“Devíamos começar a pensar em carreiras aos três anos, mas não estamos preparados para tomar uma boa decisão até aos 20 e tal"

1 out 2022, 18:00
Julia Yates

Em que consiste o coaching de carreira, a quem se destina, como pode ajudar alguém, que desafios enfrentam os trabalhadores quando querem mudar de profissão e o que os leva a querer fazê-lo? A psicóloga Julia Yates explica. É especialista no tema.

Julia Yates é psicóloga, diretora do mestrado em Psicologia Organizacional da Universidade de Londres, e tem mais de 20 anos de experiência na área de coaching de carreira. Foi precisamente sobre coaching de carreira que falou à CNN Portugal, à margem do Congresso da Ordem dos Psicólogos Portugueses, onde esteve como oradora. 

O que é coaching de carreira e em que é que pode ajudar alguém?
Acho que o primeiro grande benefício é que o cliente está a trabalhar com alguém que não o conhece e que não tem um interesse pessoal no que esse cliente acaba por fazer. O trabalho do coach de carreira é ajudá-lo a descobrir o que ele quer fazer. E ajudá-lo a fazer com que funcione.

Outra coisa importante e útil sobre ir a um destes coaches é que eles sabem como é que as pessoas fazem escolhas de carreira. Por isso, onde quer que o cliente esteja “bloqueado” na sua jornada, eles devem fazer algumas perguntas importantes, ou sugerir alguns exercícios, ou algumas coisas para o cliente ler e pensar, que o possam ajudar a seguir em frente

É um espaço psicologicamente seguro onde o cliente pode pensar sobre o que quiser com alguém que entende o que ele está a passar e como pode seguir em frente.

Como funciona uma sessão de coaching de carreira?
A maioria dos coaches, a maioria dos bons coaches, segue um modelo de processo. O GROW model é o mais usado no Reino Unido. O G significa goal [objetivo], ou seja, estabelecer um objetivo para a sessão. O R é reality [realidade] e é quando dizemos ao cliente: ‘Conte-me a sua história até agora, o que nos trouxe até este ponto.’ O O significa options [opções] e o cliente vê o que pode fazer a seguir para resolver o problema, reduzindo as opções possíveis. E o W é way forward [caminho a seguir], que é a fase em que o cliente diz: ‘Isto é o que eu vou fazer, desta forma, e é daquela maneira que vou saber que fui bem-sucedido.’

Coaching de carreira é só para quem está “bloqueado” na carreira? Ou alguém que esteja feliz também pode beneficiar?
Trabalhamos com pessoas que não estão felizes no trabalho para pensar em maneiras de ficarem onde estão, mas melhorarem as coisas, ou então irem para outro sítio. Podemos trabalhar com pessoas no início da carreira, a pensar no primeiro emprego, e também no final, com pessoas que vão reformar-se e a pensar no que se segue para elas.

Alguém que está feliz no trabalho e procure apenas algum apoio para ser melhor pode procurar um coach, mas acho que o mais indicado seria talvez um coach executivo ou de performance, em vez de um coach de carreira.

Todos os que estão “bloqueados” beneficiam do coaching de carreira? Ou há pessoas que, pela sua personalidade, ou outros fatores, não podem ser ajudadas?
Pode haver pessoas cujas barreiras sejam profundas demais para que o coach de carreira possa ajudar. Alguém com problemas de saúde mental graves, por exemplo. Se a razão pela qual alguém não consegue avançar na carreira é porque está a sofrer de depressão profunda, um coach de carreira não deve ser a primeira pessoa a procurar e sim alguém que lhe possa proporcionar uma terapia mais profunda.

O coach de carreira tem de ter esses limites, sobre o que pode ou não fazer…
Exatamente. O coach de carreira precisa saber o que não pode fazer e o que pode fazer e precisa ser muito explícito, honesto e transparente sobre essas coisas.

Todos temos um nível de ansiedade e existe uma coisa chamada ansiedade de carreira porque fazer escolhas de carreira pode deixar as pessoas bastante stressadas. Se for esse tipo de ansiedade, um coach de carreira pode ajudar, mas, se for ansiedade clínica, já não.

Ainda assim, esses limites não são tão claros. Podemos ter uma definição técnica de quando alguém passa de não clínico para clínico, mas na prática acaba por se tornar um pouco difuso. Por isso, acho que o coach de carreira precisa de ter muito claro onde estão os seus limites, mesmo que isso não reflita necessariamente testes clínicos.

