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O grande salto - para onde?

22 fev 2023, 09:10

Quando o mundo é virado do avesso, há um período no tempo em que a incoerência ‒ um rodopio de 180 graus, uma mudança repentina de opinião, uma contradição flagrante ‒ tem um maior grau de tolerância do que nos períodos de estabilidade e normalidade.

Na era da incerteza, como lhe têm chamado, é isso que estamos a viver. Quando não compreendemos algo, compreendemos quem também não compreenda.

Todos os líderes, mais cedo ou mais tarde confrontados com a força do novo paradigma, mereceram esse novo espaço de manobra. 

Receberam tempo para se reequilibrarem durante o abanão. Para pressentirem de que lado soprará o vento depois da tempestade. Para anteverem o que ruirá e o que resistirá a cada réplica do tremor. Para reconhecerem que ignorar a mudança não seria resposta suficiente à sua inevitabilidade. Para reagirem e agirem simultaneamente, não enterrando a cabeça na areia, nem dando passos maiores do que a perna. 

Desde 24 de fevereiro de 2022 que todos, de uma forma ou de outra, procuram fazê-lo. 

Scholz e o discurso Zeitenwende (“mudança de tempos”), em que o chanceler alemão constatou a “reviravolta histórica” que a invasão à Ucrânia trazia ao continente europeu. O Japão e um rearmamento sem precedente desde a Segunda Guerra. Os Estados Unidos, que foram de convidar Zelensky a sair de Kiev para indefetíveis do seu governo. Von der Leyen e o apoio incansável ‒ para muitos, prematuro ‒ à integração ucraniana na União Europeia. A abertura radical decretada por Xi Jinping, tentando levantar a China da pandemia. O papel de negociador de Erdogan, subitamente assolado por uma tragédia sísmica. Zelensky e a confirmação de que tenciona não apenas tornar-se um Estado-membro, como aderir à Aliança Atlântica quando a guerra terminar.

No último ano todos fizeram pinos, rodas e mortais à retaguarda, numa exibição de flexibilidade característica de um tempo que a exige. 

Mesmo Portugal, cuja política externa transcendeu governos, partidos e regimes, terá de reinventar os equilíbrios da sua neutralidade, tão recorrentemente paradoxal: o mais democrata dos próximos de Orbán, o mais germânico dos europeus do sul, o mais sinófilo dos membros da NATO e, até à guerra, o mais moscovita dos aliados do Reino Unido. 

Sempre com um pé dentro e uma mão fora, vocalmente atlantista e europeísta, mas hiperativo no aprofundar de relações económicas e políticas com rivais sistémicos. 

Essa dança, que um ministro dos Negócios Estrangeiros apelidou uma vez de diplomacia com “duas faces de Jano”, terá de se adaptar à nova música. 

Os sinais do coreógrafo 

Numa tripartida coincidência, Joe Biden visitou Kiev no dia em que os norte-americanos celebram os seus presidentes (a terceira segunda-feira de fevereiro) e António Costa deu uma entrevista no mesmo dia, discutindo o futuro da Europa a seguir à guerra (“Só é possível paz com a vitória da Ucrânia e a derrota da Rússia”, “Público”, 20/2/23). 

Segunda-feira, na conversa com a jornalista Teresa de Sousa, o primeiro-ministro não evitou a sua persona europeia e talvez só através dela o leitor ‒ e o eleitor ‒ tenha melhor acesso ao político que António Costa é. 

Sem as poeiras polarizadoras contra Passos, a direita, o Chega ou demais espantalhos da sua inércia. Sem medidas que não são políticas e políticas que nunca serão lei. Sem cortinas de fumo, artifícios e habilidades. Sem o que a política portuguesa tem sido desde 2015.

Sobre a Europa, o pragmatismo do primeiro-ministro ganha a elevação de um objetivo e o realismo de quem apresenta factos. Pode concordar-se ou discordar-se, mas há um olhar que se aproxima de uma visão ‒ coisa que tarda em produzir ao fim de sete anos no palco nacional. 

A entrevista de António Costa ao “Público” é um documento político relevante porque mostra um homem sem contemplações quanto à realidade. Não há fugas para a frente, spin, bodes expiatórios. Há o que há. É o que é. E sendo ele um dos decanos do Conselho Europeu, a aproximar-se de uma década de governação, antecipa desafios que só mais tarde se cruzarão com a nossa praça. 

Quase como se o Costa, de lá de fora, estivesse a dizer ao Costa, cá de dentro, o que aí vem. 

A primeira constatação do primeiro-ministro é a da surpresa, da reviravolta, do tal rodopio de 180 graus que muitos, incluindo a União Europeia, deram no último ano. “O que aconteceu foi uma enorme unidade e superação dos seus próprios limites. A UE começou por dizer que não apoiaria militarmente a Ucrânia e deu um grande salto.” 

A segunda foi a da dimensão do pulo. “Um país como a Alemanha, a que tantas vezes é apontado o dedo, teve a coragem de tomar uma decisão que eu gostava de saber quantos países teriam coragem de tomar: depois de ter investido milhares de milhões de euros na construção do Nord Stream 2, ter decidido que não entrava em funcionamento, nem agora nem nunca”, saudou Costa, improvável apologista de Berlim.

Mas é na elaboração do que está por vir que o chefe do Governo português justifica maior atenção. “A Europa está confrontada com três realidades que esta guerra lhe coloca. A primeira, ir reforçando o seu orçamento de Defesa. Tem outro desafio enorme, que é a necessidade de encontrar uma nova forma de se relacionar com o mundo e, designadamente, de ter uma política comercial mais agressiva. E, em terceiro lugar, preparar-se para o alargamento - que se tornou inevitável.” 

O mais notável nos três desafios destacados por António Costa não é a prontidão com que o primeiro-ministro os elencou. É estarem absolutamente ausentes do debate público português. Ninguém fala sobre eles.

Ninguém conhece uma ideia dos nossos partidos políticos sobre que Defesa desejamos e como cumpriremos os 2% mínimos de despesa requeridos pela NATO. Ninguém conhece uma ideia dos nossos partidos políticos sobre como conciliar o novo protecionismo europeu com o peso do investimento chinês em Portugal. Ninguém conhece uma ideia dos nossos partidos políticos sobre como redimensionar o Estado Social português quando as verbas da Coesão forem estendidas para novos Estados-membros da UE, como a Ucrânia. 

E que bom seria, por uma vez na vida, discutirmos perspetivas antes de tomarmos decisões, confrontarmos pontos de vista antes de escolhermos a opção que consideramos certa, em vez de empurrarmos com a barriga, deixarmos tudo para a última da hora e decidirmos em cima do acontecimento, a quente, sem preparação, informação ou o mínimo de consenso. 

Que bom seria que a conversa sobre o futuro do país não se resumisse a um monólogo do partido de Governo. Ou, neste caso, a um diálogo entre Costa, lá, e Costa, cá. 

Que bom seria.

Era, não era?

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