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Raspanete sem castigo

5 mai 2023, 11:30

Marcelo Rebelo de Sousa encheu um balão que lhe fugiu das mãos. Trocando a corda pelo gelado, a ameaça pela anuência, o Presidente da República introduziu a dissolução no quotidiano político para, quando desafiado a concretizá-la, fugir a sete pés dela. A semana resume-se à anulação de uma premissa: Galamba não podia ficar. E ficou.

O Governo pode não ter “capacidade, confiabilidade, credibilidade, respeitabilidade e autoridade”, como deu a entender Marcelo depois disso, mas nada, nem a sobrevivência do ministro, nem o uso indevido do SIS, nem a afronta pública do primeiro-ministro, foram suficientes para uma resposta. Uma.

Uma convocatória do Conselho de Estado, uma chamada dos partidos a Belém, o estabelecimento de um prazo para o Governo se renovar, a exigência de uma meta, de um objetivo, de um mínimo. Algo que reequilibrasse a balança de poderes e reinstituísse uma porção de força a Marcelo. Mas esse algo não saiu da declaração presidencial de ontem à noite.

Pelo contrário, António Costa ganhou o segundo assalto neste ringue que se estende agora de São Bento a Belém. Desferiu um gancho e, na expectativa de contra-ataque, recebeu um despir de luvas. Marcelo prometeu estar “mais atento”, “mais interventivo”, “mais vigilante”, mas, além de ser difícil imaginar um Presidente mais ativo do que Sua Excelência, é impossível ignorar o óbvio: a sua capacidade de pressão, depois desta semana, não será a mesma. Uma maior intervenção exigiria a mesma autoridade. E a sua autoridade foi uma das vítimas da semana.

O Marcelo “mais vigilante” já era o Marcelo que não largava a execução do PRR. O Marcelo “mais interventivo” já chamava “requentada” à maioria de Governo. O Marcelo mais crítico já ameaçava “não perdoar” uma ministra e vetar a lei do arrendamento de outra.

A ideia de que desta crise emergirá um Marcelo-Soares, capaz de deixar Belém e São Bento ao seu partido como legado, é tão dócil quanto sonhadora.

O Presidente não encontrou ainda forma de se soltar do paradoxo que é promover a “estabilidade” perpetuando um Governo de instáveis. E talvez esse paradoxo tenha atingindo o zénite da sua insustentabilidade nesta crise política.

O chefe de Estado não foi, como é claro, o único a ver a sua autoridade diminuída pelos eventos da semana. António Costa, dono de um capital político significativo (uma maioria absoluta) e de uma simpatia mediática antiga (não é preciso explicar), preferiu amarrar o seu futuro a João Galamba na vez de manter um aliado tão valioso quanto Marcelo Rebelo de Sousa.

Sacrificar o apoio do político mais popular do país para preservar um dos ministros mais impopulares do seu Governo foi uma decisão surpreendentemente aplaudida na terça-feira. Provavelmente deixará de o ser a breve prazo.

O racional de Costa ‒ emancipar-se de um Presidente intrusivo ‒ tem a sua validade. Mas o sacrifício de Marcelo também. Depois de reconhecer que foi o “prestígio das instituições” a ser colocado em causa por João Galamba, o Presidente, a quem compete zelar pelas instituições, nada fez. Espera que a CPI, que escolheu preservar, desgaste o governo até ao momento certo para a dissolução. No último dia dos seus trabalhos, Costa rumará eventualmente a Belém para propor uma remodelação ‒ no seu tempo, com os seus nomes, para a sua maioria.

Nessa tarde, saberemos finalmente quem vencerá este combate.

A democracia portuguesa, por seu turno, dificilmente ganhará alguma coisa com ele.

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