"O valor de uma pessoa não se mede pelas suas notas". O burnout académico pode atingir "até crianças do primeiro ciclo"

12 out, 08:00
Depressão

O novo ano letivo já começou há um mês. Os primeiros testes estão à porta e a pressão das notas, as comparações com os outros e as agendas sobrecarregadas dos jovens podem conduzi-los a um estado de burnout. A psicóloga clínica Cátia Silva, em entrevista à CNN Portugal, falta sobre os sinais de alertas para pais, jovens e professores e deixa também estratégias para prevenir e para combater o esgotamento académico

Um estudo da Universidade Lusófona divulgado em junho, quando o ano letivo estava a terminar, dava conta de que mais de metade dos estudantes do ensino superior estavam em burnout e 40% tomavam psicotrópicos. O estudo, que envolveu mais de 2.300 inquiridos entre os 17 e os 35 anos, revelou ainda estudantes desmotivados, exaustos, irritados e deprimidos.

Mas o burnout académico não afeta apenas estudantes do ensino superior. Um estudo da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, que envolveu mais de 13 mil estudantes, no ano letivo de 2022‑2023, revela que 45,4% dos adolescentes apresentam sintomatologia depressiva. Dados de estudos internacionais apontam para uma degradação da saúde mental dos jovens depois da pandemia de covid-19.

Não é "preguiça", não é falta de vontade" e muito menos "birra de adolescente". É um assunto sério e pode afetar mesmo crianças do primeiro ciclo. E a prevenção começa na família e nas escolas e precisamente no início do ano letivo. Em entrevista à CNN Portugal, a psicóloga clínica Cátia Silva, especializada em ansiedade, burnout e depressão partilha estratégias de prevenção e sublinha os sinais de alerta. 

A psicóloga Cátia Silva fala dos sintomas do burnout académico, dos sinais a que devemos estar atentos e de estratégias para o prevenir. DR

Do que estamos exatamente a falar quando falamos de burnout académico?

Quando falamos de burnout académico estamos a referimo-nos a um estado de exaustão física e emocional provocado pela sobrecarga de requisitos ligados ao mundo académico. Para além da fadiga intensa, existe também uma perceção de desmotivação e distanciamento em relação à escola ou à faculdade, acompanhada sobretudo por sentimentos de insuficiência, com impacto real na saúde mental e no desempenho dos estudantes.

Numa altura em que se fala numa diminuição da exigência académica (muitos professores queixam-se disso mesmo), qual é o ponto da situação do burnout académico? É um problema de saúde mental que tem vindo a crescer?

A investigação tem vindo a mostrar que este problema tende a crescer, sobretudo entre adolescentes e universitários. Isto acontece porque a pressão não vem apenas dos testes ou dos trabalhos escolares. Vem também da comparação constante com os outros, das expectativas em relação ao futuro, do uso intensivo de tecnologias e da falta de tempo para descanso. Ou seja, mesmo que a avaliação formal seja diferente, a perceção de exigência continua a ser muito elevada e a competitividade cada vez mais presente.

No senso comum, quando falamos de burnout académico, associamos o assunto muito ao ensino superior. É uma perceção falaciosa? O burnout académico pode atingir todos os alunos de todas as idades, mesmo crianças do primeiro ciclo, por exemplo?

Sim, é uma perceção incompleta. O burnout académico não se limita necessariamente ao ensino superior. Pode atingir alunos de todas as idades, até mesmo crianças do primeiro ciclo. Claro que se manifesta de formas diferentes: nos mais novos, muitas vezes através de sintomas físicos, como dores de cabeça ou de barriga, recusa em ir à escola ou cansaço constante; nos mais velhos, através da falta de motivação, ansiedade de desempenho ou mesmo abandono escolar. O importante é percebermos que a pressão e o esgotamento podem existir em qualquer etapa do percurso escolar.

Já enunciou alguns em respostas anteriores, mas gostava que fosse mais específica. Que fatores contribuem para o burnout académico?

São vários os fatores que contribuem para este fenómeno. Do lado do aluno, encontramos características como o perfecionismo, o medo de falhar, dificuldades em gerir emoções e maus hábitos de sono. Do lado da família, pesam comportamentos como o foco exclusivo nas notas, a comparação com outros ou a sobrecarga de atividades extracurriculares. Do lado da escola, a carga de trabalhos, a falta de autonomia dada aos estudantes, o ambiente competitivo e o pouco espaço para pausas. Também o contexto digital e socioeconómico desempenha um papel, já que muitos jovens vivem em permanente comparação através das redes sociais e outros enfrentam dificuldades adicionais ligadas ao acesso a recursos.

Falou da pressão familiar. O que é que os pais estão a fazer de errado que possa estar a contribuir para que os seus filhos entrem numa espiral que conduza ao burnout académico?

Na maioria dos casos, os pais querem o melhor para os filhos, mas algumas atitudes podem acabar por aumentar esta pressão. Por exemplo, valorizar apenas as notas e não o esforço, sobrecarregar a agenda com explicações e atividades, comparar os filhos com irmãos ou colegas, resolver sempre os problemas por eles ou desvalorizar os sinais de cansaço e de mal-estar.

Quais são os sinais de alerta que me podem indicar que o meu filho ou o meu aluno (sabemos que, na esmagadora maioria dos casos, as crianças e adolescentes passam mais tempo na escola do que em casa com os pais) está em estado de burnout académico?