Ao longo destes mais de 20 anos de carreira, houve pessoas que não conseguiu ajudar?
Já encontrei pessoas em que o coaching de carreira não as deixou com uma espécie de ‘Ah, vi a luz e sei exatamente o que preciso fazer’. Mas acho que, provavelmente, consegui ajudar a avançar todos os que escolheram vir ter comigo. Todas as conversas foram positivas, fizeram alguma coisa, levaram a algum lado. Claro que os clientes são todos muito educados e dizem: ‘Obrigado, Julia, foi fantástico’. Mas quem sabe o que foram dizer aos amigos e colegas. Contudo, acredito que, em geral, as conversas permitiram que as pessoas pensassem de forma diferente ou se sentissem mais confiantes sobre o que estão a fazer.”

Qual é a importância da carreira na vida das pessoas?
As carreiras são muito importantes na vida das pessoas. Tom Rath e Jim Harter fizeram um estudo global, com pessoas de todo o mundo, para perceber quais os fatores que estão mais associados a pessoas que são bem-sucedidas na sua vida.

Identificaram cinco pilares: comunidade, saúde, finanças, relacionamentos e carreira. Todos estes fatores são muito importantes para as pessoas serem bem-sucedidas na vida, mas a carreira foi a mais significativa. Eles descobriram que as pessoas que são bem-sucedidas nas suas carreiras têm duas vezes mais possibilidades de serem bem-sucedidas na vida.

Acho que o que este estudo mostra é que, para todos, independentemente do trabalho que façam, a carreira tem um impacto mais profundo do que apenas o que sentimos no momento. Tem impacto na identidade, nas relações, nas atividades dos tempos livres, tem um grande impacto na vida em geral.

Passamos uma grande parte da vida a trabalhar, se não estivermos felizes, as coisas não vão correr bem em geral.

Nota diferenças no tipo de receios/problemas dos clientes, quando começou e agora?
Passei a maior parte da minha carreira a trabalhar com jovens, em escolas ou universidades. E agora passo grande parte da minha vida com pessoas com vinte e poucos anos que pensam no que fazer a seguir. E noto um aumento na ansiedade, problemas de saúde mental.

Não sei dizer se é um aumento considerável das pessoas que reconhecem isso e se sentem à vontade para falar. Ou se é realmente um aumento na ansiedade. Acho que pode ser um pouco dos dois. Há mais ansiedade, mas as pessoas também se sentem um pouco mais confortáveis ​​e confiantes a falar sobre isso.

Essa é uma área em que eu acho que houve mudanças, mas também acho que a maneira como os coaches de carreira respondem a isso mudou. Acho que entendemos como a ansiedade é normal e temos maneiras diferentes de a incorporar no nosso trabalho.

Há muitos mitos ou equívocos sobre coaching de carreira?
Não é uma profissão regulada. Na verdade, até mesmo os coaches de carreira nem sempre sabem o que são.

Pode haver situações em que alguém vai a um coach que é muito direto, dá conselhos, diz às pessoas o que fazer, dá-lhes informações. E depois muda para outro coach de carreira como eu, que lhe diz: ‘Não, não vou lhe dar a informação. Se quiser informações pode ir ao Google. O que podemos é falar sobre quais as informações que precisa, mas não lhe vou dar a informação.’

Acho que o que é importante é que haja uma espécie de contrato inicial em que o coach tem de ser muito claro. ‘Esta é a minha filosofia, este é o meu estilo de coaching. Se vier ter comigo é isto que vai ter’. Se houver isso, deverá existir uma correspondência de expectativas.”

Não sendo uma profissão regulada, quem quiser ser coach pode ser…
Sim. E isso é um problema. Se eu estivesse à procura de um coach de carreira, a primeira coisa que faria era ver se era certificado por um órgão profissional. Se alguém é um psicólogo certificado ou um coach certificado pela Association for Coaching ou pela International Coach Federation, uma dessas grandes organizações profissionais, sentir-me-ia confiante de que tem uma formação e treino decentes. Todos os profissionais certificados por essas organizações têm de seguir um código ético.

O que é um bom coach de carreiras?
Primeiro digo-lhe o que acho que é um bom coaching de carreiras. Todas as evidências dizem que é preciso o que chamamos de aliança de trabalho, que consiste em três coisas. A primeira é ter um objetivo partilhado, ou seja, ambos concordam com o que estão a tentar alcançar. A segunda é uma compreensão compartilhada do processo, o que significa que os dois concordam que sabem como vão chegar lá. E a terceira coisa, e mais importante, é haver um bom relacionamento.

