as identidades da sua mãe e avós paternos não eram conhecidas. Alguns especulam que ela era uma mulher egípcia nativa, enquanto outros dizem que ela era grega."

Num artigo de opinião publicado na Variety, a realizadora Tina Gharavi reagiu às acusações de "colorismo" e defende que não existe qualquer prova de que Cleópatra fosse efetivamente branca, pelo contrário, são muito maiores as hipóteses de ela ter a pela mais escura. "Então, Cleópatra era negra? Não sabemos ao certo, mas podemos ter certeza de que não era branca como Elizabeth Taylor", diz, referindo-se à mais famosa interpretação de Cleópatra, no filme realizado por Joseph L. Mamkewics  em 1963. E para o qual, é preciso lembrar, o responsável pela caracterização, Alberto De Rossi, decidiu não só criar uma intensa maquilhagem para os olhos de Taylor como também escureceu a pele da atriz, para que ficasse mais parecida com a rainha.  

Elizabeth Taylor como Cleópatra no filme de 1963

 "Temos de ter uma conversa sobre o nosso colorismo e a supremacia branca internalizada com a qual Hollywood nos doutrinou", afirmou Gharavi, lembrando outras atrizes que interpretaram o papel de Cleópatra - como Theda Bara (1917) e Monica Bellucci (2002) - e até as polémicas recentes sobre a escolha da americana Angelina Jolie ou da israelita Gal Gadot. Em ambos os casos, as produções foram acusadas de "blackwashing", com muitos a defenderem que teria sido preferível ter uma intérprete árabe ou africana para o papel.

"Acima de tudo, precisamos perceber que a história de Cleópatra é menos sobre ela do que sobre quem nós somos", afirma a realizadora. "Ao fazer a investigação percebi quão político seria escolher uma atriz negra." Gharavi concluiu, então, que mais importante do que ter uma atriz que fosse fisicamente parecida com a imagem que temos de Cleópatra era ter uma atriz que interpretasse a energia e o carácter daquela figura. "Isto significa que nós tínhamos de acertar. Começámos uma busca para encontrar a artista certa para trazer Cleópatra para o século XXI", contou. "Depois de inúmeras audições, encontrámos em Adele James uma atriz que poderia transmitir não apenas a beleza de Cleópatra, mas também sua força. O que os historiadores podem confirmar é que é mais provável que Cleópatra se parecesse com Adele James do que Elizabeth Taylor."

A atriz britânica de 27 anos, conhecida sobretudo pelo seu papel em "Casualty", série da BBC (2020-21), tem também experiência como argumentista e foi até recentemente autora de um podcast, "In the room with Adele James" - descrito pela própria como "um livro de memórias em tempo real sobre como sobreviver e prosperar como ator profissional. Ocasionalmente, com convidados da indústria". Cleópatra, mesmo antes de a série ter estreado, é já o mais falado papel da sua carreira.

O mito de Cleópatra: entre a lenda e a verdade histórica

Sem querer entrar em polémicas sobre a cor da pele de Cleópatra, o historiador Luís Manuel de Araújo, egiptólogo e professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, recorda à CNN Portugal que "sobre Cleópatra há mais lenda do que história". Isto porque "os romanos encarregaram-se de destruir e alterar tudo o que dizia respeito à rainha, dizendo o pior possível dela". 

"É muito difícil separar o mito da realidade no caso de Cleópatra, porque sabemos muito pouco sobre ela", afirma também a historiadora Inês Torres. "A grande maioria das fontes que chegaram até nós sobre a vida da última monarca do Antigo Egito foram escritas por autores clássicos que nunca conheceram Cleópatra, alguns dos quais viveram séculos depois dela. Estes autores clássicos, naturalmente, tinham uma agenda pessoal e política que tinha por objetivo defender os interesses de Roma, tendo retratado Cleópatra numa luz pouco ou nada positiva."

Há dois tipos de representações de Cleópatra que chegaram até nós, explica esta historiadora: por um lado, "as representações artísticas em estilo clássico ou helenístico, como vemos em algumas estátuas e moedas cunhadas durante o reinado dela"; por outro lado, "as representações de Cleópatra em estilo egípcio, como vemos noutras estátuas, estelas e em alguns templos egípcios".

No entanto, "em nenhum caso podemos afirmar que a representação da rainha era uma representação fiel da sua imagem. Isto porque a arte egípcia não era uma arte naturalista ou realista, o que significa que as representações de Cleópatra, tal como todas as representações de todas as pessoas no Antigo Egito, são idealizadas, não podendo ser interpretadas como retratos fiéis. Assim, não é possível saber qual a aparência de Cleópatra nem através das representações artísticas, nem através dos documentos escritos pelos autores clássicos, porque nenhum deles a conheceu pessoalmente".

"A morte de Cleópatra", pintura do artista austríaco Hans Makart, do século XIX (AP)

"O mito de Cleópatra VII foi inicialmente propagado por historiadores clássicos como Plutarco e Cássio Dio, que escreveram biografias da última monarca do Antigo Egito de forma altamente ficcionalizada", esclarece a egiptóloga Inês Torres. Assim, desde a Antiguidade Clássica até aos dias de hoje, "o mito de Cleópatra tem crescendo, sendo a sua vida reinventada e reimaginada com o passar do tempo, ao ponto de ser vista de formas completamente díspares. Cleópatra já foi retratada como símbolo de: vício e decandência; de uma monarca justa e bondosa; femme fatale; mártir do amor; mulher forte e inteligente; mulher fraca e manipuladora; símbolo da ocupação grega do Egipto; símbolo nacionalista egípcio; ícone feminista; e por aí fora".

Na opinião desta historiadora, "o apelo e o fascínio que temos por Cleópatra advém, precisamente, do facto de ela poder ser retratada de formas tão diferentes, de poder simbolizar aquilo que quisermos: no fundo, a forma como vemos Cleópatra diz mais sobre nós mesmos do que sobre ela". Mas a sua importância histórica é inegável, afirma. "Numa altura em que Roma se havia tornado o poder dominante no Mediterrâneo, Cleópatra lutou para manter a independência e o poder do Egito, até ser derrotada por Octávio Augusto. Mesmo num complexo contexto nacional e internacional, Cleópatra também contribuiu para as construções de vários templos, que era uma das principais funções dos monarcas egípcios."

"A importância de Cleópatra é indiscutível", concorda Luís Manuel de Araújo. "Entre o ano 50 aC e o ano 30 aC esta mulher manteve o Egito independente. Como? Primeiro, com o apoio de Júlio César, e depois com o apoio de Marco António, no tempo em que Roma ainda não era império. Até porque o império romano só começa depois de Octávio ter ocupado o Egito. É a riqueza do Egito que é a base da sustentação do império". 

Inês Torres recorda que, no século VII, João de Nikiu, um bispo copta (egípcio), descreve Cleópatra VII como "uma monarca bondosa, beneficiente, erudita e inteligente". Ou seja, "independentemente da sua importância para a história mundial, na memória cultural do Egito Cleópatra foi recordada como uma monarca amiga do povo", conclui.

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