Covid: uma vez endémica nunca mais voltará a ser pandémica? Não. E esse não é o único problema

29 mar 2022, 10:00
A situação de endemia tem vindo a ser debatida desde o início do ano. (Pixabay)

A chegada da variante Ómicron - cuja transmissibilidade é maior mas com danos para a saúde menores do que as variantes anteriores - trouxe para tema de conversa o termo "endemia", uma utopia há cerca de dois anos mas que agora se assume como o cenário mais provável e próximo. Mas, na prática, isso significa o quê na sua vida, nas nossas vidas?

Há mais de dois anos em pandemia, é para um cenário de endemia que o mundo se está a preparar. É certo que há países, como Portugal, mais próximos dessa realidade, mas os cuidados ainda são para manter, não apenas pela imprevisibilidade deste vírus (que tem levado a um aumento de casos um pouco por toda a Europa) mas também porque endemia não é, de todo, sinónimo de erradicação da doença - e, por isso mesmo, é necessário continuar a prestar atenção ao vírus

“Estar em endemia não quer dizer que tudo fique bem e que não se passe nada, pode haver agravamento, uma exacerbação de casos e momentos em que é necessário medidas para combater mortalidade e hospitalização”, começa por dizer Gustavo Tato Borges, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde.

E se endemia não quer dizer que do nada tudo fica bem, também não é sinónimo de fim de um vírus ou de uma doença. “Podemos entrar agora na primavera e no verão e viver uma situação prática de endemia, mas só sabemos que a situação está controlada, que se assemelha verdadeiramente a uma endemia, quando passarmos o inverno, que é quando se tira a prova dos nove”, afirma Miguel Castanho, professor catedrático da Faculdade de Medicina de Lisboa e investigador no Instituto de Medicina Molecular (IMM).

A própria Organização Mundial da Saúde, pela voz do seu diretor-geral Tedros Adhanom Ghebreyesus, admite que a covid-19 não vai desaparecer mas que “precisaremos de aprender a gerir” a doença através “de um sistema sustentado e integrado para doenças respiratórias agudas, que fornecerá uma plataforma de preparação para futuras pandemias”, cita a revista Nature, que dá conta de que África se prepara para encarar o vírus como uma endemia.

O que difere epidemia, pandemia e endemia?

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define pandemia, epidemia e endemia tendo em conta a taxa de propagação do agente infeccioso ou da doença e não a gravidade do contágio.

EPIDEMIA
Epidemia é uma doença que, numa localidade ou região, afeta muitas pessoas ao mesmo tempo. Esse aumento é “muitas vezes súbito” e “normalmente esperado”, lê-se no site do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC). É o que acontece com a gripe durante o inverno, por exemplo: o vírus circula na comunidade, tem um comportamento mais ou menos controlado e sabe-se que no outono e no inverno tem uma maior incidência, aumentando o número de infeções por Influenza. “Febre amarela, varíola, sarampo e poliomielite são os principais exemplos de epidemias”, lê-se no site da Columbia Mailman School of Public Health. Uma epidemia pode escalar para pandemia quando a doença ultrapassa fronteiras, como aconteceu com a covid-19.

PANDEMIA
Por definição, é o que caracteriza o surto de uma doença ou uma epidemia com distribuição geográfica internacional muito alargada e simultânea, isto é, que afeta vários países ao mesmo tempo - tal como aconteceu com o SARS-CoV-2, que semanas depois de ter sido detetado em Wuhan, na China, escalou pelo mundo fora. Na prática, uma pandemia dá-se quando uma grande parte do mundo se debate contra um mesmo problema. É a OMS quem declara o início e o fim de uma pandemia.

ENDEMIA
“Endemia refere-se à presença constante e/ou prevalência habitual de uma doença ou agente infeccioso numa população dentro de uma área geográfica”, tal como explica o CDC. Na prática, uma endemia acontece quando a propagação da doença e as taxas de incidência são previsíveis, ou seja, mesmo que não seja um cenário de total alívio sabe-se que o agente que causa a doença circula na comunidade e há um maior controlo do mesmo (desde a sua tipologia a comportamento).

Olhando para o caso da covid-19, tal como descreve o site HealthLine, o SARS-CoV-2 era epidémico no final de 2019/início de 2020, estando apenas presente na China. Passou a pandemia em poucas semanas e em março de 2020 a OMS declarou-a oficialmente. Hoje em dia, se um país apresenta uma estabilização do número de infeções (e também de internamentos e óbitos) é possível que se passe para a fase seguinte, a de considerar a covid-19 uma doença endémica. 

Uma endemia jamais voltará a pandemia?

Não, de todo. Tanto uma endemia como uma epidemia podem, em algum momento, escalar para pandemia. “Isso é claríssimo”, esclarece Miguel Castanho. Tal como uma pandemia pode passar a epidemia e endemia se perder força de contágio, por exemplo.

“Passamos para endemia quando o vírus se transmite habitualmente entre nós. Na pandemia a transmissão é maior, com mais mortalidade em vários países”, esclarece Gustavo Tato Borges, que continua: “Para voltar a ser pandemia tinha de ser uma estirpe completamente diferente e haver aumento dramático de mortos e doença”.

Na prática, para que haja novamente uma pandemia, basta que o agente infeccioso ultrapasse fronteiras e se dissemine um pouco por todo o mundo, como acontece com a covid-19 ou como aconteceu em 2009 com a cepa H1N1 do vírus influenza, por exemplo. Dentro do mesmo vírus, uma mutação, se mais contagiosa ou perigosa para a saúde, pode ser o suficiente para fazer soar os alarmes.

