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É oficial: eles não sabiam. E é óbvio: deveriam ter sabido

7 mar 2023, 20:06
António Costa, Augusto Santos Silva e Fernando Medina (Lusa/ António Pedro Santos)

O Governo gostaria que fosse um ponto final, mas a auditoria da Inspeção-Geral de Finanças (IGF) à indemnização de Alexandra Reis não é mais do que um ponto e vírgula na longa ‒ e ocasionalmente entediante ‒ saga da TAP e do Partido Socialista. Fernando Medina insistiu persistentemente na ideia de “virar a página”, mas o facto é que não mudámos sequer de parágrafo.

As consequências políticas resumirem-se a Pedro Nuno Santos é algo conveniente a Medina, que com ele disputa a sucessão a Costa, e também ao primeiro-ministro, que não teve de demitir alguém que, depois de ontem, acabaria sempre demitido. Mas o que se passou com Alexandra Reis ‒ e a irresponsabilidade geral que expôs ao país ‒ não começou nem terminou com Pedro Nuno. O Governo era do mesmo partido e do mesmo primeiro-ministro ‒ e parte do partido, ao que tudo indica, não deixou de estar com o ex-ministro.

O que a auditoria da IGF mostra está muito próximo da disfuncionalidade política e deve alarmar-nos a todos para a gestão ‒ ou digestão ‒ que vem sendo feita do setor público português. As suas conclusões revelam que quantias avultadas de dinheiro dos contribuintes podem ser geridas por um só ministro, por um só gabinete, numa empresa nacionalizada, numerosamente administrada e duplamente tutelada pelo Governo.

Ao que a IGF apurou, só a CEO, o chairman, o ministro, o secretário de Estado, a chefe de gabinete e os advogados das partes estariam ao corrente do valor da indemnização. Nem o diretor-financeiro (indicado pelas Finanças), nem o secretário de Estado do Tesouro (parte das Finanças), nem o próprio ministro (das Finanças) saberiam. Meio milhão de euros do erário público foi negociado, acordado e transferido sem nenhum deles, alegadamente, ter conhecimento disso.

Que o Governo suspire de alívio perante a sua própria ignorância é algo confrangedor. Que “nós não sabíamos” seja atenuante de más práticas governamentais idem. Eu, imbuído de boa-fé e alguma ingenuidade, nunca imaginei que a incompetência sorrisse tanto face à sua divulgação.

Tomando como verídica a versão da IGF, António Costa apostou repetidamente num governante capaz das maiores tropelias, opacidades e secretismos, decidindo tudo e um par de botas em reuniões de Zoom e grupos de WhatsApp.

Consequências do confinamento!, dir-me-ão. Mas é um pouco mais do que isso, não é?

Uma coisa é um excesso de voluntarismo, um erro político, uma localização de um novo aeroporto decretada e imediatamente revogada por mão superior. Outra coisa é uma ilegalidade atestada por uma inspeção-geral e meio milhão de euros do Estado como solução para uma quezília entre duas pessoas.

Se Pedro Nuno Santos for, de facto, o autor singular do disparate ‒ coisa que certamente procurará esclarecer na comissão de inquérito ‒, então é tão censurável Fernando Medina ter convidado Alexandra Reis para secretária de Estado quanto foi António Costa promover Pedro Nuno de deputado a secretário de Estado e daí a ministro das Infraestruturas. Medina, afinal, conviveu com Alexandra Reis durante 26 dias; Costa sentou-se no conselho de ministros com Pedro Nuno Santos durante sete anos.

Precisava mesmo de uma auditoria para descobrir a sua natureza?

Há também outra hipótese ‒ a minha favorita, confesso ‒ que é nada disto ser verdade. E é tão provável quanto a primeira, atendendo ao que temos como certo.

Eu, por exemplo, tenho dúvidas de que João Leão ‒ um conhecido meticuloso ‒ tenha “ficado surpreendido” com a saída de Alexandra Reis da TAP, mas não suficientemente “surpreendido” para não indagar como e porquê ou, pelo menos, para não o comentar com o seu sucessor.

Tenho dúvidas de que João Nuno Mendes, que presidiu ao grupo de trabalho de entrada do Estado na TAP quando Alexandra Reis já estava na empresa, não tivesse a mais remota informação sobre a sua saída quando assumiu a tutela (com Medina) ou quando conviveu com a tutela (com João Leão).

Tenho dúvidas de que Alexandra Reis ‒ outra reputada detalhista ‒ não tenha referido uma só vez a indemnização autorizada por um ministro ao ter sido convidada para ser sua colega no mesmo Governo.

E tenho dúvidas de que Fernando Medina, que já admitiu saber da saída mas não da indemnização, não lhe tivesse perguntado nada, nicles, bola ao trazê-la para sua secretária de Estado.

O Governo quer convencer-nos de que não há comunicação entre os seus ministérios e, lendo a auditoria da IGF, tal parece possível ainda que inacreditável.

Além disso, quer convencer-nos de que não há comunicação dentro dos seus ministérios ou não teria promovido a secretária de Estado de Pedro Nuno a ministra da Habitação e o adjunto de Pedro Nuno a secretário de Estado das Infraestruturas.

Por cima disso, quer convencer-nos de que nem a gente que trabalhava na mesma sala pode ser responsabilizada ou a chefe de gabinete de Pedro Nuno que recebeu o email de Christine Widener não continuaria chefe de gabinete no atual Governo.

A culpa, anunciaram-nos ontem, é de uma senhora francesa, de um senhor que nunca apareceu e de um ministro demissionário que gostavam que não voltasse a aparecer.

Acreditar nisso é digno do mais convicto zelota, em orgulhosa profissão de fé.

No que toca ao Governo, o país pode não contar com uma maioria de ateus, mas agnósticos serão cada vez mais.

Eu só acredito que não acredito.

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