Como os médicos aprendem a dar más notícias - e uma das regras é respeitar o direito de o doente não querer saber

10 abr 2022, 12:00
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São seis as regras a cumprir e três os erros a evitar

"Não vou falar de como os profissionais de saúde dão as más notícias mas de como estas devem ser dadas", começa por dizer Irene Carvalho, especialista em comunicação clínica e professora da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Este foi o primeiro estabelecimento de ensino superior a implementar, em 2005, uma componente prática de comunicação, na disciplina de Psicologia Médica. Nela, os futuros médicos começam por tentar dominar "as competências básicas de relação", com recurso a vídeos, em que veem como se faz e discutem aquilo a que assistiram. Só depois "é que avançam", treinando entre colegas e com doentes simulados. 

Mas existem regras para dizer a um doente aquilo que ele não quer ouvir, de forma a não deixar mais sequelas? Irene Carvalho afirma que há vários regulamentos que explicam os passos a seguir, mas aquele que transmite na unidade curricular é o protocolo SPIKES, "muito conhecido e utilizado internacionalmente". É constituído por seis fases e "preconiza que se tenha sensibilidade suficiente para com a pessoa que está do outro lado". Caso não seja praticado de forma correta, a informação transmitida pode criar ansiedade e deixar cicatrizes para a vida. 

1 – Setting up (Preparação)

De acordo com a docente, o primeiro passo está relacionado com a preparação do ambiente. A comunicação de más notícias deve ser sempre feita de forma presencial, com ambos os interlocutores sentados num espaço privado, para que o doente possa estar à vontade e sinta disponibilidade por parte do profissional de saúde. “Não pode ser uma coisa feita a correr, no meio de um corredor, para depois o médico ir embora e deixar a pessoa ali.”

A postura do médico também é crucial, no sentido em que deve ser tranquila e descontraída. Não deve apresentar uma expressão facial que revele imediatamente a gravidade, para não alarmar ainda mais.

2 – Perception (Perceção)

O médico deve perguntar como é que o doente está e ouvir a resposta. Ao fazer isto, já está a avaliar como a pessoa se encontra clinicamente.

“Tem alguma ideia do que isto possa ser?”, também é uma sugestão de pergunta, para ter a perceção daquilo que o doente já sabe. “Não se pode correr o risco de se estar a dar informação a um nível e a pessoa estar num patamar completamente diferente. O doente pode não estar à espera daquilo ou até tornar-se repetitivo.”

3 – Invitation (Convite)

Mais concretamente, “o que é que a pessoa está interessada em saber?”. É a fase em que o profissional de saúde, caso o paciente deseje, explica o que ele tem, as causas e o que fazer. Há ainda quem não esteja imediatamente preparado para esta etapa e nestes casos a sua vontade deve ser respeitada.

O direito de não saber está inclusivamente contemplado no código da Ordem dos Médicos. A conversa deve ser feita ao ritmo do doente.

4 – Knowledge (Conhecimento)

O quarto passo do protocolo passa por comunicar finalmente a notícia, “com muito pouca informação, porque as pessoas deixam de ouvir ou podem não ouvir tão bem”. Deve ser apenas transmitido aquilo que for importante e dar-se espaço para a pessoa fazer mais perguntas.

5 – Emotions (Emoções)

Chegou a parte mais difícil: lidar com as reações e emoções. “Se não fosse este passo, era muito fácil dar más notícias.”

O médico deve reconhecer que a pessoa está a reagir de forma emocional, compreender a dificuldade da situação e ajudá-la a conter esse sofrimento, colocando-se na sua pele. “Estamos a falar de empatia, que é muito importante na área da saúde.” Irene Carvalho explica que o paciente fica muitas vezes desnorteado e olha para o médico como um farol, em busca de orientação, compreensão e conforto.

6 – Strategy and summary (Estratégia e resumo)

É na sexta e última fase que o profissional de saúde passa a definir objetivos concretos, focando-se naquilo que é possível controlar e nos passos que devem ser seguidos. Pode ser feito em conjunto com o doente, mas também, se este o desejar, com um membro da família que o acompanhe.

Habitualmente, depois da comunicação de uma má notícia, é marcada uma consulta para breve. Uma semana ou duas depois. A pessoa já terá deixado de pensar tanto naquele momento e começam a surgir mais perguntas. O médico quer ouvir, saber como está e até pode receber um acompanhante do paciente, caso ele o deseje.

“Muitas vezes pensamos na má notícia como uma sentença ou o largar de uma bomba, mas este protocolo não dita nada disso”, diz Irene Carvalho. “É, sim, um diálogo.” Sobretudo nos primeiros três passos, quem fala é o doente. 

Quais são as práticas a evitar?

1 - "Tiro de aviso"
Serve de exemplo a frase "não tenho boas notícias". Não é indicado deixar antever a gravidade desta forma, a menos que o paciente não faça qualquer ideia do que se trata - e mesmo assim deve ser ponderado. 

O profissional de saúde também não se pode estar a rir, mas ao mesmo tempo não deve dar a entender que vai dizer algo muito negativo. "Às tantas a pessoa fica num estado de ansiedade tremendo e a má notícia pode nem ser tão terrível como o médico transpareceu." 

2 - Presunção
De acordo com a professora, é provavelmente a prática que mais ocorre mas que deve ser evitada: presumir que o doente tem de saber e aquilo que deve saber, não respeitando o seu ritmo. 

3 - Linguagem técnica
A linguagem é muito importante quando se trata de dar as más notícias. Uma forma mais técnica pode levar a que a pessoa do outro lado não perceba. Deve ser adaptada a cada paciente.

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