Francisca voltou a ler, Daniela aventurou-se na cozinha. Há portugueses a testar a semana de quatro dias de trabalho (e a perceber que não é para todos)

8 out 2022, 14:00
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O Governo prepara-se para lançar o projeto-piloto da semana de quatro dias de trabalho, mas algumas empresas portuguesas já anteciparam a experiência com bons resultados

Há muito tempo que Francisca Galante não pegava num livro para ler. Não apenas por falta tempo, mas por causa do cansaço físico e psicológico que um dia-a-dia agitado impõe a uma jovem mãe trabalhadora: levanta-se às 6:30 para deixar a filha na creche, vai trabalhar e depois ainda leva a menina às atividades antes de regressar a casa. É assim todos os dias. Mas durante um mês, em agosto de 2021, esta rotina ganhou um travão. A especialista em pessoas e cultura organizacional viu a empresa para a qual trabalha experimentar a semana de quatro dias de trabalho sem cortes nos salários nem aumento de horas.

“Cada semana tinha um dia diferente de folga”, conta à CNN Portugal a especialista de 32 anos. E isso bastou para que, a nível pessoal, sentisse mais qualidade de vida. “Tive mais tempo para a minha família e, no meu caso, como foi o ano em que eu entrei na Doutor Finanças e não iria ter tantas férias, acabei por gozá-las quase na mesma porque ia para o Algarve de fim de semana prolongado”. Mas não só. Quando a folga extra calhava a meio da semana, Francisca conta que era também mais fácil organizar outros compromissos pessoais. “Ia arranjar as unhas, ia ao médico ou ao banco. Nesse dia em que não estava a trabalhar até dava jeito para preparar a gestão familiar, seja alimentação, roupa… assim não ando ao final do dia a fazer estas tarefas”.

“Senti-me menos cansada, quer fisicamente, quer psicologicamente”, afirma Francisca Galante.

Mas onde mais notou a diferença foi nas pequenas reconquistas. “Voltei a ler porque já não lia há muito tempo. E lembro-me de ao final do dia estar a brincar com a minha filha de forma mais mais presente e não por obrigação”, admite.

O aumento do bem-estar dos trabalhadores é um dos argumentos que tem sido mais utilizado pelos peritos na defesa da redução da semana de trabalho. Aliás, apesar de esta não ser uma ideia nova (os primeiros livros sobre o assunto têm já 50 anos), estudos recentes mostram que uma semana de trabalho de quatro dias aumenta também a produtividade e produz benefícios até a nível ambiental, refere a especialista em Recursos Humanos e professora na Universidade Europeia, Isabel Moço.

Se no início foi mais difícil gerir a nível profissional, “sobretudo porque não estávamos habituadas a ter de desligar”, depois, Francisca notou um aumento de produtividade no trabalho. “Estou mais descansada e fico mais tempo atenta, não preciso de tantas pausas para ganhar energia. Primeiro, não fumo, então não faço tantas pausas, mas noto que às vezes tenho esta necessidade - porque estou cansada - de ir à janela olhar para as árvores durante cinco minutos”.

O mesmo sentiu a colega Daniela Menezes, do departamento financeiro da Doutor Finanças, que faz um balanço “muito positivo” da semana de quatro dias. Mas, para issot, conta que teve de se organizar muito bem e esquematizar cada tarefa ao pormenor de forma a otimizar o tempo de trabalho. “Primeiro senti que os quatro dias eram os dias em que dava tudo, a produção aumentou, não me senti cansada, senti como se tivesse uma recompensa à espera”. E foi durante o tempo adicional de descanso que a jovem de 25 anos, que é atualmente responsável pela tesouraria do grupo e apoio de contabilidade, começou a experimentar outras coisas.

“Como tudo no trabalho estava muito organizado, tinha mais tempo para, por exemplo, ler, aventurar-me mais na cozinha, encontrar-me mais com amigos. Conseguia aproveitar muito bem esse dia e senti-me mais feliz e realizada”, conta Daniela Menezes.

Um modelo para todos?

A semana de quatro dias pode vir a ser uma realidade em mais empresaas. O Governo deve apresentar na próxima semana um projeto-piloto sem redução salarial e com diminuição horas. Mas será que esta medida se adapta à cultura de gestão portuguesa? 

Na Islândia, por exemplo, o projeto-piloto também manteve a remuneração e tal levou a um aumento de produtividade e da satisfação em relação ao bem-estar no trabalho. Mas em países como a Suécia, que fez um teste de forma diferente e já tem a legislação implementada, os resultados mostram que são sobretudo as microempresas que têm maior flexibilidade na gestão de pessoas e acabam por aderir mais facilmente a estes modelos.

Mas, no geral, ainda há muitas dúvidas sobre este tema, tanto das empresas como dos profissionais que trabalham com a gestão das pessoas. Se nós pensarmos numa grande corporação mais tradicional como temos muitas em Portugal, com milhares de trabalhadores, se calhar isto é muito mais complexo e exige aqui um processo muito diferente”, afirma Isabel Moço.