Os sinais podem ser físicos, emocionais, cognitivos ou comportamentais. Fadiga constante, dores frequentes, alterações no apetite e no sono são sinais a ter em conta. No plano emocional, é comum vermos irritabilidade, apatia ou tristeza. A nível cognitivo, surgem dificuldades de concentração e de memória. A nível comportamental, podemos destacar o evitamento escolar, procrastinação ou até mesmo abandono de atividades de lazer. Quando existe uma descida rápida do rendimento escolar, maior isolamento ou autocrítica excessiva, podem ser sinais de que algo não está bem e que é necessário compreender.

Que estratégias podemos colocar em prática para prevenir que as nossas crianças e jovens atinjam o ponto de burnout?

A prevenção passa sobretudo por hábitos de vida saudáveis e por uma relação equilibrada com a escola. Garantir horas adequadas de sono, incentivar pausas durante o estudo, valorizar o processo em vez de apenas os resultados, dar espaço à autonomia, promover atividade física regular e tempo de brincadeira livre, limitar o uso de ecrãs e manter uma comunicação aberta em família e na escola são estratégias fundamentais. Pequenas rotinas de regulação emocional, como exercícios de respiração ou alongamentos, também podem ser muito úteis.

Concentremo-nos no papel dos pais. O que é que eu enquanto mãe posso fazer para prevenir que o meu filho venha a ter esse problema de saúde mental?

Enquanto pais, podemos fazer muito. Nomeadamente, estabelecer expectativas realistas, acompanhar de forma próxima, mas sem pressão excessiva, elogiar o esforço e não apenas a nota, reservar tempo de qualidade com o filho e proteger o seu descanso. É importante também mostrar interesse genuíno pela sua experiência escolar e não só pelos resultados. Criar rotinas equilibradas, comunicar abertamente sobre as preocupações de ambos, colocar limites no uso de ecrãs e incentivar momentos de lazer para assim ajudar a reduzir os riscos de burnout.

Estamos a começar um novo ano letivo. Temos um mês de aulas. Essa prevenção começa agora?

Sim, a prevenção deve começar logo no início do ano letivo. Esta fase é determinante para estabelecer hábitos saudáveis: definir horários de sono, organizar rotinas de estudo com pausas, preparar um calendário equilibrado que inclua também atividades prazerosas e tempo livre. Quando estas bases são criadas desde cedo, o ano escolar tende a decorrer com menos sobrecarga e mais previsibilidade quer para os pais quer para os estudantes.

Quando começam os primeiros sintomas, o que é que os pais devem fazer?

O primeiro passo é validar o que o filho sente e abrir espaço para o diálogo. Sem julgamentos. Depois, é importante rever a carga de atividades, ajustar expectativas e, se possível, articular com a escola para aliviar pressões temporárias. Priorizar o descanso e reintroduzir momentos de prazer ajuda muito. Se os sinais persistirem, é essencial procurar apoio profissional.

Em que ponto devo então procurar ajuda profissional para o meu filho? E que tipo de ajuda devo procurar?

Se os sinais persistirem durante algumas semanas, se houver uma quebra acentuada no rendimento escolar, isolamento marcado, ansiedade frequente ou sinais de depressão, é altura de procurar ajuda. O primeiro passo deve ser a psicologia, onde se pode trabalhar a gestão de stress, a organização do estudo e as competências emocionais. Também pode ser útil envolver o pediatra ou o médico de família, para excluir questões de saúde física e orientar a articulação com a escola. Em situações mais graves, é fundamental procurar também avaliação em psiquiatria.

As nossas crianças e os nossos jovens têm cada vez menos tempo para a "brincadeira livre". Depois das aulas, têm explicações, atividades extracurriculares… De que forma é que essas atividades podem contribuir para o fenómeno ou ajudar a preveni-lo? Em última instância: há atividades mais benéficas do que outras?

As atividades extracurriculares podem ser um fator de proteção ou de risco. Quando são escolhidas de acordo com os interesses da criança, têm carga moderada e não retiram tempo de sono ou descanso, funcionam como reguladoras de stress e aumentam a autoestima. No entanto, quando a agenda fica sobrecarregada, com horários muito exigentes ou ambientes competitivos, podem aumentar a pressão e contribuir para o burnout.

Ainda sobre as atividades extracurriculares: quando um jovem começa a apresentar sintomas, deve deixar as aulas de piano, de violino, de karaté ou a natação, por exemplo, para se concentrar mais na escola?

Nem sempre. Muitas vezes, manter uma atividade que dá prazer e funciona como válvula de escape pode ser positivo. O mais importante é avaliar caso a caso e perceber se a atividade é um prazer ou se está a ser vivida como uma obrigação. Em geral, faz sentido reduzir a carga e manter apenas aquilo que o jovem identifica como espaço de bem-estar e de equilíbrio. Se uma atividade estiver a retirar demasiado tempo de descanso ou a agravar o cansaço, pode ser posta em pausa temporariamente, mas não devemos partir do princípio que “deixar tudo” é a solução. Às vezes, é precisamente essa atividade que pode ajudar a recuperar.

Que mensagem deixa aos jovens, pais e professores neste início de ano letivo?

A mensagem principal é que o valor de uma pessoa não se mede pelas suas notas ou pelos seus resultados académicos. Para os jovens, é importante pedirem ajuda o mais cedo possível e lembrarem-se que o descanso, rotina e hábitos saudáveis fazem parte do sucesso. Para os pais, a prioridade deve ser proteger o sono, validar emoções e dar mais valor ao esforço do que à comparação. No fundo, queremos formar pessoas saudáveis capazes de responderem as exigências do mundo de forma equilibrada e não apenas bons alunos.

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