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Há uma mulher de direita a destruir uma democracia europeia (e ainda não é a senhora Meloni)

15 out 2022, 09:24
Liz Truss (AP Photo)

Não é o sr. Sánchez e as suas intermináveis geringonças, o sr. Macron, que ficou sem maioria na Assembleia Nacional, o sr. Scholz, às avessas com meio partido russófilo, o dr. Costa, sem um mês órfão de casos desde a reeleição, nem mesmo a sra. Meloni, herdeira da tradição fascista e contestatária da União Europeia.

Há um governo no velho continente cujo radicalismo e incompetência provocaram a autêntica ruína política, económica e financeira do seu país: o britânico.

A democracia parlamentar mais antiga da Europa, a terra do liberalismo, da revolução industrial, da City, admirada pelas suas tradições democráticas, invejada pelo seu poderio empresarial, está, neste momento, à beira de uma intervenção do FMI com um governo incapaz do ato de governar.

O mais extraordinário é que Liz Truss o conseguiu fazer no curto espaço de 37 dias. Se a isso subtrairmos o luto e as cerimónias de despedida da Rainha Isabel II, o desaire concretizou-se em menos de três semanas. Como escrevia com alguma graça a Economist: menos tempo de vida do que uma alface.

Ontem, depois de um mini-Orçamento do Estado que descredibilizou não só quem o fez, mas o seu partido e o seu país, a primeira-ministra despediu o seu ministro das Finanças, Kwasi Kwarteng.

Apesar disso, a libra continuou a cair, as sondagens continuaram abaixo dos 20% e o grupo parlamentar permanece descrente e ansioso por substituí-la antes das eleições regulamentares, agendadas para janeiro de 2025, mas dificilmente não convocadas antes ‒ bem antes ‒ disso.

A rebelião que mostrou os dentes no congresso do partido, há uma semana, quer morder antes de ser devorada pelos eleitores. Nem John Major, antes da primeira maioria de Blair na década de 90, teve números tão reduzidos. Segundo um estudo de opinião do Telegraph, apenas 9% dos britânicos têm uma perspetiva positiva da sra. Truss neste momento. Tendo sido escolhida pelos 81 mil militantes do Partido Conservador ‒ e não pelos 49 milhões de eleitores do Reino Unido ‒, o cenário é aterrador para a ex-ministra dos Negócios Estrangeiros. 

Olhando para trás, o que se passou ontem não tem outro equivalente na história do Reino Unido que não a perda do Canal do Suez, em 1956, quando as nobres intenções de Anthony Eden emular Churchill, conquistar uma vitória militar e devolver a Grã-Bretanha a um lugar de prestígio no mundo foram derreadas pelos seus aliados, pela comunidade internacional e, no fundo, pela realidade. Para citar uma banda da ilha, “You Can’t Always Get What You Want”.

Truss, que presumia emular Thatcher e não Churchill, pela força da ideologia e não das armas, foi vergada por um conjunto idêntico de fatores. Ela, devota dos mercados, foi traída e quebrada por eles. Ela, que prometia retirar o Reino Unido de um ciclo de estagnação, obrigou o Banco de Inglaterra a intervir na economia, a emitir moeda em cenário de inflação e a salvar fundos de pensões. Ela, que proclamava uma Grã-Bretanha mais rica, fez com que os britânicos, verdadeiramente, ficassem mais pobres.

The lady turns

O dia de ontem foi um tanto mais trágico pelo modo como desacreditou, não só a sra. Truss, não só o Partido Conservador, mas o próprio sistema político do Reino Unido. Em nenhuma democracia frequentável acontece o que sucedeu esta sexta-feira em Londres. Kwasi Kwarteng sobrevoava o Atlântico quando se apercebeu, através de um tweet de uma jornalista, que ia a caminho de Downing Street para ser despedido. A carta de agradecimento pelos serviços prestados que Truss lhe escreveu diz o oposto: que foi uma decisão do ministro. Mas o discurso da própria Truss, meia-hora depois, contrariava a carta: foi, afinal, uma decisão da primeira-ministra “em nome do interesse nacional”.

Kwarteng, doutorado em Cambridge com uma tese sobre a desvalorização monetária no século XVII, não é inteiramente tolo e ripostou. Na sua carta de despedida, faz questão de salientar que as suas políticas eram integralmente oriundas da visão de Liz Truss. E essa foi talvez a afirmação mais próxima da verdade que um político britânico proferiu ontem.

A velocidade a que líder dos Conservadores se desmentia a si mesma não abrandou e as incoerências não ficariam por aí. Truss, que fez toda a campanha interna para suceder a Boris Johnson com o alívio fiscal como bandeira, anunciou, numa tentativa de recuperar credibilidade, que iria afinal implementar a subida de impostos que Rishi Sunak, seu concorrente, havia defendido.

Problema? Mais do que um. Por um lado, porque Truss convenceu os 81 mil militantes tories com base nessa promessa. Por outro, porque o homem que Truss convidou para novo ministro das Finanças ‒ Jeremy Hunt ‒ concorreu ele próprio à liderança do partido com a descida desse imposto como medida, em 2019. Dito de forma simples: o primeiro ato do novo ministro será fazer exatamente o oposto do que antes acreditava; o segundo ato da nova primeira-ministra é reverter uma medida a que se opôs veementemente na disputa que a levou ao poder.