“Tal como a gripe, que temos mais ou menos variações de ano para ano mas não representa um fator epidémico, nada nos livra que apareça uma variante com potencial pandémico. Podemos ter variantes que se assemelham, em termos de ação, ao vírus [original], pode até ser a mesma variante que não desaparece, mas pode sempre acontecer que surja uma nova variante que venha relançar uma nova pandemia, é um risco.”

Elevada taxa de vacinação + grande contacto com o vírus = Portugal endémico num mundo pandémico

É um cenário possível e até provável, embora não esteja imune a riscos ou sobressaltos. Em fevereiro, o virologista Pedro Simas afirmou que, dada a taxa de vacinação em Portugal, “muito dificilmente o vírus terá um comportamento pandémico” e mencionou a baixa mortalidade no período em que houve mais casos em Portugal. Face a esta combinação de fatores - que resultam sobretudo de um contacto generalizado com o vírus, que circula na comunidade e cujo impacto não é tão grave para a saúde como fora -, Portugal pode de facto estar próximo de uma endemia, mesmo que a OMS mantenha o estatuto de pandemia.

“Em termos técnicos, é uma contradição, mas em termos práticos, para as pessoas saberem como podem viver o seu dia a dia, é possível que a situação esteja muito mal em algumas áreas do globo e controlada noutras”, explica Miguel Castanho. Porém, deixa um alerta: apesar de um país estar a respirar de alívio e com a situação controlada, este cenário de endemia em plena pandemia “é um perigo iminente, as [pessoas] que estão numa situação boa estão sob risco, seja por causa das variante, dos fluxos migratórios, do fluxo sazonal do turismo, entre outros aspetos”.

Gustavo Tato Borges considera que “o facto é que estamos a caminhar para endemia”, mas defende que “não vamos deixar nos referir à covid como pandemia até a OMS declarar o fim”. Para o presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde, na verdade muda apenas o nome. Ao entrar em endemia, “o que vamos mudar é a forma de como lidamos [com a doença], tendo em conta a nossa realidade epidemiológica. Podemos mudar as medidas a nível local mesmo estando em pandemia, podemos mudar a forma como lutamos contra o vírus”.

Endemia não quer dizer o fim do vírus, nem das medidas de controlo

Mesmo que entre em estado endémico, um vírus pode continuar a ser fatal ou a impactar os sistemas de saúde - como acontece, por exemplo, com a gripe (causada pelo vírus Influenza e que matou 314 pessoas em 2019). Mas há outros exemplos: “Uma doença pode ser endémica e generalizada e mortal. A malária matou mais de 600.000 pessoas em 2020. Dez milhões adoeceram com tuberculose no mesmo ano e 1,5 milhão morreram. Endémico certamente não significa que a evolução de alguma forma dominou um patógeno para que a vida simplesmente volte ao 'normal'”, escreveu Aris Katzourakis, professor na Universidade de Oxford, no Reino Unido, na revista "Nature".

Ao entrar em fase de endemia, os vírus instalaram-se na comunidade, continuam a portar riscos, mas o seu comportamento é previsível e, por isso, é mais fácil agir na prevenção e no controlo, mas tal não quer dizer que endemia seja sinónimo de que a doença se tornará benigna, como alertou em fevereiro o pneumologista Filipe Froes em declarações à CNN Portugal. E é isso o que se deve acontecer quando se deseja que a covid-19 passe a endemia.

A previsibilidade do comportamento do vírus é, tal como frisou o investigador Miguel Castanho, um dos fatores determinantes para que um vírus endémico tenha um impacto menor. “Duas características da endemia é que a situação seja relativamente previsível e relativamente controlada. O agente está presente, não se conseguiu erradicar, é o que acontece com a gripe, que é sazonal, que piora no inverno, que melhora no verão, mas conseguimos ter uma ideia das intensidades. Há flutuações, mas há um certo equilíbrio”, explica Miguel Castanho.

No entanto, frisa o investigador, mesmo num cenário de endemia, como pode acontecer durante os meses de maior calor, é necessário continuar a prestar atenção ao vírus e evitar a sua propagação. “Para não arriscarmos a chegar ao início do próximo outono e inverno e recomeçar tudo de novo, temos de ter a cabeça muito fria e ser realistas - enquanto a incidência, as hospitalizações e vítimas não baixarem bastante, enquanto não nos disseram que chegamos a um nível baixo e estável, temos de manter as medidas [de proteção] porque sempre que abandonamos medidas as situação piora ou não melhora. E se ainda há coisas que são humanamente possíveis fazer para evitar vítimas, devemos fazê-las”, diz Miguel Castanho, referindo-se a algumas medidas de proteção, como a máscara.

E sobre o uso deste equipamento de proteção facial, Gustavo Tato Borges diz que mesmo em cenário de endemia “não é garantido que não tenhamos de ter outras medidas de combate populacionais”, como o uso de máscara em instituições de saúde ou cuidado social. “Mas o avanço da doença é para que seja regular entre nós”.

Segundo médico de saúde pública, o cenário mais próximo é de que o SARS-CoV-2 seja o novo vírus influenza, mas estes dois anos de pandemia trazem algumas lições: “Não precisamos que o governo determine a obrigatoriedade do uso de máscara para nos protegermos, cada cidadão tem de avaliar a melhor forma para se proteger o mais possível. Mas depois de dois anos será difícil, pelo menos enquanto não houver uma redução drástica de casos, que uma pessoa vá trabalhar para lares ou instituições de saúde sem máscara. Vamos continuar a usar máscara em locais com pessoas com vulnerabilidade”.

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