“Há um ano, ninguém verteria uma lágrima pelo povo da Ucrânia, nem nele depositava grande fé.” As palavras, cruéis mas verdadeiras, foram proferidas por Sérgio Sousa Pinto esta semana, no nosso parlamento. Não se trata de um exagero. Vítimas de uma maldição característica dos chefes políticos, os nossos partidos tardaram em aperceber-se da dimensão do que se debruçava sobre eles: uma guerra de conquista em solo europeu, oitenta anos depois de Hitler.
Se recuarmos aos primórdios do conflito, à sua antecâmara na fita cronológica, cruzamo-nos imediatamente com essa dissonância entre a realidade e o discurso, com um atraso flagrante entre os acontecimentos e a noção de que estes se haviam materializado.
A 22 de fevereiro de 2022, no dia em que Vladimir Putin proclamou unilateralmente a independência de Donetsk e Lugansk, negou a existência da Ucrânia como país e deu ordem de mobilização ao seu exército, Mariana Mortágua afirmava na televisão nacional que “a guerra não existe”, sendo antes “um conflito diplomático”. “Não arrisco classificar o que se passa como invasão nem como ocupação”, dizia a deputada do Bloco de Esquerda, quando a Crimeia estava anexada há mais de sete anos.
Ao centro, as considerações estapafúrdias também encontraram o seu espaço. Três dias mais tarde, já as tropas russas tinham invadido território ucraniano, Rui Rio alertava para as consequências de sanções à Rússia nas economias europeias, rejeitando a hipótese de se avançar com um terceiro pacote destas. “Têm de ser estudados os efeitos das sanções mais pesadas” e “exatamente o que isso significa”, defendia o então líder do PSD, ignorando que todos os pacotes, desde o primeiro, já o faziam.
A União Europeia, entretanto, vai no décimo pacote de sanções aprovado unanimemente. Rui Rio reformou-se.
As limitações do presente
A História, como que uma tempestade que só se mostra quando já nos cercou, iludiu muita gente, cá dentro e lá fora.
Em fevereiro de 2022, 20 dias antes da invasão, a China de Xi Jinping anunciou uma “parceria sem limites” com o Kremlin. Atualmente, é uma promotora ativa da paz e da integridade dos Estados soberanos.
Em janeiro de 2022, três semanas antes da invasão, Emmanuel Macron saiu de Moscovo garantindo à imprensa internacional que acabara de convencer Putin a recuar e não invadir a Ucrânia. Dois anos antes, fora convidado para a tribuna das comemorações da vitória da União Soviética, na Praça Vermelha. Três anos antes, declarara a NATO “cerebralmente morta”.
Em 2023, tudo isso parece ter décadas, se não séculos. Mas não tem.
Os limites do passado
Tanto os observadores como os decisores são frequentemente limitados por essa demora em reconhecer o que está à sua frente, por essa dificuldade em localizarem a sua ação ‒ eles próprios ‒ num quadro que não controlam ou anteciparam, pelo enorme desafio que é distinguir o que seria só um momento na História (“um incidente diplomático”) de um tempo histórico (“uma guerra”).
O que separa um situacionista de um estadista não é apenas a sua relação com o futuro (querer que algo esteja diferente depois de partir) e com o passado (saber o que mudou antes de chegar), mas sobretudo a sua relação com o presente (identificar o que se está a transformar hoje).
Como lembrou Sérgio Sousa Pinto na Assembleia da República, “não é nada garantido que o conhecimento da História, por si só, nos poupe à repetição e ao erro”.
É preciso mais. Tão importante quanto aprender com os erros dos apaziguadores de 1938 (“os povos livres que sacrificaram tudo à paz não salvaram a paz e perderam a liberdade”), é preciso interiorizar a natureza incessante da História (“o passado não está morto, nem sequer passou”). E é a soma desses dois apelos que torna as palavras de Sousa Pinto imprescindíveis.
Num ano ou uma década, também nós regressaremos a esse discurso para só aí darmos conta, como a ida de Biden a Kiev ou o primeiro vídeo de Zelensky a dizer “estamos aqui”, da historicidade do momento em que um democrata português olhou a democracia de frente e lhe pediu:
Não te esqueças de ti própria.