Isabel Moço defende que Portugal tem um contexto empresarial desenvolvido para acomodar a medida, mas adverte: cada empresa tem de perceber muito bem cada passo que vai dar para que as coisas resultem, nomeadamente avaliar se é viável em função do seu setor de atividade, do tipo de trabalhadores e do tipo de trabalho que tem. E esta deve ser uma resposta que não deve ser global nem para uma região ou para um país, mas sim à escala de cada entidade. “Olhar para dentro e questionar: somos todos produtivos? E se forem, há condições para a adoção deste modelo? E se houver, quem é que quer?”

“Naturalmente vai-se chegar a conclusões diferentes até dentro da mesma empresa”, indica a especialista. Além disso, há processos de trabalho em que não pode depender tudo apenas da vontade do trabalhador como, por exemplo, funções que requerem trabalhar em equipa.

Essas foram algumas das variáveis que Irene Vieira, diretora de Recursos Humanos da Doutor Finanças, teve em conta quando a empresa implementou a experiência durante um mês. Apesar de ter sido dada a possibilidade de todos os trabalhadores usufruírem de um dia da semana à escolha, este foi gerido dentro das equipas. “Naturalmente que mais pessoas queriam usufruir da segunda ou da sexta e tivemos um maior volume de pedidos para estes dias, mas foi em acordo com a chefia. Isto porque nós não podíamos - até para garantir o acompanhamento ao cliente - ter a empresa fechada a uma segunda ou uma sexta-feira”, afirma.

Experimentar e ouvir os trabalhadores

“As empresas não podem simplesmente dizer que a jornada passa a ter a jornada de quatro dias”, considera Isabel Moço, indicando que tal exige uma redefinição de processos.

“Agora são as 40 horas iguais para todos, mas também há modelos de trabalho muito diferenciados - há pessoas que trabalham ao fim de semana, há pessoas que trabalham à noite, há pessoas que trabalham por turnos - e portanto essas questões deveriam ser ajustadas”.

Consultar a equipa primeiro foi um dos critérios que Rui Cortes, fundador da Lean Health Portugal, considerou como fundamental na implementação da semana de quatro dias. Durante seis meses, esta empresa que atua no setor da saúde vai testar o modelo com 36 horas semanais e sem qualquer alteração no salário. Antes, promoveu uma sessão de preparação em equipa para identificar os pontos críticos: qual o dia em que iam descansar, quais os dias férias e até foi escrito um guião com regras, como por exemplo, o de realizar as reuniões internas à tarde, “o mais curtas possíveis porque o tempo é menor”, conta à CNN Portugal.

Captação de talento

A cultura portuguesa (quem nunca ouviu a expressão “patrão fora dia santo na loja” ou “um trabalhador bom é o que sai depois da hora”?) veio trazer uma imagem muito negativa ao trabalho, quando ele também pode ser fonte de satisfação e realização, lembra Isabel Moço.

A professora acredita que Portugal tem mudado muito nos últimos anos, muito por força de uma maior difusão de informação e de uma maior partilha de boas práticas. “Há muita gente a fazer as coisas muito bem em Portugal - e muito por força também das exigências das novas gerações, que vieram baralhar um pouco o modo tradicional de fazermos as coisas”.  Até porque, do ponto de vista social, há uma questão que não pode ser esquecida: a capacidade das economias e do emprego absorverem as pessoas e as qualificações que produzem.

“Hoje em dia uma das dificuldades de empresas pequenas é a captação de talento e isso passa pelo equilíbrio vida pessoal e profissional”, afirma Rui Cortes.

E, por isso, a preservação da identidade de cada pessoa tem de ser sempre tida em conta, adverte Isabel Moço. “Eu sou uma workaholic, gosto de trabalhar, faço muita coisa e custa-me estar parada, mas sei que nem todas as pessoas têm esta atitude. E acontece que Portugal tem um défice muito grande deste tipo de realização”. A professora cita estudos que indicam que quase 50% da população portuguesa afirma que o que faz não é o que sempre quis fazer, mas sim “o que arranjou”.

Foi nesse sentido também que o fundador da LeanHealth Portugal perguntou à equipa se faria sentido que este movimento arrancasse, sobretudo por se tratar de uma “empresa com massa crítica”: quatro engenheiras mestres e dois alunos de doutoramento em Saúde Pública. “A equipa é muito jovem, abaixo dos 30 e assim têm mais tempo para estudar”, explica Rui Cortes.

“Acredito que para além de dar este equilíbrio, pode ser um fator de atração para jovens que saiam de mestrados e tenham abertura”, afirma. “Contratámos uma aluna de engenharia biomédica que, quando teve de optar entre a nossa e outra empresa, foi a possibilidade de optar pelos quatro dias de trabalho que a fez ficar connosco.”

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