O problema da sra. Truss é justamente esse: cada vez que cede, em busca de credibilidade, perde mais credibilidade por incoerência com um passado recente dedicado à idiossincrasia. E quando qualquer decisão implica escolher entre a perda de credibilidade e o risco de instabilidade, é o tempo de sair. Incrivelmente, a sra. Truss ainda não o percebeu.

Margaret Thatcher eternizou-se na memória política dos britânicos por se dirigir a um partido envelhecido, elitista e maioritariamente masculino com a seguinte frase: “The lady is not for turning”.

Mas esta é.

The Old Lady doesn’t

Quem não se mexeu apesar das mais diversas pressões foi o Banco de Inglaterra, com boletins, advertências e opções visivelmente independentes ‒ para não dizer contrárias ‒ às do governo conservador. Coloquialmente chamado The Old Lady, o banco central não fez mais do que antecipar a reação de desconfiança que os mercados e os investidores cedo confirmariam. O mini-Orçamento, que propunha um avolumado alívio fiscal para as empresas sem explicar como compensar a perda de receita, foi primeiro desacreditado na City e depois em Westminster.

Promete não cortar nos serviços públicos e no Estado Social para compensar a descida de impostos?, questionava o líder da oposição, Keir Starmer. Prometo!, jurava Liz Truss. E a confiança dos mercados, por exemplo, na compra de dívida britânica afundava, em mais uma encruzilhada da sra. Truss, desta vez entre os eleitores, a quem os conservadores prometeram mais Estado em 2019, e os mercados, a quem a líder dos conservadores prometeu menos Estado em 2022.

A chancellor in the shadows

Há, além da credibilidade, um profundo problema de transparência. Desde a demissão do secretário-permanente do Tesouro ao desprezo pelas recomendações do Gabinete de Responsabilidade Orçamental (uma UTAO do outro lado do Canal), o governo da sra. Truss mantém uma opacidade pouco amiga do habitual escrutínio britânico.

O facto de o porta-voz do governo ter deixado de estar presente nas reuniões de cabinet (o Conselho de Ministros) impossibilita um acesso mais direto da imprensa ao que o governo pensa e ao modo como decide. As notícias que davam Kwasi Kwarteng, ainda ministro das Finanças, como participante num cocktail festivo no dia em que apresentou o seu agora defunto mini-Orçamento causaram escândalo por um motivo compreensível: metade dos convivas tinham apostado contra a libra na véspera, adivinhando a desvalorização que as políticas do seu convidado causariam. E ganharam rios de dinheiro com isso.

Até Jacob Rees-Mogg, reputado excêntrico e reacionário do Partido Conservador, integrou o governo e rapidamente se deu conta do surrealismo em seu redor. Secretário de Estado do Comércio e da Energia, aprovou uma campanha de sensibilização para a poupança de eletricidade antes de o inverno chegar. A sra. Truss vetou prontamente a ideia, argumentando que o Estado tinha mais do que fazer do que dizer às pessoas como gastarem o seu dinheiro. E, pelo menos aí, a ideologia ganhou à realidade.

We all have it coming

Numa célebre entrevista, alguém perguntou a Keith Richards: Did you have it coming, Mr. Richards?, ao que o membro dos Rolling Stones respondeu: We all have it coming. Liz Truss talvez mais do que os outros had it coming, mas não sem deixar uma série de lições ‒ mesmo que involuntariamente.

A primeira: os Conservadores governam há 12 anos. O esgotamento político, ideológico e de quadros é incontornável. Os tories foram liberais moderados com o sr. Cameron, democratas-cristãos com a sra. May, populistas estatistas com o sr. Johnson e libertários alucinados com a sra. Truss. Há uma grande diferença entre ter uma visão de país e ter visões com o país; neste momento, o partido mais bem-sucedido do planeta só tem a segunda. Liz Truss é o fundo do tacho de um partido há demasiado tempo no poder. Há um limite para a procura de alternativas dentro de um só partido. Depois dela, não há nada a não ser rumar à oposição.

A segunda: o excesso de expectativa leva ao excesso de frustração. Os Conservadores prometeram uma Inglaterra nova após a saída da União Europeia e o que têm, seis anos depois do referendo, é uma Inglaterra velha e a reaproximar-se da União Europeia. O caudal de frustrações causado por fazer política com promessas vãs é perigoso para todos, incluindo para os seus autores ‒ em particular quando não o percebem a tempo.

A terceira: depois de Ed Miliband e Jeremy Corbyn, os tories relaxaram perante a certeza de que os líderes da oposição seriam, irremediavelmente, medíocres. Surgiu Sir Keir Starmer, antigo Procurador-Geral do Ministério Público, que pôs termo aos radicalismos de Corbyn e à falta de gravitas de um Partido Trabalhista há demasiado tempo longe da governação. Não há más oposições eternas como não há governos sem fim.

Hoje, o cenário de mediocridade está nos Conservadores. Os trabalhistas têm 53% em sondagem. A questão, para a direita no Reino Unido, já não é se vão perder. É se conseguem perder sem serem esmagados.

A minha aposta é que não.

They had it coming, too.

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