Em termos do que faz um bom coach de carreira, acredito que seja sobre o relacionamento. Acho que bons coaches de carreira estão realmente interessados nos seus clientes, nas suas histórias, no seu futuro e estão muito presentes no momento. Naquele momento, durante aquela conversa, todo o seu foco está naquele cliente e o coach como que entra no mundo dele para descobrir o que vai funcionar para ele.

Ajuda a desbloquear clientes tímidos ou receosos, por exemplo?
Precisamente. Se tiver um coach de carreira que seja bom nesse relacionamento, mesmo que o cliente esteja com medo ou tímido, descobre que pode dizer coisas, pode explorar. O coach ajuda-o a desembrulhar as ideias e é isso que ajuda a seguir em frente.

Disse que passou a maior parte da carreira a trabalhar com jovens. Estamos a falar de que idades?
No Reino Unido, o apoio à carreira é financiado pelo Estado desde os 15, 16 anos. Nessas as idades os jovens já recebem algumas informações. Depois novamente aos 17, 18 anos, quando começam a pensar em deixar a escola e depois há novamente um bom apoio financiado na universidade.

Quando é que devemos começar a pensar em carreira?
Devíamos começar a pensar em carreiras aos três anos, mas não estamos preparados para tomar uma boa decisão até aos 20 e tal.

Há evidências de que até as crianças realmente pequenas começam a ter algum tipo de ideia sobre empregos e sobre o mundo do trabalho. E, quando são muito pequenas, não têm necessariamente boas ideias sobre isso.

Num projeto de pesquisa em que eu estive envolvida, que trabalhou com crianças de cinco/seis anos, uma das crianças disse: ‘Eu acho que professores são mulheres, mas diretores são homens.’ Na escola dela, todos os professores eram mulheres e o diretor era um homem.

Acho que precisamos ter essas conversas para que possamos dizer, até àquela criança de cinco anos: ‘Como achas que seria se uma mulher fosse diretora?’ Para tentar dissipar alguns desses estereótipos.

Acho que podemos ter conversas realmente úteis quando eles são bem pequenos, fazendo com que entendam o que é o trabalho da mãe, do pai. Quando estão na rua com eles, no zoo, por exemplo, podem dizer: ‘Está ali um tratador. Como será o trabalho dele?’ Ir levantando ideias.”

Mas também disse que não estamos prontos para tomar boas decisões antes dos 20 e tal anos…
Esse é que é o desafio, não é? Porque sabemos pela neurociência cognitiva que a parte do nosso cérebro que toma decisões complicadas não está totalmente formada até que tenhamos vinte e poucos anos. E, no entanto, lá estava eu a lidar com jovens de 15 anos a terem de fazer escolhas.

Então, acho que se trata de começar cedo, fazer as pessoas pensarem sobre as coisas, mesmo quando são muito pequenas, mas, de alguma forma, garantir que não se sintam tão comprometidas até que estejam nos seus vinte e poucos anos.

Adoro a ideia de jovens que saem da universidade e vão experimentar alguma coisa. E que pensam: “Esta não é a minha carreira, este não é o meu trabalho para a vida, esta é apenas a primeira coisa que vou fazer e vou tentar. E depois penso se quero continuar a fazer isto ou outra coisa.”

Acho que isso aliviaria um pouco da ansiedade. Parte da ansiedade advém de, aos 21 anos, as pessoas pensarem: ‘Eu tenho de fazer a escolha com a qual vou ficar preso até me reformar’. Mas não é verdade. Essa é só uma primeira escolha.

Nota diferenças entre as dificuldades desta geração e das anteriores?
Provavelmente desafios diferentes, que surgem de coisas como recessões, por exemplo. Alguém que entra no mercado de trabalho a meio de uma recessão, tem um desafio específico. No Reino Unido temos toda uma geração de pessoas cujos pais nunca trabalharam e que elas próprias nunca trabalharam porque isso coincidiu com duas terríveis recessões em que o desemprego era realmente alto.

O que estamos a enfrentar agora, com a pandemia… Há muitas pessoas que começaram um emprego a trabalhar em casa, em confinamento, e tiveram dificuldades com isso. Temos pessoas a ajustarem-se à ideia de trabalho híbrido, o que acho que trará desafios próprios. Temos guerra na Ucrânia... Meu Deus, só de pensar nos jovens ucranianos, e se eles estão ou não a pensar nas suas carreiras… Eu sinceramente duvido. Dependendo de onde estamos, há problemas.

