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É o Almirante? Ou somos nós?

19 mar 2023, 14:23

Há razões que vão muito além do costume e das sensibilidades nas críticas ao chefe do Estado-Maior da Armada. O país, em particular as suas elites, estranha Henrique Gouveia e Melo. Estranhou mas entranhou nas vacinas, e talvez venha a entranhar noutras núpcias mais. Mas porque estranha? E porque entranha? 

Terá mais que ver com ele? Ou connosco?

A chefia da task-force era uma missão de relativa unanimidade, de objetivos claros, logística relativamente simples para um militar experiente e uma dimensão salvífica que a pandemia, como todos os assuntos de vida e de morte, proporciona. 
A isso, Gouveia e Melo acrescentou a estampa nórdica e espadaúda, incomum em terras mediterrâneas, mas propícia ao deslumbramento geral. A covid-19, ao fechar o país em casa, fechou-o com a televisão ligada. Invariavelmente, o grave e omnipresente vice-almirante lá estava. 

Ora, agora já não é assim. O vice-almirante das vacinas tornou-se almirante e chefe. Há mais responsabilidades e menos câmaras; mais política e menos gente. O seu adversário não é algo tão objetivo quanto uma infeção respiratória, mas antes mais subjetivo: a indisciplina dos homens. E a sua resposta, sendo exatamente a mesma ‒ cortar a eito ‒, colheu efeitos diametralmente opostos. A sua ação ‒ neste caso, reação ‒ tornou-se alvo de debate. Antes, havia quem relativizasse a sua importância. Hoje, há quem reprove a sua ação. 

A sua condenação da quebra da cadeia de comando, pública e assertiva, é a de alguém que dedicou a sua existência a essa cadeia. De alguém que não concebe a vida sem Forças Armadas, logo, sem disciplina. A sua preocupação em reestabelecer a autoridade ‒ a sua, a da marinha e a de Portugal junto dos seus aliados ‒ advém de um racional estratégico, depois explanado na entrevista que deu à televisão. Nesta, reconheceu estar a falar “para a guarnição, para a marinha e para o país”. Nesta, admitiu que a armada faz o que pode, “como todos fazemos, na saúde, na educação, num país com dificuldades”. 

Poderia ser um candidato presidencial a falar, apontarão uns, como já apontaram as sondagens. Mas também poderia não ser. Se Henrique Gouveia e Melo não tivesse comandado o processo de vacinação, será que estranharíamos ver um almirante mais anónimo condenar 13 militares que violaram uma ordem direta? Num contexto de guerra na Europa, ainda por cima? Tenho dúvidas.

É um erro analisar Gouveia e Melo através de uma lente exclusivamente política e outro erro resumi-lo ao tempo a que o conhecemos. O fenómeno d’ “o Almirante” é mais profundo, mais complexo, mais antigo. A análise política não esclarece inteiramente Gouveia e Melo, em primeiro lugar, porque Gouveia e Melo não é um político. E não é um político, simplesmente, porque não saberia fazer de outra maneira. A autoridade é-lhe irresistível, o comando é-lhe incontornável. Não é um show. É ele.

Mas o mesmo se pode dizer dos seus mais recentes críticos, avessos à dimensão pública das suas intervenções, à sua emancipação do Presidente da República (“É o meu comandante supremo, mas penso pelo minha cabeça”) e à sua popularidade invulgar para um não-civil. Também não há nada de superficial nessa alergia a Gouveia e Melo. Ela é mais sistémica e ancestral do que o intuído à primeira vista. 

O regime democrático português, tendemos a esquecê-lo, foi consolidado contra excessos do foro militar (o Conselho da Revolução, extinto em ’82; o presidencialismo de Eanes, combatido por Soares e Sá Carneiro) e os dois partidos fundadores da Democracia têm, conscientemente ou não, uma aversão natural a tudo o que seja militar e despartidarizado. Isso também não é mania, espetáculo ou idiossincrasia. É o que somos.   

O estado das Forças Armadas, o seu desinvestimento transversal entre governos e a consequente desvalorização da condição militar levarão a dois choques, potencialmente perigosos. O primeiro, que se viveu no Mondego, entre disciplina (da instituição) e segurança (dos que a compõem). O segundo, que se sentirá no país, entre um militar sem medo e um sistema político que se consolidou, desmilitarizando-se.

Como a fábula do ovo e da galinha, será sempre difícil acordar quem causou o quê. Se foi o empobrecimento da República que criou o Almirante, se é o Almirante que se empoleira nele. Uns dirão uma, outros preferirão outra. 

Mas a discussão já é uma inevitabilidade. 
 

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