Mas a guerra na Ucrânia também está a contribuir para este enorme aumento do custo de vida, que limita as escolhas das pessoas.

Os clientes com que trabalha refletem a conjuntura atual nos seus receios?
Sim, com certeza. Os clientes não costumam falar sobre as razões das suas dificuldades. Não dizem que é por causa da guerra da Ucrânia ou o Brexit, mas vejo-os a lutar com as consequências desses problemas. Não podem comprar casa porque as prestações estão a subir, as taxas de juro. Nota-se que mostram alguma consciência das circunstâncias, algum medo do futuro.

As pessoas são sempre mais propensas a mudanças em tempos de pujança económica. Se estamos numa parte do ciclo em que as pessoas não veem um futuro positivo, é muito mais provável que permaneçam onde estão, mesmo que não estejam muito felizes.”

Qual é a principal causa que os clientes apresentam para quererem uma mudança de carreira?
Há muitas pessoas que querem ter mais significado e propósito na sua carreira. Acho que é a razão mais comum.

Isso liga-se com o que eu estava a dizer antes, que as escolhas que fazemos aos 21 anos nem sempre são muito bem informadas, porque somos muito jovens. As pessoas acabam num emprego e mesmo que não tencionem ficar lá, às vezes ficam porque talvez tenham sido promovidas, talvez tenham um certo salário, talvez tenham uma casa para pagar, filhos. Ficam presas no primeiro emprego, até que chegam a um ponto em que pensam: ‘Eu tenho mais 20, 30, 40 anos de trabalho e não estou feliz. Não é isto que eu quero para a minha vida.’

Então, tentam encontrar um emprego que lhes dê um pouco mais de significado, um pouco mais de propósito, e talvez reflita melhor a pessoa que elas são e a pessoa que querem ser.

E que dificuldades apresentam na altura de mudar?
Medo do desconhecido, dúvidas sobre se serão capazes de fazer outra coisa, desafios logísticos… Há pessoas que têm um certo salário e que têm que desistir desse salário para mudar. E é isso que alimenta o medo, a dúvida, porque eles pensam: ‘Eu vou fazer esse sacrifício, esse grande investimento, mas como é que sei que vai resultar? Como é que eu sei que o próximo trabalho não será tão mau quanto este?’

Há pessoas que começam a estudar em part-time, enquanto mantêm o emprego, o que eu acho que é uma solução fantástica. Começam a investir no futuro antes de desistirem do seu velho futuro.

Um grupo de pessoas com que tenho trabalhado também são mães que deixaram o emprego antes de terem filhos e agora querem voltar. E é um grupo em que a autoconfiança é um problema.

É bizarro, não é? Porque as mulheres quando têm filhos, aprendem muito, desenvolvem novas capacidades. E eu honestamente acredito que o melhor treino de gestão é estar rodeado por crianças de três anos. Se conseguir gerir um grupo de crianças de três anos, consegue gerir qualquer pessoa. Estas capacidades são valorizadas no trabalho, mas as pessoas não veem que é tendo filhos que as conseguem. E as mães também enfrentam um dilema enorme entre querer ser a mãe que elas querem ser, mas também querer ser a pessoa que elas querem ser. E sentem-se terrivelmente culpadas pela ideia de que querem deixar os filhos para irem trabalhar.

Quais são os fatores que fazem as pessoas felizes no trabalho?
O fator principal é sentirem que há um propósito. Se conseguir encontrar um emprego que ache que contribui para um bem maior. Não tem de ser necessariamente enfermagem, ou ensino, ou algo assim. Algo em que pense: ‘Acho que o mundo é um lugar melhor por eu estar a fazer este trabalho.’

O segundo fator é variedade. Encontrar um emprego em que faça muitas coisas diferentes ao longo do dia, do ano.

O terceiro fator são os colegas. Tem de encontrar um emprego em que trabalhe com pessoas com quem gosta de estar. Os colegas, o chefe, os clientes… se gostar de passar tempo com eles, vai gostar do trabalho.

Duas questões para pensar se estiver a considerar mudar de carreira ou a começar no mercado de trabalho:
A primeira questão é: ‘Se todos os empregos pagassem o mesmo, qual escolheria?’

A segunda questão é: ‘Se soubesse que não falharia, que emprego escolheria?’

Uma nota final:
Uma última coisa, e isso é já do meu lado de psicóloga: Há uma base de evidências que mostra que o coaching funciona. Deem-lhe uma oportunidade.

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